Termina 2015, um ano que decididamente não legou nada de bom. A imagem que me vem logo à mente é o rio de lama do desastre de Mariana, que serve de metáfora para outros rios de lama que correram este ano tão ruim. Sem ser protagonista dos acontecimentos, eu como tantos outros permaneci imerso nas redes sociais, blog's e forum's da internet, locais onde reverberam os ecos dos acontecimentos - é a única maneira que tenho de participar deles.
Uma coisa que eu já havia notado desde sempre, mas que realçou-se de maneira extraordinária durante este ano em que a popularidade do governo caiu quase a zero, é o imenso abismo entre o eco dos forum's e o eco das ruas. Os primeiros são frequentados em sua maioria por uma turma que mostra notável uniformidade ideológica em suas visões do país e da política. Essa turma defende o governo petista com unhas e dentes, enquanto todas as estatísticas mostram que o apoio a Dilma Rousseff não passa de 7% na ruas, embora tais opinantes populares não tenham uma argumentação uniforme ou bem articulada para justificar sua posição. Ao mesmo tempo observo o crescimento de uma corrente direitista nos forum's, ainda minoritária, que opõe-se ao governo com um discurso ideológico razoavelmente bem articulado, mas que tampouco é endossado nas ruas. A única coisa que fica claro nisso tudo é que os frequentadores dos forum's não são o povo.
Não me espanta que haja grande diferença de nível intelectual entre os opinantes dos forum's e os populares nas ruas. Tampouco me espanta que haja grande oscilação nos índices de aprovação do governo, pois o povo em sua maioria não segue ditames ideológicos que sedimentem um compromisso permanente, mas apenas julga conforme as benesses que recebe ou deixa de receber - também José Sarney em seu tempo já passou de 80% para 8% de aprovação. O que me espanta é que os forum's não sirvam nem como caixa de ressonância da opinião das ruas - como se vivessem em universos diferentes. Essa turma de petistas, eu já os encontrei nos forum's quando comecei a frequentá-los. Impressiona-me a quantidade deles, e com certeza já existiam muito antes da invenção da internet, veiculando suas opiniões em círculos mais restritos. De início pareciam-me um tanto utópicos e até admirava-me a sua independência intelectual - invariavelmente críticos ao governo, proclamavam-se anarquistas, chamavam Lula de Judas Barbudo, reclamavam que aquele governo não cumpria nada do que eles sonhavam, tudo em meio a críticas hiperbólicas e sugestões absurdas - enfim, o retrato perfeito daquilo que no meu tempo se chamava porra-louca.
Mas de um momento para outro, começaram a mudar. Na medida mesmo em que os bons tempos de Lula ficavam para trás e se iniciavam os anos claudicantes de Dilma, as críticas ao governo começaram a rarear e os forum's passaram cada vez mais a ecoar a propaganda oficial petista, com frequência reproduzindo na íntegra artigos publicados em páginas de revistas de esquerda. Alguma coisa estava acontecendo, sem dúvida. Eu não estava mais diante de divertidos porra-loucas, mas de indivíduos alinhados inflexivelmente com o partido governista, com certeza tendo motivos particulares para tal. O discurso partidarizado substituiu o ideológico: não se falava mais de esquerda e direita, em termos subjetivos, mas de PT e PSDB, sendo este segundo atacado como se fosse o que há de mais à direita no espectro político brasileiro. Confesso que senti saudades dos tempos ingênuos. Embora eu nunca houvesse simpatizado com este pessoal, não pude deixar de ficar chocados ao ver os ex-anarquistas defendendo o aumento de impostos, a impunidade de grandes empreiteiros e o velho capitalismo de compadres.
De onde surgiu, afinal, essa turma? Como explicar a mutação que vem ocorrendo?
Pesquisando aqui e acolá, cheguei a algumas conclusões. Essa numerosa fauna que habita os forum's e redes sociais são nada mais que aquilo que foi batizado por Otto Maria Carpeaux como o proletariado intelectual. Uma rápida pesquisa sobre o assunto pode ser encontrada aqui, mas vou resumir eu mesmo: o proletariado intelectual é uma espécie de exército de reserva de profissionais universitários, indivíduos que têm como objetivo trabalhar para o Estado, mas não encontram colocação. A expansão desse grupo está intimamente ligada à expansão da máquina administrativa bem como do próprio Estado, e obedece a um objetivo específico, embora não evidenciado: além de mão-de-obra para o funcionalismo, formar uma claque de militantes virtuais, ou de cabos eleitorais que trabalham de graça. Isso ocorre porque tais indivíduos, sentindo-se frustrados em seus anseios de entrar para o Estado, passam a sonhar em assenhorar-se deste Estado e moldá-lo conforme seus desejos. Formam, portanto, uma classe de insatisfeitos que está sempre a veicular uma mensagem revolucionária que corresponda aos projetos daqueles que efetivamente controlam o Estado e os instigam a este fim. A fórmula é sempre a mesma: expansão do funcionalismo, seguida de expansão do número de universidades, mas não de cursos voltados às necessidades do mercado, e sim de cursos voltados à necessidade do Estado - com vagas sempre em número superior àquelas que o funcionalismo pode oferecer.
Assim é formada aquela massa de bacharéis semi-letrados e falastrões, gente bem conhecida por qualquer um que tenha frequentado uma faculdade brasileira nas últimas décadas, a ponto de fazerem parte do folclore universitário: quem nunca esbarrou com aquele garoto ou moça que passava os dias no diretório falando de política enquanto sonhava passar em um concurso público, para o qual poucos efetivamente passarão?
Acredito que os tais 7% que ainda apoiam Dilma sejam compostos essencialmente por este proletariado intelectual, minoria absoluta no país real, maioria absoluta no país virtual formado pelas redes sociais, forum's e blog's onde reverberam suas ideias, sempre lamentando que a mídia corporativa não concorde com eles. Minoria sim, mas não deixam de constituir uma massa, no sentido de que são amorfos, não possuem uma estrutura definida com cabeça e membros. E convém lembrar que todas as massas têm um grau de imprevisibilidade, mesmo as mais passivas. Às vezes algumas ondas percorrem as massas sem que saibamos bem de onde vem, ou para onde vão. Foi o que eu observei esse ano com o dito proletariado intelectual que tão bem conheço nos forum's que frequento: os debates rapidamente perderam o tom generalista e tornaram-se partidarizados, basicamente PT x PSDB. Máscaras caíram, o que antes era dito com subterfúgios passou a ser escancarado. Palavrões voaram contra Joaquim Barbosa, contra Sérgio Moro, até contra veteranos petistas. Fiquei surpreso. Mas antes de tudo, a que atribuir essa mudança?
Penso que à evolução política e econômica do país nos últimos 12 anos. Os dois primeiros mandatos de Lula permitiram uma enorme expansão da máquina pública, fazendo com que a massa dos proletários intelectuais passasse dos sonhos ao cheiro do poder já lhes atingindo as narinas. Alguns efetivamente arrumaram algum cargo, e muito outros viram ex-colegas tornando-se poderosos e ricos de uma hora para a outra. As discussões teóricas cederam lugar ao planejamento frio, a zombaria aos adversários cedeu lugar ao discurso de ódio, os escrúpulos cederam lugar definitivamente ao pragmatismo.
No primeiro mandato de Dilma, a guinada em direção ao nacional-estatismo aguçou ainda mais o apetite dessa turma. Mas o dinheiro acabou e a excitação foi substituída pela perplexidade. Ainda sem querer admitir que o sonho acabou e que nunca ganharão a almejada posição de dinheiro e poder, os militantes virtuais agitam os forum's com seus impropérios, ao mesmo tempo em que nas ruas impera a mais profunda reprovação ao governo. Como eu disse antes, as massas às vezes são percorridas por ondas que não se sabe bem de onde vem, nem aonde irão rebentar. Tal como o dique de Mariana que cedeu, a massa de proletários intelectuais tem sido acumulada silenciosamente desde muito tempo. Quando o dique ceder, aonde irá parar?
O ano de 2015, para mim, será sempre lembrado como o ano dos diques que cederam.
terça-feira, 29 de dezembro de 2015
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
Vendo o Chico passar
É de todo lamentável o bate-boca acontecido no Leblon entre Chico Buarque e um grupo de anti-petistas, incidente que tem repercutido amplamente nas redes sociais e suscitado furiosos comentários contra e a favor. Mas também é um sinal dos tempos, e um blog que trata de História não pode deixar de comentar um episódio que marca a transição entre o passado e o presente.
Chico Buarque é indiscutivelmente um dos melhores e mais populares compositores brasileiros, senão o melhor de todos. É lembrado sobretudo por suas instigantes canções de protesto no tempo da ditadura. Mas há um outro aspecto também advindo daquela época pelo qual Chico é lembrado hoje: como um expoente da chamada esquerda festiva, aquela que pregava o socialismo para os outros e os confortos do capitalismo para si.
Essa estirpe teve muitos outros representantes além do Chico, como o ex-jogador Sócrates e o arquiteto Oscar Niemeyer. Outros pertenceram a ela e depois a renegaram, como Paulo Francis. Geralmente intelectuais e artistas, invariavelmente bem sucedidos financeiramente, bons de copo e bem relacionados, a turma costumava reunir-se para beber whisky no Antonio´s, que ironicamente ficava no Leblon, mesmo bairro onde Chico foi insultado esta semana. Durante muitos anos a óbvia hipocrisia dos esquerdas festivos foi tolerada e até vista com certa graça - afinal, não deixava de ser um achincalhe à ditadura, e a turma com certeza não fazia isso sem risco pessoal. É verdade que pessoas como Chico Buarque e Oscar Niemeyer por certo imaginavam que em um hipotético Brasil comunista, eles teriam algum alto cargo público, de modo que seu padrão pessoal de vida não seria alterado, ao contrário do restante da população. Mas na época ninguém parava para pensar nisso.
Hoje, porém, o pessoal não perdoa mais. O encanto quebrou. Uma coisa era ver Chico indo para Cuba quando nenhum brasileiro podia fazê-lo sem grave risco, arrostando todas as possíveis represálias do governo contra suas obras e apresentações; outra coisa é ver Chico hoje indo para uma Cuba que é sabidamente fracassada e pobre, sem risco nenhum e ainda recebendo rapapés, e longe de ter a hostilidade do governo, ainda é brindado com generosas verbas e subsídios. O Leblon do Antonio´s passou. E tal como a banda, Chico também passou: nada que desmereça sua obra, mas ela pertence ao passado. Desde o fim da ditadura, sua inspiração parece haver secado. Isso me lembra uma peça encenada creio que no início dos anos setenta: um certo dramaturgo decadente que fizera muito sucesso em uma época de forte censura e perseguição política, subitamente desaprende a escrever após o país haver entrado em uma democracia. Buscando ter de volta a inspiração, ele contrata atores para desfilar vestidos de policiais, censores para censurar seus textos... se alguém se lembrar do nome da peça, me diga.
Saber disto tudo não me deixa feliz - afinal, também eu compartilhei a inocência daqueles tempos - mas não me escapa uma certa sensação de desforra: a esquerda finalmente conseguiu o que queria. O pessoal não tinha como objetivo convencer-nos de que éramos uma sociedade perversa e dividida em classes? Pois fizeram-no. Os moradores do Leblon afinal vestiram a carapuça e estão comportando-se como a elite arrogante que foi dito que eles são, longe das ilusões de que um trago no Antonio´s podia convertê-los em genuínos porta-vozes do proletariado...
Chico Buarque é indiscutivelmente um dos melhores e mais populares compositores brasileiros, senão o melhor de todos. É lembrado sobretudo por suas instigantes canções de protesto no tempo da ditadura. Mas há um outro aspecto também advindo daquela época pelo qual Chico é lembrado hoje: como um expoente da chamada esquerda festiva, aquela que pregava o socialismo para os outros e os confortos do capitalismo para si.
Essa estirpe teve muitos outros representantes além do Chico, como o ex-jogador Sócrates e o arquiteto Oscar Niemeyer. Outros pertenceram a ela e depois a renegaram, como Paulo Francis. Geralmente intelectuais e artistas, invariavelmente bem sucedidos financeiramente, bons de copo e bem relacionados, a turma costumava reunir-se para beber whisky no Antonio´s, que ironicamente ficava no Leblon, mesmo bairro onde Chico foi insultado esta semana. Durante muitos anos a óbvia hipocrisia dos esquerdas festivos foi tolerada e até vista com certa graça - afinal, não deixava de ser um achincalhe à ditadura, e a turma com certeza não fazia isso sem risco pessoal. É verdade que pessoas como Chico Buarque e Oscar Niemeyer por certo imaginavam que em um hipotético Brasil comunista, eles teriam algum alto cargo público, de modo que seu padrão pessoal de vida não seria alterado, ao contrário do restante da população. Mas na época ninguém parava para pensar nisso.
Hoje, porém, o pessoal não perdoa mais. O encanto quebrou. Uma coisa era ver Chico indo para Cuba quando nenhum brasileiro podia fazê-lo sem grave risco, arrostando todas as possíveis represálias do governo contra suas obras e apresentações; outra coisa é ver Chico hoje indo para uma Cuba que é sabidamente fracassada e pobre, sem risco nenhum e ainda recebendo rapapés, e longe de ter a hostilidade do governo, ainda é brindado com generosas verbas e subsídios. O Leblon do Antonio´s passou. E tal como a banda, Chico também passou: nada que desmereça sua obra, mas ela pertence ao passado. Desde o fim da ditadura, sua inspiração parece haver secado. Isso me lembra uma peça encenada creio que no início dos anos setenta: um certo dramaturgo decadente que fizera muito sucesso em uma época de forte censura e perseguição política, subitamente desaprende a escrever após o país haver entrado em uma democracia. Buscando ter de volta a inspiração, ele contrata atores para desfilar vestidos de policiais, censores para censurar seus textos... se alguém se lembrar do nome da peça, me diga.
Saber disto tudo não me deixa feliz - afinal, também eu compartilhei a inocência daqueles tempos - mas não me escapa uma certa sensação de desforra: a esquerda finalmente conseguiu o que queria. O pessoal não tinha como objetivo convencer-nos de que éramos uma sociedade perversa e dividida em classes? Pois fizeram-no. Os moradores do Leblon afinal vestiram a carapuça e estão comportando-se como a elite arrogante que foi dito que eles são, longe das ilusões de que um trago no Antonio´s podia convertê-los em genuínos porta-vozes do proletariado...
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
Entre a Venezuela e o Paraguai
O momento histórico brasileiro realmente é único. Sem ter como fazer paralelos com o passado, no eixo do tempo, resta fazer paralelos no eixo do espaço, olhando o mapa. Penso que estamos precisamente entre a Venezuela e o Paraguai. Corremos o risco de escapar de ser uma Venezuela para nos tornar um Paraguai.
O impeachment, ainda que justificado, é sempre lamentável, e mais lamentável ainda dois impeachments em 25 anos. Se virar moda, poderemos cair em um parlamentarismo ex-officio. Mas as circunstâncias em que o presente pedido de impeachment ocorre são especialmente lamentáveis. A oposição não tem qualquer projeto, parece totalmente cega pela ambição de ocupar o lugar da presidente, e a cegueira é tanta que sequer percebem o principal: se Dilma for derrubada por alguém como Eduardo Campos, ela vai sair na foto como vítima, e não como vilã. Esquecem-se de que a memória coletiva é seletiva: em pouco tempo o povo terá esquecido os anos ruins de Dilma, e se lembrará somente dos anos bons de Lula. A lenda de que Dilma foi derrubada por uma pérfida conspiração só ganhará força com o tempo, abrindo o caminho para o retorno de Lula em 2018. Afoita, a oposição tem tudo para queimar a largada.
Mas Eduardo Cunha também é um exemplo ilustrativo do tipo do político que as alianças do PT nos últimos anos trouxeram ao primeiro plano. De certa forma ele é o destino que o próprio PT traçou. E esse destino pode recair sobre todos nós.
Queria acordar um dia e ver que tudo não passou de um pesadelo.
O impeachment, ainda que justificado, é sempre lamentável, e mais lamentável ainda dois impeachments em 25 anos. Se virar moda, poderemos cair em um parlamentarismo ex-officio. Mas as circunstâncias em que o presente pedido de impeachment ocorre são especialmente lamentáveis. A oposição não tem qualquer projeto, parece totalmente cega pela ambição de ocupar o lugar da presidente, e a cegueira é tanta que sequer percebem o principal: se Dilma for derrubada por alguém como Eduardo Campos, ela vai sair na foto como vítima, e não como vilã. Esquecem-se de que a memória coletiva é seletiva: em pouco tempo o povo terá esquecido os anos ruins de Dilma, e se lembrará somente dos anos bons de Lula. A lenda de que Dilma foi derrubada por uma pérfida conspiração só ganhará força com o tempo, abrindo o caminho para o retorno de Lula em 2018. Afoita, a oposição tem tudo para queimar a largada.
Mas Eduardo Cunha também é um exemplo ilustrativo do tipo do político que as alianças do PT nos últimos anos trouxeram ao primeiro plano. De certa forma ele é o destino que o próprio PT traçou. E esse destino pode recair sobre todos nós.
Queria acordar um dia e ver que tudo não passou de um pesadelo.
domingo, 6 de dezembro de 2015
Vendo a História passar
Outro dia por acaso topei com o link para a edição digital de um livrinho bem interessante, Capitalismo para Principiantes, de Carlos Eduardo Novaes, com ilustrações de Vilmar Rodrigues. O livro parece ter sido escrito lá pelo início dos anos 80, mas ainda é bem atual, mesmo porque a crise presente mostra que ainda estamos discutindo princípios básicos do capitalismo, como principiantes que somos. E o interessante da leitura vem justamente disto: trata-se de um retrato, o instantâneo de uma paisagem tirado em determinado momento do tempo histórico, que confrontado com o retrato da mesma paisagem tirado hoje, permite distinguir a passagem do tempo em seus mínimos detalhes.
Não estou me referindo, obviamente, a uma paisagem física, mas a uma paisagem de ideias. Como víamos e entendíamos o mundo na época, e ao comparar com o que temos hoje, podemos marcar onde erramos e onde acertamos, quais convicções que se tornaram dúvidas e quais dúvidas que se tornaram convicções, tudo sob o amparo do julgamento da História, com suas sentenças já proferidas. Devo dizer que foi uma leitura agradável, pois os autores são ótimos como humoristas. Mas não deixei de sentir uma certa nostalgia por aquele tempo de inocência, quando certas injunções que hoje sabemos serem apenas piadas podiam ser tomadas por argumentação consistente. É de fato engraçado ver Karl Marx ser tomado por grande gênio e a ex-URSS por referência de sucesso antes da queda do muro de Berlim. Mas outras diferenças que notei entre o discurso daquela época e o discurso atual são bem significativas. Enumero algumas:
- Getúlio Vargas e Juscelino Kubitchek, hoje vacas sagradas inatacáveis para os esquerdistas, são depreciados e apresentados como servis à burguesia e ao capital estrangeiro.
- O texto ridiculariza também os intelectuais de botequim, esses que hoje são vacas sagradas, e chama-os de socialistas-porra-louca-utópicos.
- Também é criticado o uso das contribuições compulsórias dos assalariados, como FGTS e PIS/PASEP, para capitalizar bancos estatais como a Caixa Econômica e o BNDES (na época BNDE), exatamente o oposto do discurso atual em defesa do nacional-estatismo.
- Nenhuma referência ao racismo como instrumento indutor da desigualdade social no Brasil, a qual é vista como causada unicamente pela espoliação estrangeira.
- Nenhuma referência à "cultura da periferia" como resistência ao establishment.
Enfim, o edifício de ideias da época não era tão esquematizado como o que temos hoje, ou seria o caso de se dizer, não tão partidarizado. Falava-se mais de conceitos abstratos - burguesia, imperialismo, consumismo, ideologia, tudo sem dar nome aos bois. Foi esse discurso que doutrinou a juventude na época e preparou a atual hegemonia do pensamento de esquerda? Não creio. A minha impressão é que a maioria dos leitores, tal como eu, apenas se divertiu. De qualquer modo, hoje os propagadores de tais ideias estão no poder, e defrontam-se ao vivo e em tempo real com as contradições de seu discurso. Minha avaliação para os autores: como humoristas, muito bons; como analistas políticos, inocentes. Mas a inocência é o traço comum de tudo aquilo que carece de conhecimentos, até da barbárie.
Não estou me referindo, obviamente, a uma paisagem física, mas a uma paisagem de ideias. Como víamos e entendíamos o mundo na época, e ao comparar com o que temos hoje, podemos marcar onde erramos e onde acertamos, quais convicções que se tornaram dúvidas e quais dúvidas que se tornaram convicções, tudo sob o amparo do julgamento da História, com suas sentenças já proferidas. Devo dizer que foi uma leitura agradável, pois os autores são ótimos como humoristas. Mas não deixei de sentir uma certa nostalgia por aquele tempo de inocência, quando certas injunções que hoje sabemos serem apenas piadas podiam ser tomadas por argumentação consistente. É de fato engraçado ver Karl Marx ser tomado por grande gênio e a ex-URSS por referência de sucesso antes da queda do muro de Berlim. Mas outras diferenças que notei entre o discurso daquela época e o discurso atual são bem significativas. Enumero algumas:
- Getúlio Vargas e Juscelino Kubitchek, hoje vacas sagradas inatacáveis para os esquerdistas, são depreciados e apresentados como servis à burguesia e ao capital estrangeiro.
- O texto ridiculariza também os intelectuais de botequim, esses que hoje são vacas sagradas, e chama-os de socialistas-porra-louca-utópicos.
- Também é criticado o uso das contribuições compulsórias dos assalariados, como FGTS e PIS/PASEP, para capitalizar bancos estatais como a Caixa Econômica e o BNDES (na época BNDE), exatamente o oposto do discurso atual em defesa do nacional-estatismo.
- Nenhuma referência ao racismo como instrumento indutor da desigualdade social no Brasil, a qual é vista como causada unicamente pela espoliação estrangeira.
- Nenhuma referência à "cultura da periferia" como resistência ao establishment.
Enfim, o edifício de ideias da época não era tão esquematizado como o que temos hoje, ou seria o caso de se dizer, não tão partidarizado. Falava-se mais de conceitos abstratos - burguesia, imperialismo, consumismo, ideologia, tudo sem dar nome aos bois. Foi esse discurso que doutrinou a juventude na época e preparou a atual hegemonia do pensamento de esquerda? Não creio. A minha impressão é que a maioria dos leitores, tal como eu, apenas se divertiu. De qualquer modo, hoje os propagadores de tais ideias estão no poder, e defrontam-se ao vivo e em tempo real com as contradições de seu discurso. Minha avaliação para os autores: como humoristas, muito bons; como analistas políticos, inocentes. Mas a inocência é o traço comum de tudo aquilo que carece de conhecimentos, até da barbárie.
sexta-feira, 27 de novembro de 2015
Fim do ciclo populista na América Latina?
A eleição de Maurício Macri na Argentina, derrotando o candidato do kirshnerismo que havia pouco parecia imbatível, foi saudada por muitos como o sinal do início do fim do ciclo populista latino-americano iniciado por Hugo Chávez em 1998. Quanto a mim, procuro ser mais cauteloso.
A própria presença de ciclos na história de um país ou região já é mau agouro. Denota uma repetição compulsiva, uma incapacidade de romper com o passado e seguir adiante. Na América Latina, nenhum país sofre mais desta síndrome do que a Argentina desde o primeiro governo Perón. Estando o país com um formidável saldo na balança comercial no fim da guerra, em consequência das exportações feitas aos países beligerantes, Perón pôde proporcionar a seus concidadãos muitos anos de bonança enquanto o cofre esteve abastecido. Depois que acabou, os argentinos associaram os maus tempos à ausência do caudilho, e desde então têm procurado de todas as maneiras reviver o peronismo, mesmo que tenham que fazer o casal Evita/Perón reencarnar no casal Kirschner. De fato, os argentinos já reconduziram os peronistas ao poder mesmo em situações bem piores que a atual, daí que não foi sem surpresa que eu vi a vitória de Macri.
Protótipo do caudilhismo populista, Perón inaugurou na América Latina um ciclo nefasto, repetido em variadas épocas e locais. A fórmula consiste de raspar até o fundo do cofre a fim de comprar o apoio do povão, e depois que o dinheiro acaba, baixar o cacete. Se não é estabelecida uma ditadura, a eleição seguinte fatalmente tira os populistas do poder. Tenho visto divertidas teorias em forum´s por aí, taxando o povo de ingrato. Dizem que o governo popular tira o povão da pobreza e o transforma em classe média; enriquecido, o povão passa a se identificar com a oligarquia e vota na direita; no poder, a direita os faz voltar à pobreza. Não é nada disso. Indivíduos que ascendem à classe média podem de fato incorporar os valores de sua nova classe social, mas a classe média na América Latina é minoritária e não decide eleição. Quem tira os populistas do poder é o mesmo eleitor pobre que os levou ao poder, decepcionado com as promessas não cumpridas e com o fim das benesses. Nada de veleidade ideológicas aí.
Mas simetricamente, é ilusório achar que o eleitor que agora está votando em candidatos como Macri mudou sua mentalidade. Ele apenas está apostando suas fichas em outro. Por isso, é de se temer que o fim do ciclo populista seja sucedido por um novo ciclo "neoliberal" que uma vez tendo saneado a economia, prepare o início de um futuro o ciclo populista. O que precisa ser feito é quebrar os ciclos, parar de repetir fórmulas passadas. Mas isso só será feito no dia em que o eleitor for seduzido por ideias, e não por benesses.
A própria presença de ciclos na história de um país ou região já é mau agouro. Denota uma repetição compulsiva, uma incapacidade de romper com o passado e seguir adiante. Na América Latina, nenhum país sofre mais desta síndrome do que a Argentina desde o primeiro governo Perón. Estando o país com um formidável saldo na balança comercial no fim da guerra, em consequência das exportações feitas aos países beligerantes, Perón pôde proporcionar a seus concidadãos muitos anos de bonança enquanto o cofre esteve abastecido. Depois que acabou, os argentinos associaram os maus tempos à ausência do caudilho, e desde então têm procurado de todas as maneiras reviver o peronismo, mesmo que tenham que fazer o casal Evita/Perón reencarnar no casal Kirschner. De fato, os argentinos já reconduziram os peronistas ao poder mesmo em situações bem piores que a atual, daí que não foi sem surpresa que eu vi a vitória de Macri.
Protótipo do caudilhismo populista, Perón inaugurou na América Latina um ciclo nefasto, repetido em variadas épocas e locais. A fórmula consiste de raspar até o fundo do cofre a fim de comprar o apoio do povão, e depois que o dinheiro acaba, baixar o cacete. Se não é estabelecida uma ditadura, a eleição seguinte fatalmente tira os populistas do poder. Tenho visto divertidas teorias em forum´s por aí, taxando o povo de ingrato. Dizem que o governo popular tira o povão da pobreza e o transforma em classe média; enriquecido, o povão passa a se identificar com a oligarquia e vota na direita; no poder, a direita os faz voltar à pobreza. Não é nada disso. Indivíduos que ascendem à classe média podem de fato incorporar os valores de sua nova classe social, mas a classe média na América Latina é minoritária e não decide eleição. Quem tira os populistas do poder é o mesmo eleitor pobre que os levou ao poder, decepcionado com as promessas não cumpridas e com o fim das benesses. Nada de veleidade ideológicas aí.
Mas simetricamente, é ilusório achar que o eleitor que agora está votando em candidatos como Macri mudou sua mentalidade. Ele apenas está apostando suas fichas em outro. Por isso, é de se temer que o fim do ciclo populista seja sucedido por um novo ciclo "neoliberal" que uma vez tendo saneado a economia, prepare o início de um futuro o ciclo populista. O que precisa ser feito é quebrar os ciclos, parar de repetir fórmulas passadas. Mas isso só será feito no dia em que o eleitor for seduzido por ideias, e não por benesses.
quarta-feira, 18 de novembro de 2015
Basta de Histórias!
É irônico que em meu blog que tem como tema a História, eu escreva uma postagem com o título Basta de Histórias. Mas esse é o título de um livro que li algum tempo atrás, do jornalista argentino Andrés Oppenheimer. O livro veio-me à cabeça depois de haver lido um artigo no Jornal GGN intitulado Brasil tem mais faculdades de Direito que todos os países.
O artigo afirma que existem 1.240 cursos de Direito no Brasil, contra 1.100 em todo o resto do mundo somado. A informação me é surpreendente, e não vou discutir aqui sua veracidade ou não, por falta de dados. Vou comentar que o autor viu nessa proliferação de advogados um mau sinal, evidência de insegurança jurídica, sem contar que a quantidade é inimiga da qualidade. Um comentarista colocou:
Nesse ponto lembrei-me do citado livro. Andrés Oppenheimer analisa o fato de em sua Argentina natal, e possivelmente em todo o resto da América Latina, os estudantes de História e Filosofia superam em número os estudantes de Engenharia e Informática, e contrapõe ao que acontece na China, onde a esmagadora maioria dos estudantes opta por cursos na área tecnológica, muito embora a China tenha uma História e um legado em Filosofia muito maiores e mais antigos que a Argentina. Nada a ver com o fato da China estar crescendo a largos passos enquanto a América Latina marca passo? Certamente que não!
Sem cair na discussão inútil sobre quem é mais útil ao país, o engenheiro ou o advogado - ambas funções essenciais e não conflitantes - vou direto à raiz do problema: a ambição da grande maioria dos estudantes brasileiros não é inventar uma engenhoca e fundar sua própria empresa, mas passar em um concurso público. E são os cursos de humanas, em especial Direito, os mais requisitados para os concursos. Algo de errado nisso? Sim. Todos sabem que funcionários públicos estão presos a planos de carreira e têm vencimentos tabelados. Se o funcionário enriquece, não é com seus vencimentos. E se o ideal de ascenção social é uma carreira no funcionalismo público, ou há um erro de cálculo ou segundas intenções. Estudantes que optam por tal carreira deveriam fazê-lo por vocação específica, e não por desejo de enriquecer - nesse caso, deveriam ter como ideal entrar na iniciativa privada e fundar suas próprias empresas.
Funcionários e burocratas são essenciais para um país, mas não produzem riqueza. Só haverá recursos para a expansão de carreiras e novos concursos se aqueles que pagam impostos forem prósperos. Do contrário, a grande maioria dos estudantes que sonham passar em um concurso jamais atingirá o seu objetivo. Quanto tempo levará até que entendam isso?
O artigo afirma que existem 1.240 cursos de Direito no Brasil, contra 1.100 em todo o resto do mundo somado. A informação me é surpreendente, e não vou discutir aqui sua veracidade ou não, por falta de dados. Vou comentar que o autor viu nessa proliferação de advogados um mau sinal, evidência de insegurança jurídica, sem contar que a quantidade é inimiga da qualidade. Um comentarista colocou:
É como eu sempre digo: pobre do país que produz mais advogados do que engenheiros.... É sintoma de algo está muito, mas muito errado.
Nesse ponto lembrei-me do citado livro. Andrés Oppenheimer analisa o fato de em sua Argentina natal, e possivelmente em todo o resto da América Latina, os estudantes de História e Filosofia superam em número os estudantes de Engenharia e Informática, e contrapõe ao que acontece na China, onde a esmagadora maioria dos estudantes opta por cursos na área tecnológica, muito embora a China tenha uma História e um legado em Filosofia muito maiores e mais antigos que a Argentina. Nada a ver com o fato da China estar crescendo a largos passos enquanto a América Latina marca passo? Certamente que não!
Sem cair na discussão inútil sobre quem é mais útil ao país, o engenheiro ou o advogado - ambas funções essenciais e não conflitantes - vou direto à raiz do problema: a ambição da grande maioria dos estudantes brasileiros não é inventar uma engenhoca e fundar sua própria empresa, mas passar em um concurso público. E são os cursos de humanas, em especial Direito, os mais requisitados para os concursos. Algo de errado nisso? Sim. Todos sabem que funcionários públicos estão presos a planos de carreira e têm vencimentos tabelados. Se o funcionário enriquece, não é com seus vencimentos. E se o ideal de ascenção social é uma carreira no funcionalismo público, ou há um erro de cálculo ou segundas intenções. Estudantes que optam por tal carreira deveriam fazê-lo por vocação específica, e não por desejo de enriquecer - nesse caso, deveriam ter como ideal entrar na iniciativa privada e fundar suas próprias empresas.
Funcionários e burocratas são essenciais para um país, mas não produzem riqueza. Só haverá recursos para a expansão de carreiras e novos concursos se aqueles que pagam impostos forem prósperos. Do contrário, a grande maioria dos estudantes que sonham passar em um concurso jamais atingirá o seu objetivo. Quanto tempo levará até que entendam isso?
sexta-feira, 6 de novembro de 2015
As Duas Heranças de JK
Diante do desolador panorama político da atualidade, a tentação é voltar o olhos para o passado, buscando se não uma explicação para o presente, ao menos o conforto de rememorar uma época em que o grande embate se fazia entre personagens como Juscelino Kubitchek e Carlos Lacerda, ao invés de Dilma Rousseff e Eduardo Cunha. Um certo artigo publicado no Jornal GGN sobre JK chamou-me a atenção.
O artigo recorda a difícil eleição e o conturbado governo de Juscelino, perturbado no início por uma rebelião de militares da aeronáutica e até o final pela furiosa oposição de Lacerda. Apesar de tais percalços, os anos JK são hoje recordados como uma época radiosa, e o autor dá a sua versão para explicar: Juscelino preocupou-se em criar um clima de confiança que permitisse a colaboração de todos em prol de seu projeto político, e com este fim evitou confronto com seus adversários, anistiou revoltosos e não puniu corruptos.
Pareceu-me mais um subterfúgio para justificar a corrupção petista: o certo é deixar roubar, como fez Juscelino, que o país progredirá e todos serão felizes. Mas dá para pensar. Tirando a imensa diferença na estatura de seus protagonistas, há alguma semelhança entre os anos JK e a época presente? Eu penso que sim. Seja-se contra ou a favor, é preciso admitir que Juscelino Kubitchek foi um daqueles personagens cuja influência ultrapassa as gerações e molda os costumes políticos. Ele e Vargas foram os dois pilares do nacional-desenvolvimentismo, modelo econômico que marcou o país no século 20, dos anos 30 aos anos 80, tendo em Vargas sua vertente "nacionalista", estatizante, e em JK sua vertente "entreguista", aberta ao capital estrangeiro. Além disso, Juscelino pertence àquela galeria de personagens que são muito criticados em sua época, mas que depois de mortos ganham uma dimensão que não tiveram em vida. Hoje Juscelino é o Pelé dos presidentes, e uma vez transformada a História em romance, assume o papel do galã-mocinho, enquanto o papel de vilão cabe a Carlos Lacerda.
É claro que no mundo real as coisas são mais complicadas, e nem Juscelino foi santo, nem Lacerda foi demônio, ambos foram personagens de uma época específica que não podem ser julgados em separado do contexto desta época. É fora de dúvida, contudo, que Juscelino foi o último presidente que teve um projeto bem delineado e genuíno entusiasmo para realiza-lo. Mesmo seus adversários reconhecem a honestidade de suas intenções e sua generosidade natural. Juscelino foi tudo isso, sim. Mas também foi ingênuo. Ele fez o país progredir "50 anos em 5", mas pagou a conta com dinheiro de banco imobiliário - ou seja, fez o povo pagar a conta por intermédio da inflação. Como se sabe, a crise sobrou para seus sucessores e foi decisiva para o enfraquecimento e posterior queda dos dois governos que vieram em seguida, de Jânio Quadros e Goulart. Outro erro enorme foi a anistia dada aos revoltosos, que minou a disciplina nas forças armadas, e o resultado foi o que se viu. Desnecessário lembrar que os perdoados não perdoaram JK, que foi cassado e humilhado.
Tanto o país quanto o próprio JK pagaram um alto preço pela euforia dos 50 anos em 5. A par de suas portentosas realizações, Juscelino deixou duas heranças nefastas para o país, uma econômica e outra política, que chegaram até os dias de hoje e à crise atual.
A má herança econômica foi a crença, até hoje endossada por muita gente, de que "um pouquinho de inflação" é essencial para o desenvolvimento. Mas produzir inflação nada mais é do que criar um imposto invisível sem passar pelo parlamento, de modo a obrigar o povo a cobrir os rombos das conta do governo com a perda de eu poder aquisitivo. A ingenuidade de JK a respeito foi bem apontada por Roberto Campos, então ministro: em seu livro de memórias, ele citou uma conversa que teve com o presidente, quando ele afirmou ser contra emitir dinheiro para aumentar o número de funcionários, mas a favor quando se tratava de promover o desenvolvimento. Como se a cédula que sai da prensa da Casa da Moeda estivesse ciente de servir ou não ao desenvolvimento do país, comentou o velho Bobby Fields...
A má herança política foi a crença, também até hoje endossada por muita gente, de que os crimes não devem ser apurados a fim de se preservar um clima político "bom", que permita ao governo tocar seu projeto. Assim, se há corrupção, é preciso deixar roubar, pois processar os corruptos vai prejudicar os negócios. Se há revoltas, é preciso anistiar os revoltosos, pois processa-los irá endurecer a oposição e prejudicar a governabilidade. É uma crença messiânica em um futuro radioso que precisa ser alcançado a todo custo, pois uma vez alcançado, todos os crimes do passado supostamente se tornarão pecadilhos sem importância...
JK jamais foi igualado, mas fez escola. Todo jogador de futebol quer ser Pelé, e todo político quer ser JK. As duas heranças nefastas moldaram a opinião de milhões de personalidades, influentes ou não, e em toda parte há gente fazendo hercúleos esforços retóricos para vender a ideia de que o governo, para ser tão benéfico quanto foi o governo JK, precisa abandonar a austeridade fiscal e deixar roubar, pois inflação e corrupção são necessárias ao desenvolvimento. Mas não haverá outro JK, apenas imitadores medíocres, até que o país se convença de que construir prisão pode ser mais urgente do que construir viaduto, e que moldar o caráter é mais importante do que moldar a infraestrutura física.
O artigo recorda a difícil eleição e o conturbado governo de Juscelino, perturbado no início por uma rebelião de militares da aeronáutica e até o final pela furiosa oposição de Lacerda. Apesar de tais percalços, os anos JK são hoje recordados como uma época radiosa, e o autor dá a sua versão para explicar: Juscelino preocupou-se em criar um clima de confiança que permitisse a colaboração de todos em prol de seu projeto político, e com este fim evitou confronto com seus adversários, anistiou revoltosos e não puniu corruptos.
Pareceu-me mais um subterfúgio para justificar a corrupção petista: o certo é deixar roubar, como fez Juscelino, que o país progredirá e todos serão felizes. Mas dá para pensar. Tirando a imensa diferença na estatura de seus protagonistas, há alguma semelhança entre os anos JK e a época presente? Eu penso que sim. Seja-se contra ou a favor, é preciso admitir que Juscelino Kubitchek foi um daqueles personagens cuja influência ultrapassa as gerações e molda os costumes políticos. Ele e Vargas foram os dois pilares do nacional-desenvolvimentismo, modelo econômico que marcou o país no século 20, dos anos 30 aos anos 80, tendo em Vargas sua vertente "nacionalista", estatizante, e em JK sua vertente "entreguista", aberta ao capital estrangeiro. Além disso, Juscelino pertence àquela galeria de personagens que são muito criticados em sua época, mas que depois de mortos ganham uma dimensão que não tiveram em vida. Hoje Juscelino é o Pelé dos presidentes, e uma vez transformada a História em romance, assume o papel do galã-mocinho, enquanto o papel de vilão cabe a Carlos Lacerda.
É claro que no mundo real as coisas são mais complicadas, e nem Juscelino foi santo, nem Lacerda foi demônio, ambos foram personagens de uma época específica que não podem ser julgados em separado do contexto desta época. É fora de dúvida, contudo, que Juscelino foi o último presidente que teve um projeto bem delineado e genuíno entusiasmo para realiza-lo. Mesmo seus adversários reconhecem a honestidade de suas intenções e sua generosidade natural. Juscelino foi tudo isso, sim. Mas também foi ingênuo. Ele fez o país progredir "50 anos em 5", mas pagou a conta com dinheiro de banco imobiliário - ou seja, fez o povo pagar a conta por intermédio da inflação. Como se sabe, a crise sobrou para seus sucessores e foi decisiva para o enfraquecimento e posterior queda dos dois governos que vieram em seguida, de Jânio Quadros e Goulart. Outro erro enorme foi a anistia dada aos revoltosos, que minou a disciplina nas forças armadas, e o resultado foi o que se viu. Desnecessário lembrar que os perdoados não perdoaram JK, que foi cassado e humilhado.
Tanto o país quanto o próprio JK pagaram um alto preço pela euforia dos 50 anos em 5. A par de suas portentosas realizações, Juscelino deixou duas heranças nefastas para o país, uma econômica e outra política, que chegaram até os dias de hoje e à crise atual.
A má herança econômica foi a crença, até hoje endossada por muita gente, de que "um pouquinho de inflação" é essencial para o desenvolvimento. Mas produzir inflação nada mais é do que criar um imposto invisível sem passar pelo parlamento, de modo a obrigar o povo a cobrir os rombos das conta do governo com a perda de eu poder aquisitivo. A ingenuidade de JK a respeito foi bem apontada por Roberto Campos, então ministro: em seu livro de memórias, ele citou uma conversa que teve com o presidente, quando ele afirmou ser contra emitir dinheiro para aumentar o número de funcionários, mas a favor quando se tratava de promover o desenvolvimento. Como se a cédula que sai da prensa da Casa da Moeda estivesse ciente de servir ou não ao desenvolvimento do país, comentou o velho Bobby Fields...
A má herança política foi a crença, também até hoje endossada por muita gente, de que os crimes não devem ser apurados a fim de se preservar um clima político "bom", que permita ao governo tocar seu projeto. Assim, se há corrupção, é preciso deixar roubar, pois processar os corruptos vai prejudicar os negócios. Se há revoltas, é preciso anistiar os revoltosos, pois processa-los irá endurecer a oposição e prejudicar a governabilidade. É uma crença messiânica em um futuro radioso que precisa ser alcançado a todo custo, pois uma vez alcançado, todos os crimes do passado supostamente se tornarão pecadilhos sem importância...
JK jamais foi igualado, mas fez escola. Todo jogador de futebol quer ser Pelé, e todo político quer ser JK. As duas heranças nefastas moldaram a opinião de milhões de personalidades, influentes ou não, e em toda parte há gente fazendo hercúleos esforços retóricos para vender a ideia de que o governo, para ser tão benéfico quanto foi o governo JK, precisa abandonar a austeridade fiscal e deixar roubar, pois inflação e corrupção são necessárias ao desenvolvimento. Mas não haverá outro JK, apenas imitadores medíocres, até que o país se convença de que construir prisão pode ser mais urgente do que construir viaduto, e que moldar o caráter é mais importante do que moldar a infraestrutura física.
sábado, 24 de outubro de 2015
Uma descida no Maelström
Enquanto o compasso geral de espera por que passa o país me deixa sem ter do que escrever, aproveito para ler alguns livros cuja leitura venho adiando a tempos. Um que eu estou gostando é Contos Obscuros de Edgard Allan Poe, uma coletânea de textos normalmente omitidos nas outras coletâneas.
Um dos contos (esse eu já conhecia) chama-se Uma Descida no Maelström, e conta a narrativa de um pescador norueguês que foi tragado por um terrível turbilhão de maré que existe dentro de um fiorde na Noruega, e conseguiu sobreviver. Uma passagem me chamou a atenção:
"Pode parecer estranho, mas então, quando nos achávamos nas verdadeiras fauces do abismo, senti-me com mais sangue-frio do que quando estávamos apenas nos aproximando dele. Tendo desistido de qualquer esperança, consegui dominar grande parte daquele terror que me acovardara a princípio"
Pois é precisamente assim que eu estou me sentindo em relação aos acontecimentos nacionais. Estamos descendo, lenta e inexoravelmente, em direção ao abismo, tal como o barco do azarado pescador, mas justo agora que tudo está paralisado - a presidente da república não age nem reage, o vice-presidente não se pronuncia, o presidente da câmara está prestes a perder o cargo, a oposição não vem com qualquer proposta, o ministro da economia não faz plano nenhum nem deixa o cargo - é que me sinto mais aliviado. Isso porque eu vejo que apesar de tudo isso, a situação não piora - apenas continuamos a descer, lentamente e sem atropelos, o abismo. Penso, então, que não devo temer a falta de ação do governo, devo mais é comemora-la, pois está visto que o Brasil funciona melhor sem governo do que com governo. Então, tal como o pescador norueguês escapou do abismo girando dentro de um barril para retardar a descida, talvez possamos também escapar de nosso abismo tocando nosso barco enquanto o governo permanece inerte. Que continue assim.
Um dos contos (esse eu já conhecia) chama-se Uma Descida no Maelström, e conta a narrativa de um pescador norueguês que foi tragado por um terrível turbilhão de maré que existe dentro de um fiorde na Noruega, e conseguiu sobreviver. Uma passagem me chamou a atenção:
"Pode parecer estranho, mas então, quando nos achávamos nas verdadeiras fauces do abismo, senti-me com mais sangue-frio do que quando estávamos apenas nos aproximando dele. Tendo desistido de qualquer esperança, consegui dominar grande parte daquele terror que me acovardara a princípio"
Pois é precisamente assim que eu estou me sentindo em relação aos acontecimentos nacionais. Estamos descendo, lenta e inexoravelmente, em direção ao abismo, tal como o barco do azarado pescador, mas justo agora que tudo está paralisado - a presidente da república não age nem reage, o vice-presidente não se pronuncia, o presidente da câmara está prestes a perder o cargo, a oposição não vem com qualquer proposta, o ministro da economia não faz plano nenhum nem deixa o cargo - é que me sinto mais aliviado. Isso porque eu vejo que apesar de tudo isso, a situação não piora - apenas continuamos a descer, lentamente e sem atropelos, o abismo. Penso, então, que não devo temer a falta de ação do governo, devo mais é comemora-la, pois está visto que o Brasil funciona melhor sem governo do que com governo. Então, tal como o pescador norueguês escapou do abismo girando dentro de um barril para retardar a descida, talvez possamos também escapar de nosso abismo tocando nosso barco enquanto o governo permanece inerte. Que continue assim.
sábado, 17 de outubro de 2015
Total indefinição
Não tenho escrito muito ultimamente, mas há um bom motivo: não tenho muito sobre o que escrever. O quadro atual é de total indefinição e muito pouco inspirador. O tema do impeachment voltou à baila, mas já chega requentado: a essa altura resta pouca dúvida de que a motivação desta proposta sustenta-se quase exclusivamente na ambição desmedida de Aécio Neves em ser presidente. Resta saber por que caminho. Se Dilma sair, entra Temer. Existe a possibilidade de invalidar-se toda a chapa petista de 2014, e aí sai Temer e entra Cunha. Mas Cunha já está caindo. Aécio quer tornar-se o novo presidente da câmara, para ser o próximo na linha de sucessão? Mas ele é senador.
E de resto, já apontei aqui inúmeras vezes a inconveniência política do impeachment. Além da desmoralização do país ter dois presidentes impedidos em um intervalo de trinta anos, será de todo contraproducente para os atuais oposicionistas. O PT vai passar de telhado a pedra, e atirar pedras o PT sempre soube fazer muito bem. O novo governo, seja qual for, não poderá oferecer nada de alvissareiro à população no curto prazo, e ficará sob fogo cerrado dos petistas lembrando os bons tempos de Lula, que poderá voltar em 2018. Sacar Dilma do poder agora poderá ser um enorme tiro no pé do PSDB.
Mas tudo são hipóteses, porque de concreto, não acontece nada. O ajuste não sai. A presidente não age nem reage. Levy não implementa um plano nem pede demissão. E tudo acontece o contrário do que devia ser: o PSDB, ao invés de ater-se à racionalidade de sua grande obra, o Plano Real, vem com propostas populistas irresponsáveis, sem perceber que agora é tarde demais para bancar o esquerdista. Lula, ao invés de apoiar Dilma nesse momento delicado, faz discurso de opositor, criticando a austeridade e o ajuste como se fossem evitáveis a essa altura. Tão ambicioso quanto Aécio, está de olho na sucessão presidencial, mas o risco de cair do pedestal é muito grande. A impressão geral é que o momento de Lula já passou, e que o momento de Aécio não vai chegar nunca, pois tal como competidor afoito, ele queimou a largada. Diante de quadro tão confuso, até o dólar parou de subir e ficou esperando alguma coisa acontecer.
Enquanto o futuro não chega, o remédio é escrever sobre o passado. Vou ver se descubro um tema.
E de resto, já apontei aqui inúmeras vezes a inconveniência política do impeachment. Além da desmoralização do país ter dois presidentes impedidos em um intervalo de trinta anos, será de todo contraproducente para os atuais oposicionistas. O PT vai passar de telhado a pedra, e atirar pedras o PT sempre soube fazer muito bem. O novo governo, seja qual for, não poderá oferecer nada de alvissareiro à população no curto prazo, e ficará sob fogo cerrado dos petistas lembrando os bons tempos de Lula, que poderá voltar em 2018. Sacar Dilma do poder agora poderá ser um enorme tiro no pé do PSDB.
Mas tudo são hipóteses, porque de concreto, não acontece nada. O ajuste não sai. A presidente não age nem reage. Levy não implementa um plano nem pede demissão. E tudo acontece o contrário do que devia ser: o PSDB, ao invés de ater-se à racionalidade de sua grande obra, o Plano Real, vem com propostas populistas irresponsáveis, sem perceber que agora é tarde demais para bancar o esquerdista. Lula, ao invés de apoiar Dilma nesse momento delicado, faz discurso de opositor, criticando a austeridade e o ajuste como se fossem evitáveis a essa altura. Tão ambicioso quanto Aécio, está de olho na sucessão presidencial, mas o risco de cair do pedestal é muito grande. A impressão geral é que o momento de Lula já passou, e que o momento de Aécio não vai chegar nunca, pois tal como competidor afoito, ele queimou a largada. Diante de quadro tão confuso, até o dólar parou de subir e ficou esperando alguma coisa acontecer.
Enquanto o futuro não chega, o remédio é escrever sobre o passado. Vou ver se descubro um tema.
sábado, 19 de setembro de 2015
E se...
Esse blog é sobre História, mas com frequência me atenho a assuntos do presente. Entretanto, não se pode compreender o presente - muito menos prever o futuro - sem conhecer, e entender, o que aconteceu no passado.
Recentemente um boato começou a circular nos forum´s que frequento: O PT já admite a hipótese da renúncia da presidente Dilma Rousseff.
Isto me sugere a repetição de um memorável episódio ocorrido no passado. E não estou me referindo ao fiasco da renúncia de Jânio Quadros. Se Dilma Rousseff chegar hoje na TV e anunciar: eu renuncio à presidência, o país poderá estar vivendo a mais espetacular virada de jogo desde o suicídio de Vargas em 1954. A população com certeza ficaria comovida com o gesto. O PT, de uma hora para a outra, voltaria a ser oposição, coisa que sabe fazer muito bem. E a atual oposição, que ora solta foguetes, de um momento para outro passaria de pedra a vidraça. A rebordosa sobraria para eles, e obviamente não teriam no curto prazo nada de bom para oferecer à população. Com o tempo, a lenda da presidenta que foi martirizada pelas forças reacionárias ganharia força, e o PT chegaria com tudo na eleição de 2018, oxalá com a economia já consertada e pronto para mais quatro anos de bonança.
Mas é pouco provável que tal sacrifício parta de uma pessoa que não hesitou em sacrificar o país inteiro para vencer a eleição.
Outro assunto que me chamou a atenção no mesmo fórum foi essa postagem sobre o longo processo de desindustrialização do Brasil. Merece atenção. A desindustrialização é um fato concreto, que aliás não acontece só por aqui. O setor secundário, a indústria, vem sendo suplantado pelo setor terciário, os serviços. Mas no caso do Brasil, a dita desindustrialização revela acima de tudo o fracasso do modelo de substituição de importações que vem desde a Era Vargas, e que o PT tentou ressuscitar. Impressiona como esse modelo esgotado, há muito abandonado pelos países emergentes da Ásia que hoje nos fazem comer poeira, continua a ser repetido por nossos especialistas em economia. Lembra o dia da marmota: sempre que esse pessoal dorme, acorda nos anos sessenta e volta a repetir os mesmos mantras e chavões que pareciam fazer sentido naqueles tempos. Mas não posso dizer que isso me surpreende: a História está cheia de exemplos de elites políticas e econômicas que se mostraram absolutamente incapazes de enxergar mudanças que ocorriam bem debaixo de seus narizes, como no século 19 os junkers prussianos e os fazendeiros sulistas norte-americanos. O exemplo atual são os líderes sul-americanos estacionados em suas utopias dos anos sessenta.
Recentemente um boato começou a circular nos forum´s que frequento: O PT já admite a hipótese da renúncia da presidente Dilma Rousseff.
Isto me sugere a repetição de um memorável episódio ocorrido no passado. E não estou me referindo ao fiasco da renúncia de Jânio Quadros. Se Dilma Rousseff chegar hoje na TV e anunciar: eu renuncio à presidência, o país poderá estar vivendo a mais espetacular virada de jogo desde o suicídio de Vargas em 1954. A população com certeza ficaria comovida com o gesto. O PT, de uma hora para a outra, voltaria a ser oposição, coisa que sabe fazer muito bem. E a atual oposição, que ora solta foguetes, de um momento para outro passaria de pedra a vidraça. A rebordosa sobraria para eles, e obviamente não teriam no curto prazo nada de bom para oferecer à população. Com o tempo, a lenda da presidenta que foi martirizada pelas forças reacionárias ganharia força, e o PT chegaria com tudo na eleição de 2018, oxalá com a economia já consertada e pronto para mais quatro anos de bonança.
Mas é pouco provável que tal sacrifício parta de uma pessoa que não hesitou em sacrificar o país inteiro para vencer a eleição.
Outro assunto que me chamou a atenção no mesmo fórum foi essa postagem sobre o longo processo de desindustrialização do Brasil. Merece atenção. A desindustrialização é um fato concreto, que aliás não acontece só por aqui. O setor secundário, a indústria, vem sendo suplantado pelo setor terciário, os serviços. Mas no caso do Brasil, a dita desindustrialização revela acima de tudo o fracasso do modelo de substituição de importações que vem desde a Era Vargas, e que o PT tentou ressuscitar. Impressiona como esse modelo esgotado, há muito abandonado pelos países emergentes da Ásia que hoje nos fazem comer poeira, continua a ser repetido por nossos especialistas em economia. Lembra o dia da marmota: sempre que esse pessoal dorme, acorda nos anos sessenta e volta a repetir os mesmos mantras e chavões que pareciam fazer sentido naqueles tempos. Mas não posso dizer que isso me surpreende: a História está cheia de exemplos de elites políticas e econômicas que se mostraram absolutamente incapazes de enxergar mudanças que ocorriam bem debaixo de seus narizes, como no século 19 os junkers prussianos e os fazendeiros sulistas norte-americanos. O exemplo atual são os líderes sul-americanos estacionados em suas utopias dos anos sessenta.
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
Ciclo social-democrata imperfeito?
É quase unanimidade que o país se aproxima do fim do ciclo petista. Mas em meio a tantas conclusões fáceis, felizmente ainda há aqueles que preferem fazer abordagens mais acuradas. Um interessante exemplo está nesse artigo do GGN, de Marco Aurélio Nogueira, no qual o autor sugere que estamos, na verdade, próximos ao fim de um ciclo mais amplo, de hegemonia PSDB-PT, que ele denominou ciclo social-democrata imperfeito.
Eu já havia me referido aqui em artigos anteriores ao que chamei a gangorra PSDB-PT, protocolo não escrito que tem garantido a hegemonia desses dois partidos na vida política brasileira nos últimos 20 anos. Havia pouco eu julgava que essa gangorra continuaria em movimento, mas diante da radicalização dos discursos, tenho que considerar a hipótese do fim de todo esse ciclo. Poderia, de fato, ter sido a porta de entrada para um steady-state virtuoso, tal como existe nos países mais desenvolvidos do mundo, onde o jogo político é claro, previsível e atende às expectativas da maioria da população, mas encerrando-se abruptamente nesse segundo mandato de Dilma, deixa no ar a incógnita do que virá em seguida.
Como explicar porque esse ciclo se manteve, e ao mesmo tempo, porque ele se quebrou?
O fato é que as duas metades desse ciclo - o PSDB e o PT - ao mesmo tempo em que se encaixam perfeitamente, se repelem violentamente. O PSDB aplainou o caminho para o PT, ao estabilizar a economia e promover a austeridade que era indispensável, mas que o PT, por questão de princípios, não poderia jamais promover sem se desmoralizar junto às bases. Mas o PT sempre procurou rejeitar com veemência qualquer insinuação de que teria uma herança benigna vinda dos tucanos, ainda que no primeiro governo Lula tenha mantido escrupulosamente a macro-economia herdada de FHC. Ao contrário, e surpreendentemente, o PT procurou se compor com aqueles políticos que figuram entre os mais conservadores do espectro político brasileiro, e que jamais foram social-democratas. No imaginário popular, permanece até hoje a noção de que PT e PSDB são o exato oposto um do outro.
Até o início do primeiro governo Lula, visitando a página e lendo os estatutos do partido, eu pude ver ali veementes negativas de que o PT defendia a social-democracia; ao contrário, os estatutos diziam textualmente que o propósito do partido era "acabar com o capitalismo". Entretanto, a implementação possível do ideário petista nesses 12 anos tem sido o que se pode conceituar de uma tardia social-democracia à europeia, com o aumento de impostos e benefícios diversos à população. Foi assim enquanto dinheiro houve. Já o PSDB, por seu turno, acusado de ser neoliberal e inimigo dos direitos sociais, jamais se assumiu como tal, embora tenha de fato implementado algumas políticas nesse sentido como condição indispensável para debelar a inflação. Assumidamente social-democrata, o PSDB nunca praticou a social-democracia enquanto esteve no poder - deixou esse papel para o PT, que sempre rejeitou ser social-democrata.
O fim do ciclo aconteceu no momento em que a força de repulsão finalmente sobrepujou o encaixe entre as duas metades - precisamente quando Dilma consumou o rompimento com os fundamentos do Plano Real e a responsabilidade fiscal herdada dos tucanos, retornando ao nacional-desenvolvimentismo esgotado desde os anos oitenta. O que virá agora? Um novo FHC preparando o terreno para um novo Lula? Ou vamos entrar em um terreno totalmente desconhecido?
Quem viver, verá. Só tenho a impressão de que não será dessa vez que nos tornaremos um Estado de Bem-Estar Social.
Eu já havia me referido aqui em artigos anteriores ao que chamei a gangorra PSDB-PT, protocolo não escrito que tem garantido a hegemonia desses dois partidos na vida política brasileira nos últimos 20 anos. Havia pouco eu julgava que essa gangorra continuaria em movimento, mas diante da radicalização dos discursos, tenho que considerar a hipótese do fim de todo esse ciclo. Poderia, de fato, ter sido a porta de entrada para um steady-state virtuoso, tal como existe nos países mais desenvolvidos do mundo, onde o jogo político é claro, previsível e atende às expectativas da maioria da população, mas encerrando-se abruptamente nesse segundo mandato de Dilma, deixa no ar a incógnita do que virá em seguida.
Como explicar porque esse ciclo se manteve, e ao mesmo tempo, porque ele se quebrou?
O fato é que as duas metades desse ciclo - o PSDB e o PT - ao mesmo tempo em que se encaixam perfeitamente, se repelem violentamente. O PSDB aplainou o caminho para o PT, ao estabilizar a economia e promover a austeridade que era indispensável, mas que o PT, por questão de princípios, não poderia jamais promover sem se desmoralizar junto às bases. Mas o PT sempre procurou rejeitar com veemência qualquer insinuação de que teria uma herança benigna vinda dos tucanos, ainda que no primeiro governo Lula tenha mantido escrupulosamente a macro-economia herdada de FHC. Ao contrário, e surpreendentemente, o PT procurou se compor com aqueles políticos que figuram entre os mais conservadores do espectro político brasileiro, e que jamais foram social-democratas. No imaginário popular, permanece até hoje a noção de que PT e PSDB são o exato oposto um do outro.
Até o início do primeiro governo Lula, visitando a página e lendo os estatutos do partido, eu pude ver ali veementes negativas de que o PT defendia a social-democracia; ao contrário, os estatutos diziam textualmente que o propósito do partido era "acabar com o capitalismo". Entretanto, a implementação possível do ideário petista nesses 12 anos tem sido o que se pode conceituar de uma tardia social-democracia à europeia, com o aumento de impostos e benefícios diversos à população. Foi assim enquanto dinheiro houve. Já o PSDB, por seu turno, acusado de ser neoliberal e inimigo dos direitos sociais, jamais se assumiu como tal, embora tenha de fato implementado algumas políticas nesse sentido como condição indispensável para debelar a inflação. Assumidamente social-democrata, o PSDB nunca praticou a social-democracia enquanto esteve no poder - deixou esse papel para o PT, que sempre rejeitou ser social-democrata.
O fim do ciclo aconteceu no momento em que a força de repulsão finalmente sobrepujou o encaixe entre as duas metades - precisamente quando Dilma consumou o rompimento com os fundamentos do Plano Real e a responsabilidade fiscal herdada dos tucanos, retornando ao nacional-desenvolvimentismo esgotado desde os anos oitenta. O que virá agora? Um novo FHC preparando o terreno para um novo Lula? Ou vamos entrar em um terreno totalmente desconhecido?
Quem viver, verá. Só tenho a impressão de que não será dessa vez que nos tornaremos um Estado de Bem-Estar Social.
sábado, 15 de agosto de 2015
Odiando os políticos e amando o Estado
Veio em boa hora o livro de Bruno Garschagen, Pare de Acreditar no Governo. O autor procura decifrar um paradoxo que tem desde muito desafiado o meu raciocínio: por que o povo brasileiro, com toda a razão, não confia nos políticos, mas segue idolatrando o Estado, como se o Estado não fosse constituído pelos mesmos políticos em quem não confia. A leitura acrescentou-me dados novos e fez-me rever certos conceitos que eu havia formulado em artigos anteriores publicados aqui.
Um dos conceitos que revi foi a antiga máxima de que, no Brasil, o Estado chegou antes do povo. De acordo com essa explicação, a administração colonial aqui estabeleceu prontamente um organismo burocrático destinado a governar, enquanto os governados propriamente ditos - a sociedade civil - só veio a se formar gradualmente e de forma precária, de sorte que obter uma colocação na máquina pública ou o favor de um alto funcionário tornou-se ao longo das gerações a fórmula mais segura para se vencer na vida. Não foi exatamente assim. O Estado chegou, sim, antes da sociedade civil, mas é preciso lembrar que esse Estado estabeleceu-se em uma terra imensa e desconhecida, e por conseguinte, tinha alcance bem limitado por aqueles vastos sertões escassamente povoados, onde quem efetivamente mandava eram os potentados locais ou quem quer tivesse homens armados sob seu comando. Os proprietários de sesmarias estavam cientes de que a manutenção de seus domínios dependia sobretudo deles próprios, pelo uso da força, e não de um rei longínquo ou de uma administração colonial incipiente. Portanto, se o Estado tendo se formado antes da sociedade civil é uma explicação para a atual idolatria dos brasileiros pelo Estado, não se trata de uma explicação completa. Falta algo.
A obra de Garschagen pacientemente reconstitui toda a construção ideológica que estabeleceu, desde séculos, o senso comum de que o Estado seria o portador da luz, ou da ordem e progresso, necessária para conduzir o país à civilização. Foi essa construção ideológica que efetivamente originou a obsessão nacional pelo Estado. É bem demonstrado como a primeira tentativa de "modernização", levada a cabo pelo marquês de Pombal, utilizou o ideário iluminista para justificar o crescimento do Estado em detrimento da sociedade civil. Convencido de que o atraso de Portugal originava-se do obscurantismo dos religiosos que controlavam a educação e eram refratários aos avanços científicos que se verificavam no norte da Europa, Pombal radicalizou: não só tirou o ensino das mãos dos jesuítas, como expulsou-os de Portugal e do Brasil. O corolário dessa medida foi a encampação do ensino pelo Estado. Não é preciso ressaltar que o indivíduo que estuda em uma escola patrocinada pelo Estado não demora a sonhar em trabalhar para aquele mesmo Estado, ou do Estado se servir para vencer na vida.
A manobra não deu certo. Portugal perdeu a tradição intelectual dos jesuítas que era inclusive admirada na Europa, sem conseguir alcançar a excelência científica de ingleses e franceses. O erro de Pombal foi não perceber que o cientificismo que ele admirava em outros países vinha no bojo de transformações econômicas e sociais que ele não quis ou não pôde implementar em Portugal. Tentou impor essas transformações de cima para baixo, e tudo o que é feito de cima para baixo traz como consequência inevitável o fortalecimento da máquina do Estado, encarregada de emular aquilo que não vem espontaneamente. Como bem expôs Garschagen:
Se o projeto científico foi fracassado, o projeto político iluminista foi vitorioso. Pombal deixou um profundo e nefasto legado, e herdeiros (...) o pombalismo foi o casamento do iluminismo francês com o mercantilismo e o patrimonialismo, que passaram a coabitar e a se retroalimentar em benefício das elites políticas e empresariais ligadas ao governo.
Nas academias brasileiras inauguradas no molde pombalino após a chegada de Dom João VI, floresceu outra filosofia cuja tentativa de implementação em terras tupiniquins trouxe como consequência o fortalecimento do Estado: o positivismo de Auguste Comte. Mas antes disso, os efeitos nefastos do estatismo já podiam ser sentidos na rejeição de nossas elites e do próprio imperador Pedro II à figura de Irineu Evangelista, Barão de Mauá, um dos raros empreendedores privados de sucesso que o país produziu na época. Era visto como um arrivista ambicioso que devia ser mantido com rédea curta. Consagrava-se assim a máxima, até hoje repetida, de que quando o empresário ganha, o país perde. A história do Banco do Brasil, nascido estatal, falido após a partida de Dom João VI, refundado por Mauá e novamente tomado pelo Estado, tornou-se um lamentável enredo muitas vezes repetido na história de nossas empresas, estatizadas quando prósperas, privatizadas quando falidas.
A influência do positivismo entre os proclamadores da república de 1889 é suficientemente conhecida, mas o legado deixado por esta doutrina no desenrolar da história republicana até os dias de hoje é menos comentado. Garschagen puxou o fio da meada. O positivismo foi a primeira doutrina de engenharia social da História, propugnando a construção do "novo homem", que assim reformado, por sua vez reformaria as estruturas políticas e sociais. Coerente com esta premissa, o positivismo priorizava a educação como instrumento para a pretendida transformação da sociedade, e nesse ponto confundiam-se as mensagens doutrinárias com a ciência propriamente dita. Mas Garschagen mostrou que não foi bem esse o caminho escolhido pelos primeiros adeptos declarados do positivismo a chegar ao poder no Brasil, todos no Rio Grande do Sul. O mais notório deles foi Borges de Medeiros, cinco vezes governador estadual. Ao invés de priorizar a educação, ele preferiu aumentar o tamanho do Estado, convencido de que o Estado, composto por indivíduos virtuosos e esclarecidos, cumpriria um papel de tutela sobre todo o restante da sociedade. A ideia era essa.
Borges de Medeiros, diga-se de passagem, não foi um hipócrita - ao contrário, era tão austero que sequer admitia a aquisição de um carro oficial para o governador - mas tudo o que conseguiu foi cercar-se de funcionários subservientes e projetar para o futuro a miragem de um Estado benfazejo e redentor. Teria muitos seguidores - o mais conhecido deles foi Getúlio Vargas, também gaúcho. Não há dúvida de que Vargas foi o patrono-mor do estatismo no Brasil, no que é reconhecido até por seus adversários. Afinal, no cenário do país rural da República Velha, com o Estado estilhaçado e repartido entre miríades de coronéis do sertão que governavam o Estado como governavam seus clãs familiares, é difícil negar que uma figura assim não seria imprescendível para modernizar e esboçar um projeto de país. Logo no início da Era Vargas, verificou-se o aumento do número de funcionários públicos, seguido pela criação de empresas estatais, seja pela encampação de empresas privadas existentes ou pela fundação de novas empresas por parte do Estado. Mas Vargas foi além: também procurou interferir na cultura, definindo o que seria uma genuína cultura brasileira, e foi o pioneiro na cooptação pelo Estado de intelectuais e artistas. Garschagen aponta bem como à medida em que as referências ao positivismo desaparecem dos discursos de Vargas, o ideário positivista materializa-se em suas realizações, em particular a proposta Comtiana de "incorporar o proletariado à civilização ocidental". Foi com esse espírito que Vargas criou sua legislação trabalhista, copiada da Carta Del Lavoro de Mussolini. Consoante com a peculiar implementação do positivismo em terras brasileiras, a incorporação do proletariado não se faria com progressos na educação ou no setor privado da economia, mas com o crescimento do papel do Estado - e desde então ficou gravada na mente do zé-povo que o Estado é o aliado, e o patrão é o inimigo. Quanto mais Estado, supostamente mais ele será defendido da sanha dos patrões.
O estatismo de Vargas foi sucedido pelo de Kubitchek, e mais tarde, pelo dos militares, que se opunham a esses dois primeiros mas nada tinham contra o estatismo - ao contrário, foi durante o período militar que o capitalismo de estado, denominado nacional-desenvolvimentismo, foi levado ao auge nos anos setenta, bem como ao esgotamento nos anos oitenta. Durante pelo menos 50 anos tal modelo foi hegemônico no Brasil, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitchek, Castelo Branco). Bem ou mal alavancou o crescimento econômico e deu partida em nossa industrialização. Mas não sem cobrar seu preço. O Estado não produz riqueza, e precisa ser sustentado pela sociedade por intermédio de impostos. Um Estado que se agiganta necessariamente suga a poupança do país, endivida-se, e se não consegue fechar suas contas, tem a prerrogativa de emitir moeda a fim de forçar os cidadãos a cobrir seus deficits com a perda de seu poder aquisitivo. Em um país onde o Estado é o principal ator econômico, dezenas de empresas privadas dependem exclusivamente de contratos com o Estado para sobreviver, e obviamente farão tudo para conseguir tais contratos. Assim sendo, um coro de duas palavras acompanhou o nacional-desenvolvimentismo desde o seu nascimento - inflação e corrupção - tal como uma maldição, aumentando de tom ao longo dos anos até chegar aos dias atuais.
O colapso do nacional-estatismo nos anos oitenta levou pela primeira vez alguns políticos a convencerem-se de que o Estado tinha que ser encolhido. O primeiro a levantar a bola foi o atrapalhado Fernando Collor, ironicamente um representante do que nossas elites patrimonialistas tinham de mais atrasado. Não deu certo, mas alguma coisa tinha que necessariamente ser feita, e veio Fernando Henrique Cardoso, eleito por um partido social-democrata que jamais havia brandido o discurso do liberalismo. Pela primeira vez em nossa História, o Estado refluiu. Despesas foram cortadas e empresas foram privatizadas, permitindo o controle da inflação. É verdade que os processos de privatização foram cheios de irregularidades e frequentemente financiados pelo BNDES - o próprio Estado paga para livrar-se de suas empresas - mas certo ou errado, os objetivos foram atingidos. Apesar do óbvio sucesso, nem o PSDB nem o presidente assumiram publicamente sua postura anti-estatista, exceto por um arroubo de Fernando Henrique, quando declarou sua intenção de por fim à Era Vargas, afirmação que foi recebida como uma blasfêmia por toda a sociedade brasileira, e valeu a FHC o epíteto de "neoliberal", do qual ele não mais se livraria. Seu próprio partido procuraria livrar-se de seu legado, o que ficou patente na imagem de Alkmin no último debate da campanha de 2006, quando ele compareceu com um bottom da Caixa Econômica Federal. Hoje em dia, não há personagem mais odiado pela esquerda brasileira do que Fernando Henrique, muito embora tenha sido ele quem mais preparou o terreno para a chegada desta mesma esquerda ao poder em 2002. Conhecendo-se a idolatria dos brasileiros pelo Estado, não é difícil entender essa contradição: na visão de seus detratores, FHC não foi somente um mau presidente, mas também um sacrílego.
Com a vitória do PT em 2002, chegou ao fim o hiato de Fernando Henrique: o Estado voltou a ser reverenciado, e voltou a crescer, produzindo nos brasileiros uma sensação de retorno à razão. Aumentou o número de funcionários públicos, bem como o número de empresas estatais. Afirmou-se que o governo Lula exercitava uma espécie de getulismo tardio, o que é em grande medida verdadeiro, mas foi no governo Dilma que se iniciou efetivamente o desmonte da era FHC e o retorno ao nacional-desenvolvimentismo, com o BNDES emitindo moeda sem lastro para empresta-la a juros subsidiados para o séquito de empresários amigos-do-rei, tal como nos bons tempos do "milagre" dos militares. A consequência inevitável tem sido a reprodução do mesmo cenário que caracterizou o esgotamento deste modelo no final dos anos oitenta, a conhecida combinação de crescimento baixo com inflação alta - entretanto, até o momento, poucos tem culpado o inchaço do Estado por esta situação - ao contrário, continuam pedindo mais Estado. Nada surpreendente. Como foi demonstrado na obra de Garschagen, o povo segue amando o Estado porque a idolatria ao Estado foi uma construção ideológica, e não um senso comum estabelecido pela experiência prática - se assim fosse, a desilusão dos brasileiros com os políticos muito coerentemente se traduziria na desilusão com a capacidade do Estado de resolver nossos problemas. A bem dizer, foram várias construções ideológicas que se emendaram uma na outra, cronologicamente: primeiro o iluminismo de Pombal, depois o positivismo de Comte, e por fim o casamento perfeito do anti-capitalismo do PT com o pré-capitalismo de nossas elites patrimonialistas, dando origem a um Estado inchado e perdulário que satisfaz a ambos.
Sendo uma construção ideológica, o Estado, na mente dos brasileiros, permanece como uma abstração pairando acima da realidade decepcionante de nossos políticos que se sucedem no governo perpetuando invariavelmente os mesmos vícios, independente do partido. Não importa: os políticos são maus, mas o Estado tem que ser bom. Não sabemos resolver nossos próprios problemas, alguém tem que resolvê-los por nós. Poucos compreendem o que o Estado é na verdade: mero gestor de uma receita de impostos, assim como o síndico de seu prédio é o gestor de uma receita de taxas condominiais. Penso que nossa vida não vai melhorar enquanto não tivermos nossos governantes na mesma conta em que temos o síndico de nosso prédio.
Um dos conceitos que revi foi a antiga máxima de que, no Brasil, o Estado chegou antes do povo. De acordo com essa explicação, a administração colonial aqui estabeleceu prontamente um organismo burocrático destinado a governar, enquanto os governados propriamente ditos - a sociedade civil - só veio a se formar gradualmente e de forma precária, de sorte que obter uma colocação na máquina pública ou o favor de um alto funcionário tornou-se ao longo das gerações a fórmula mais segura para se vencer na vida. Não foi exatamente assim. O Estado chegou, sim, antes da sociedade civil, mas é preciso lembrar que esse Estado estabeleceu-se em uma terra imensa e desconhecida, e por conseguinte, tinha alcance bem limitado por aqueles vastos sertões escassamente povoados, onde quem efetivamente mandava eram os potentados locais ou quem quer tivesse homens armados sob seu comando. Os proprietários de sesmarias estavam cientes de que a manutenção de seus domínios dependia sobretudo deles próprios, pelo uso da força, e não de um rei longínquo ou de uma administração colonial incipiente. Portanto, se o Estado tendo se formado antes da sociedade civil é uma explicação para a atual idolatria dos brasileiros pelo Estado, não se trata de uma explicação completa. Falta algo.
A obra de Garschagen pacientemente reconstitui toda a construção ideológica que estabeleceu, desde séculos, o senso comum de que o Estado seria o portador da luz, ou da ordem e progresso, necessária para conduzir o país à civilização. Foi essa construção ideológica que efetivamente originou a obsessão nacional pelo Estado. É bem demonstrado como a primeira tentativa de "modernização", levada a cabo pelo marquês de Pombal, utilizou o ideário iluminista para justificar o crescimento do Estado em detrimento da sociedade civil. Convencido de que o atraso de Portugal originava-se do obscurantismo dos religiosos que controlavam a educação e eram refratários aos avanços científicos que se verificavam no norte da Europa, Pombal radicalizou: não só tirou o ensino das mãos dos jesuítas, como expulsou-os de Portugal e do Brasil. O corolário dessa medida foi a encampação do ensino pelo Estado. Não é preciso ressaltar que o indivíduo que estuda em uma escola patrocinada pelo Estado não demora a sonhar em trabalhar para aquele mesmo Estado, ou do Estado se servir para vencer na vida.
A manobra não deu certo. Portugal perdeu a tradição intelectual dos jesuítas que era inclusive admirada na Europa, sem conseguir alcançar a excelência científica de ingleses e franceses. O erro de Pombal foi não perceber que o cientificismo que ele admirava em outros países vinha no bojo de transformações econômicas e sociais que ele não quis ou não pôde implementar em Portugal. Tentou impor essas transformações de cima para baixo, e tudo o que é feito de cima para baixo traz como consequência inevitável o fortalecimento da máquina do Estado, encarregada de emular aquilo que não vem espontaneamente. Como bem expôs Garschagen:
Se o projeto científico foi fracassado, o projeto político iluminista foi vitorioso. Pombal deixou um profundo e nefasto legado, e herdeiros (...) o pombalismo foi o casamento do iluminismo francês com o mercantilismo e o patrimonialismo, que passaram a coabitar e a se retroalimentar em benefício das elites políticas e empresariais ligadas ao governo.
Nas academias brasileiras inauguradas no molde pombalino após a chegada de Dom João VI, floresceu outra filosofia cuja tentativa de implementação em terras tupiniquins trouxe como consequência o fortalecimento do Estado: o positivismo de Auguste Comte. Mas antes disso, os efeitos nefastos do estatismo já podiam ser sentidos na rejeição de nossas elites e do próprio imperador Pedro II à figura de Irineu Evangelista, Barão de Mauá, um dos raros empreendedores privados de sucesso que o país produziu na época. Era visto como um arrivista ambicioso que devia ser mantido com rédea curta. Consagrava-se assim a máxima, até hoje repetida, de que quando o empresário ganha, o país perde. A história do Banco do Brasil, nascido estatal, falido após a partida de Dom João VI, refundado por Mauá e novamente tomado pelo Estado, tornou-se um lamentável enredo muitas vezes repetido na história de nossas empresas, estatizadas quando prósperas, privatizadas quando falidas.
A influência do positivismo entre os proclamadores da república de 1889 é suficientemente conhecida, mas o legado deixado por esta doutrina no desenrolar da história republicana até os dias de hoje é menos comentado. Garschagen puxou o fio da meada. O positivismo foi a primeira doutrina de engenharia social da História, propugnando a construção do "novo homem", que assim reformado, por sua vez reformaria as estruturas políticas e sociais. Coerente com esta premissa, o positivismo priorizava a educação como instrumento para a pretendida transformação da sociedade, e nesse ponto confundiam-se as mensagens doutrinárias com a ciência propriamente dita. Mas Garschagen mostrou que não foi bem esse o caminho escolhido pelos primeiros adeptos declarados do positivismo a chegar ao poder no Brasil, todos no Rio Grande do Sul. O mais notório deles foi Borges de Medeiros, cinco vezes governador estadual. Ao invés de priorizar a educação, ele preferiu aumentar o tamanho do Estado, convencido de que o Estado, composto por indivíduos virtuosos e esclarecidos, cumpriria um papel de tutela sobre todo o restante da sociedade. A ideia era essa.
Borges de Medeiros, diga-se de passagem, não foi um hipócrita - ao contrário, era tão austero que sequer admitia a aquisição de um carro oficial para o governador - mas tudo o que conseguiu foi cercar-se de funcionários subservientes e projetar para o futuro a miragem de um Estado benfazejo e redentor. Teria muitos seguidores - o mais conhecido deles foi Getúlio Vargas, também gaúcho. Não há dúvida de que Vargas foi o patrono-mor do estatismo no Brasil, no que é reconhecido até por seus adversários. Afinal, no cenário do país rural da República Velha, com o Estado estilhaçado e repartido entre miríades de coronéis do sertão que governavam o Estado como governavam seus clãs familiares, é difícil negar que uma figura assim não seria imprescendível para modernizar e esboçar um projeto de país. Logo no início da Era Vargas, verificou-se o aumento do número de funcionários públicos, seguido pela criação de empresas estatais, seja pela encampação de empresas privadas existentes ou pela fundação de novas empresas por parte do Estado. Mas Vargas foi além: também procurou interferir na cultura, definindo o que seria uma genuína cultura brasileira, e foi o pioneiro na cooptação pelo Estado de intelectuais e artistas. Garschagen aponta bem como à medida em que as referências ao positivismo desaparecem dos discursos de Vargas, o ideário positivista materializa-se em suas realizações, em particular a proposta Comtiana de "incorporar o proletariado à civilização ocidental". Foi com esse espírito que Vargas criou sua legislação trabalhista, copiada da Carta Del Lavoro de Mussolini. Consoante com a peculiar implementação do positivismo em terras brasileiras, a incorporação do proletariado não se faria com progressos na educação ou no setor privado da economia, mas com o crescimento do papel do Estado - e desde então ficou gravada na mente do zé-povo que o Estado é o aliado, e o patrão é o inimigo. Quanto mais Estado, supostamente mais ele será defendido da sanha dos patrões.
O estatismo de Vargas foi sucedido pelo de Kubitchek, e mais tarde, pelo dos militares, que se opunham a esses dois primeiros mas nada tinham contra o estatismo - ao contrário, foi durante o período militar que o capitalismo de estado, denominado nacional-desenvolvimentismo, foi levado ao auge nos anos setenta, bem como ao esgotamento nos anos oitenta. Durante pelo menos 50 anos tal modelo foi hegemônico no Brasil, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitchek, Castelo Branco). Bem ou mal alavancou o crescimento econômico e deu partida em nossa industrialização. Mas não sem cobrar seu preço. O Estado não produz riqueza, e precisa ser sustentado pela sociedade por intermédio de impostos. Um Estado que se agiganta necessariamente suga a poupança do país, endivida-se, e se não consegue fechar suas contas, tem a prerrogativa de emitir moeda a fim de forçar os cidadãos a cobrir seus deficits com a perda de seu poder aquisitivo. Em um país onde o Estado é o principal ator econômico, dezenas de empresas privadas dependem exclusivamente de contratos com o Estado para sobreviver, e obviamente farão tudo para conseguir tais contratos. Assim sendo, um coro de duas palavras acompanhou o nacional-desenvolvimentismo desde o seu nascimento - inflação e corrupção - tal como uma maldição, aumentando de tom ao longo dos anos até chegar aos dias atuais.
O colapso do nacional-estatismo nos anos oitenta levou pela primeira vez alguns políticos a convencerem-se de que o Estado tinha que ser encolhido. O primeiro a levantar a bola foi o atrapalhado Fernando Collor, ironicamente um representante do que nossas elites patrimonialistas tinham de mais atrasado. Não deu certo, mas alguma coisa tinha que necessariamente ser feita, e veio Fernando Henrique Cardoso, eleito por um partido social-democrata que jamais havia brandido o discurso do liberalismo. Pela primeira vez em nossa História, o Estado refluiu. Despesas foram cortadas e empresas foram privatizadas, permitindo o controle da inflação. É verdade que os processos de privatização foram cheios de irregularidades e frequentemente financiados pelo BNDES - o próprio Estado paga para livrar-se de suas empresas - mas certo ou errado, os objetivos foram atingidos. Apesar do óbvio sucesso, nem o PSDB nem o presidente assumiram publicamente sua postura anti-estatista, exceto por um arroubo de Fernando Henrique, quando declarou sua intenção de por fim à Era Vargas, afirmação que foi recebida como uma blasfêmia por toda a sociedade brasileira, e valeu a FHC o epíteto de "neoliberal", do qual ele não mais se livraria. Seu próprio partido procuraria livrar-se de seu legado, o que ficou patente na imagem de Alkmin no último debate da campanha de 2006, quando ele compareceu com um bottom da Caixa Econômica Federal. Hoje em dia, não há personagem mais odiado pela esquerda brasileira do que Fernando Henrique, muito embora tenha sido ele quem mais preparou o terreno para a chegada desta mesma esquerda ao poder em 2002. Conhecendo-se a idolatria dos brasileiros pelo Estado, não é difícil entender essa contradição: na visão de seus detratores, FHC não foi somente um mau presidente, mas também um sacrílego.
Com a vitória do PT em 2002, chegou ao fim o hiato de Fernando Henrique: o Estado voltou a ser reverenciado, e voltou a crescer, produzindo nos brasileiros uma sensação de retorno à razão. Aumentou o número de funcionários públicos, bem como o número de empresas estatais. Afirmou-se que o governo Lula exercitava uma espécie de getulismo tardio, o que é em grande medida verdadeiro, mas foi no governo Dilma que se iniciou efetivamente o desmonte da era FHC e o retorno ao nacional-desenvolvimentismo, com o BNDES emitindo moeda sem lastro para empresta-la a juros subsidiados para o séquito de empresários amigos-do-rei, tal como nos bons tempos do "milagre" dos militares. A consequência inevitável tem sido a reprodução do mesmo cenário que caracterizou o esgotamento deste modelo no final dos anos oitenta, a conhecida combinação de crescimento baixo com inflação alta - entretanto, até o momento, poucos tem culpado o inchaço do Estado por esta situação - ao contrário, continuam pedindo mais Estado. Nada surpreendente. Como foi demonstrado na obra de Garschagen, o povo segue amando o Estado porque a idolatria ao Estado foi uma construção ideológica, e não um senso comum estabelecido pela experiência prática - se assim fosse, a desilusão dos brasileiros com os políticos muito coerentemente se traduziria na desilusão com a capacidade do Estado de resolver nossos problemas. A bem dizer, foram várias construções ideológicas que se emendaram uma na outra, cronologicamente: primeiro o iluminismo de Pombal, depois o positivismo de Comte, e por fim o casamento perfeito do anti-capitalismo do PT com o pré-capitalismo de nossas elites patrimonialistas, dando origem a um Estado inchado e perdulário que satisfaz a ambos.
Sendo uma construção ideológica, o Estado, na mente dos brasileiros, permanece como uma abstração pairando acima da realidade decepcionante de nossos políticos que se sucedem no governo perpetuando invariavelmente os mesmos vícios, independente do partido. Não importa: os políticos são maus, mas o Estado tem que ser bom. Não sabemos resolver nossos próprios problemas, alguém tem que resolvê-los por nós. Poucos compreendem o que o Estado é na verdade: mero gestor de uma receita de impostos, assim como o síndico de seu prédio é o gestor de uma receita de taxas condominiais. Penso que nossa vida não vai melhorar enquanto não tivermos nossos governantes na mesma conta em que temos o síndico de nosso prédio.
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Aonde iremos parar?
O inferno astral do governo também é o inferno astral do país. A cada dia uma surpresa nova. Ainda que possamos sentir satisfação de ver que a polícia federal está trabalhando e a impunidade está acabando, fica a angústia de não ver a luz no final do túnel: aonde iremos parar?
Lembro-me aquele ditado, nunca deseje demais uma coisa, você corre o risco de obter o que deseja. Nós sempre desejamos o fim da impunidade, certo? Pois agora estamos finalmente conseguindo. Mas fico consternado de observar tantos comentaristas por aí maldizendo o bendito fim da impunidade, enquanto cresce a lenda de que tudo não passa de uma conspiração para tirar o PT do poder, acabar com as empresas nacionais, liquidar nosso sonho de dominar a tecnologia do submarino nuclear, etc. Será então que tudo não passou de uma miragem, nós nunca quisemos realmente combater a corrupção, ao contrário, sempre gostamos dela e já estamos com saudade?
Quando a máscara cai, há sempre um instante de suspense, porque nunca se sabe o que vai surgir por detrás na máscara. Disso eu tenho medo, pois sei que não se trata de uma lenda ou criatura mítica, ele existe mesmo. Refiro-me ao Brasil profundo que o PT vem se esforçando para trazer à tona. O Brasil macunaímico, que despreza o honesto e exalta o malandro. É como um inconsciente coletivo, que nunca deveria ser trazido à luz. Por toda parte pipocam análises afirmando que o combate à corrupção arruinará o Brasil, tal como a Operação Mãos Limpas supostamente arruinou a Itália. O pessoal - e não se trata de meia dúzia - já passou da fase de negar tudo na cara dura. Estão passando da etapa de acusar os outros de terem feito a mesma coisa. A etapa seguinte é afirmar com cara limpa que corrupção é bom. Assumiremos, então, que somos mesmo uns ordinários, e que governar para o povo é governar roubando?
Vou sentir saudade da hipocrisia, ela não é tão má. A hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.
Lembro-me aquele ditado, nunca deseje demais uma coisa, você corre o risco de obter o que deseja. Nós sempre desejamos o fim da impunidade, certo? Pois agora estamos finalmente conseguindo. Mas fico consternado de observar tantos comentaristas por aí maldizendo o bendito fim da impunidade, enquanto cresce a lenda de que tudo não passa de uma conspiração para tirar o PT do poder, acabar com as empresas nacionais, liquidar nosso sonho de dominar a tecnologia do submarino nuclear, etc. Será então que tudo não passou de uma miragem, nós nunca quisemos realmente combater a corrupção, ao contrário, sempre gostamos dela e já estamos com saudade?
Quando a máscara cai, há sempre um instante de suspense, porque nunca se sabe o que vai surgir por detrás na máscara. Disso eu tenho medo, pois sei que não se trata de uma lenda ou criatura mítica, ele existe mesmo. Refiro-me ao Brasil profundo que o PT vem se esforçando para trazer à tona. O Brasil macunaímico, que despreza o honesto e exalta o malandro. É como um inconsciente coletivo, que nunca deveria ser trazido à luz. Por toda parte pipocam análises afirmando que o combate à corrupção arruinará o Brasil, tal como a Operação Mãos Limpas supostamente arruinou a Itália. O pessoal - e não se trata de meia dúzia - já passou da fase de negar tudo na cara dura. Estão passando da etapa de acusar os outros de terem feito a mesma coisa. A etapa seguinte é afirmar com cara limpa que corrupção é bom. Assumiremos, então, que somos mesmo uns ordinários, e que governar para o povo é governar roubando?
Vou sentir saudade da hipocrisia, ela não é tão má. A hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.
sábado, 25 de julho de 2015
Sem dinheiro não se faz nada
Sem dinheiro não faz nada, bradou Dilma em um raro momento de sinceridade. Isso vem provar que até os mais cínicos enganadores falam a verdade quando encurralados pelos fatos. Mesmo ato falho ela já havia cometido em outra ocasião, quando afirmou: "nós esgotamos todos os recursos que tínhamos para evitar a crise de 2008", querendo referir-se ao país como um todo, mas esquecendo-se de que o "nós" aí era o governo, chefiado por ela própria. De fato, sua capacidade de fornecer desculpas esgotou-se, pois aqueles a quem ela poderia culpar, como a crise de 2008 e o governo do PSDB, já ficaram bem atrás no passado.
Nos últimos anos presenciamos no Brasil mais um voo de galinha, como os demais saudado como nossa entrada definitiva no clube dos países ricos; cada um desse episódios, contudo, sucedeu em um contexto político bem distinto. O mote desta vez foi a redistribuição de riqueza, e funcionou por algum tempo, até que esbarramos em uma realidade cabal: só se pode distribuir a riqueza já produzida. Quando esta se acaba, resta-nos repetir a frase de Dilma: sem dinheiro não se faz nada. O fato é que o país inteiro beneficiou-se de um prolongado período de crescimento na economia mundial e de subida de preços de nossa commodities, e o PT capitalizou em seu favor essa bonança, mas tal como o resto do país, apenas surfou a onda que se ergueu em sua direção. Outros voos de galinha ocorreram nos anos JK e na época do "milagre" dos militares. Nessas ocasiões, o incremento do padrão de vida da população foi puxado por um forte crescimento econômico que fez aumentar a oferta de empregos, mas que não foram paralelos a um equilíbrio nas contas públicas - junto aumentou a inflação, ou o endividamento, ou ambos. Por este motivo não foram auto-sustentáveis, pois o crescimento econômico não coexiste com o descalabro financeiro por muito tempo.
No ciclo de desenvolvimento dos anos Lula, tivemos uma novidade. O crescimento do PIB não foi tão forte quanto nos ciclos anteriores, mas desta vez o financeiro estava em ordem. Pela primeira vez em nossa História, a população experimentou um consistente aumento em seu padrão de vida puxado pela estabilidade econômica, que permitiu uma expansão do crédito e consequente aumento do consumo. Mas Dilma ressuscitou o nacional-estatismo que havia sido responsável pelo fracasso dos ciclos anteriores, com seu corolário de autofinanciamento dos bancos públicos pela emissão de moeda, produzindo inflação a fim de forçar a população a cobrir os deficit´s das contas do governo mediante a perda de seu poder aquisitivo. É uma ideia cepalina de 60 anos atrás, quando Celso Furtado afirmava que "um pouquinho de inflação" era necessária ao desenvolvimento e que a desvalorização da moeda era necessária para aumentar as exportações. Podia fazer algum sentido naquele tempo em que nossa indústria era incipiente e nossa carga tributária era baixa, mas no momento atual, o primeiro efeito de tal política será liquidar todo o incremento de padrão de vida experimentado pela população desde o Plano Real.
Quando vão acabar esses voos de galinha? Talvez no dia em que nos convencermos de que sem dinheiro não se faz nada.
Nos últimos anos presenciamos no Brasil mais um voo de galinha, como os demais saudado como nossa entrada definitiva no clube dos países ricos; cada um desse episódios, contudo, sucedeu em um contexto político bem distinto. O mote desta vez foi a redistribuição de riqueza, e funcionou por algum tempo, até que esbarramos em uma realidade cabal: só se pode distribuir a riqueza já produzida. Quando esta se acaba, resta-nos repetir a frase de Dilma: sem dinheiro não se faz nada. O fato é que o país inteiro beneficiou-se de um prolongado período de crescimento na economia mundial e de subida de preços de nossa commodities, e o PT capitalizou em seu favor essa bonança, mas tal como o resto do país, apenas surfou a onda que se ergueu em sua direção. Outros voos de galinha ocorreram nos anos JK e na época do "milagre" dos militares. Nessas ocasiões, o incremento do padrão de vida da população foi puxado por um forte crescimento econômico que fez aumentar a oferta de empregos, mas que não foram paralelos a um equilíbrio nas contas públicas - junto aumentou a inflação, ou o endividamento, ou ambos. Por este motivo não foram auto-sustentáveis, pois o crescimento econômico não coexiste com o descalabro financeiro por muito tempo.
No ciclo de desenvolvimento dos anos Lula, tivemos uma novidade. O crescimento do PIB não foi tão forte quanto nos ciclos anteriores, mas desta vez o financeiro estava em ordem. Pela primeira vez em nossa História, a população experimentou um consistente aumento em seu padrão de vida puxado pela estabilidade econômica, que permitiu uma expansão do crédito e consequente aumento do consumo. Mas Dilma ressuscitou o nacional-estatismo que havia sido responsável pelo fracasso dos ciclos anteriores, com seu corolário de autofinanciamento dos bancos públicos pela emissão de moeda, produzindo inflação a fim de forçar a população a cobrir os deficit´s das contas do governo mediante a perda de seu poder aquisitivo. É uma ideia cepalina de 60 anos atrás, quando Celso Furtado afirmava que "um pouquinho de inflação" era necessária ao desenvolvimento e que a desvalorização da moeda era necessária para aumentar as exportações. Podia fazer algum sentido naquele tempo em que nossa indústria era incipiente e nossa carga tributária era baixa, mas no momento atual, o primeiro efeito de tal política será liquidar todo o incremento de padrão de vida experimentado pela população desde o Plano Real.
Quando vão acabar esses voos de galinha? Talvez no dia em que nos convencermos de que sem dinheiro não se faz nada.
quinta-feira, 16 de julho de 2015
A volta da direita?
No cenário atual de enfraquecimento do governo do PT, ouve-se aqui e ali uma grita medrosa contra a volta da direita e um suposto golpe que estaria sendo tramado. Entretanto, ninguém consegue ver direito a cara dessa nova direita. Aparentemente é o PSDB, o único partido até agora a falar em impeachment da presidente Dilma, mas se é assim, o que é do discurso de direita do PSDB? Esse discurso, quando se ouve por aí, parte de intelectuais desvinculados de quadros partidários ou de um ou outro líder político ou religioso meio folclórico, o PSDB apenas repete em linhas gerais a mesma e vaga declaração de princípios de todo partido de centro-esquerda, e na prática não tem projeto nenhum para o país. Suposto herdeiro do país após o esgotamento da era petista, o PSDB revela um desconcertante abulismo.
O caso é que a direita, no Brasil, desde o regime militar tornou-se um xingamento. Não que tenha deixado de existir, mas perdeu o rosto, já que ninguém mais assume-se como de direita - é politicamente incorreto no mínimo. Todos viraram esquerda. Desde então, sempre que há um recuo na esquerda, o que se observa é uma espécie de refluxo, um deslocamento de ar que vai preencher o vácuo recém-criado, sem que se possa discernir com precisão de onde ele vem nem para onde vai. Foi assim nas manifestações de 2013, cuja amplitude bem revelava o tamanho do descontentamento, sem que nenhum dos manifestantes ousasse expressar sua condenação ao governo. Desnecessário dizer que aquele cidadão que está descontente, mas não sabe dizer com o que, é a massa de manobra ideal que todo governo sonhou.
Mas agora o cenário está mudando. Nas manifestações deste ano, os manifestantes já conseguem dizer Fora Dilma. Ao que parece, a direita quer mesmo renascer. Mas quem a representará? O último partido assumidamente de direita que tivemos foi a UDN, e lá se vão 50 anos. O PSDB parece movido mais pela ambição pessoal de Aécio Neves e tampouco mostra-se disposto a exibir um projeto de direita para suceder ao atual governo: refiro-me ao liberalismo econômico, redução do tamanho do Estado, livre mercado, responsabilidade fiscal, desregulamentação. Tudo o que o PSDB pregou no tempo de Fernando Henrique, depois renegou. É aí que está o perigo: o vácuo já foi criado, mas não se sabe quem irá preenche-lo. Na falta de uma referência sólida para a direita, abrem-se as brechas para outsiders e aventureiros, de que nossa História registra muitos exemplos. Há os folclóricos, como Enéas Carneiro, mas ninguém sabe o que pode resultar de um Jair Bolsonaro, atual campeão de votos, tal como foi Enéas Carneiro, ambos canalizando aquela porção desencantada do eleitorado que não tem um partido que represente duas ideias. Um líder carismático sem uma base partidária sólida é um candidato natural a ditador - lembram-se de Jânio Quadros? E lembram-se do que veio depois de Jânio Quadros?
Jânio foi a UDN de porre, como disseram na época. Cansada de ser derrotada pela coalização trabalhista, a UDN teve a infeliz ideia de emular o populismo dos adversários criando um candidato genuinamente popular, mas de direita. Conseguiu vencer a eleição, mas... Na época atual, o PSDB, cansado de ser derrotado pelo PT, renegou seu ideário da era FHC e procurou emular o discurso petista, mas quem ia querer a imitação se pode ter o original?
Resta saber se a direita brasileira renascerá embasada em um partido, ou se teremos mais uma volta do mesmo.
O caso é que a direita, no Brasil, desde o regime militar tornou-se um xingamento. Não que tenha deixado de existir, mas perdeu o rosto, já que ninguém mais assume-se como de direita - é politicamente incorreto no mínimo. Todos viraram esquerda. Desde então, sempre que há um recuo na esquerda, o que se observa é uma espécie de refluxo, um deslocamento de ar que vai preencher o vácuo recém-criado, sem que se possa discernir com precisão de onde ele vem nem para onde vai. Foi assim nas manifestações de 2013, cuja amplitude bem revelava o tamanho do descontentamento, sem que nenhum dos manifestantes ousasse expressar sua condenação ao governo. Desnecessário dizer que aquele cidadão que está descontente, mas não sabe dizer com o que, é a massa de manobra ideal que todo governo sonhou.
Mas agora o cenário está mudando. Nas manifestações deste ano, os manifestantes já conseguem dizer Fora Dilma. Ao que parece, a direita quer mesmo renascer. Mas quem a representará? O último partido assumidamente de direita que tivemos foi a UDN, e lá se vão 50 anos. O PSDB parece movido mais pela ambição pessoal de Aécio Neves e tampouco mostra-se disposto a exibir um projeto de direita para suceder ao atual governo: refiro-me ao liberalismo econômico, redução do tamanho do Estado, livre mercado, responsabilidade fiscal, desregulamentação. Tudo o que o PSDB pregou no tempo de Fernando Henrique, depois renegou. É aí que está o perigo: o vácuo já foi criado, mas não se sabe quem irá preenche-lo. Na falta de uma referência sólida para a direita, abrem-se as brechas para outsiders e aventureiros, de que nossa História registra muitos exemplos. Há os folclóricos, como Enéas Carneiro, mas ninguém sabe o que pode resultar de um Jair Bolsonaro, atual campeão de votos, tal como foi Enéas Carneiro, ambos canalizando aquela porção desencantada do eleitorado que não tem um partido que represente duas ideias. Um líder carismático sem uma base partidária sólida é um candidato natural a ditador - lembram-se de Jânio Quadros? E lembram-se do que veio depois de Jânio Quadros?
Jânio foi a UDN de porre, como disseram na época. Cansada de ser derrotada pela coalização trabalhista, a UDN teve a infeliz ideia de emular o populismo dos adversários criando um candidato genuinamente popular, mas de direita. Conseguiu vencer a eleição, mas... Na época atual, o PSDB, cansado de ser derrotado pelo PT, renegou seu ideário da era FHC e procurou emular o discurso petista, mas quem ia querer a imitação se pode ter o original?
Resta saber se a direita brasileira renascerá embasada em um partido, ou se teremos mais uma volta do mesmo.
sexta-feira, 10 de julho de 2015
A crise de 1989 e a atual
Quem acompanha o meu blog sabe que gosto de identificar paralelismos entre ocorrências do passado e do presente, a fim de estabelecer padrões que se repetem e ver a mesma peça encenada por outros atores. Recentemente estive pensando: a crise atual tem alguma coisa a ver com a crise de 1989?
O ano de 1989 foi o último em que presenciamos, no Brasil, o fim de um ciclo e o início de outro. A ditadura já havia acabado, mas o nacional-estatismo fora tocado por Sarney com potência máxima, incluindo o congelamento de preços do Plano Cruzado, ponto máximo do intervencionismo estatal na economia, jamais ousado por um governo anterior. O retumbante fracasso do plano, bem como de outras políticas condizentes com o espírito da época como a Reserva de Mercado na Informática, enterrou não somente o governo Sarney mas também todo o ciclo nacional-estatista iniciado décadas antes por Vargas. No cenário arrasado surgiram outsiders: Lula e Collor de Melo. Venceu Collor. Seu governo acabou sendo um fracasso ainda mais retumbante, mas o país não voltou atrás: a partir de então estabeleceu-se o consenso de que o Estado devia encolher, desregulamentar-se, que nosso setor privado era ineficiente e acostumado a viver de subsídios do Estado, que o número de empresas estatais era excessivo e o Estado não tinha recursos para moderniza-las, que o nacionalismo tacanho tornava nossos carros iguais a carroças. Lenta mas inexoravelmente, tal como um transatlântico, o país mudou de rumo. Vieram o Plano Real, e as privatizações e a Lei de Responsabilidade Fiscal. O país parecia convencido enfim que as despesas não podiam superar as receitas.
O governo Lula inicialmente não reverteu esse quadro. Embora embalado por um discurso social e altamente crítico ao "neoliberalismo" de Fernando Henrique, Lula preservou com unhas e dentes a macroeconomia herdada do Plano Real. A inflação caiu e o PIB subiu. Pela primeira vez na nossa História, os trabalhadores experimentaram uma consistente melhora em seus rendimentos puxada pela estabilidade econômica e pela expansão do crédito. Mas Lula também implementou uma espécie de getulismo tardio, voltando a aumentar o tamanho do Estado, aumentando a carga tributária e subsidiando empresas nacionais com recursos públicos, comprando navios com soldas defeituosas de estaleiros nacionais pelo dobro do preço cobrado por um navio coreano com soldas perfeitas. As nuvens estavam no horizonte...
Com o governo Dilma inicia-se o efetivo desmonte da Era FHC e retorno ao nacional-estatismo, com o BNDES emitindo dinheiro para empresta-lo a juros subsidiados ao séquito de empresários amigos-do-rei. O último e essencial componente do antigo modelo - a inflação - ameaça voltar. A inflação foi saudada pelos próceres do nacional-estatismo, de JK a Celso Furtado, como essencial para o desenvolvimento, pois permitia ao governo cobrir seus deficits emitindo dinheiro e assim mandar a fatura para a população, que a pagava com a perda de seu poder aquisitivo. Essa ideia fazia algum sentido naqueles tempos em que tínhamos uma indústria incipiente e uma baixa carga tributária, mas na época atual, seu efeito imediato será liquidar todo o aumento de renda proporcionado por Lula à classe trabalhadora, o qual sustenta-se, como aqui já mencionei, na estabilidade da economia e na expansão do crédito que permite ao trabalhador "tirar" uma geladeira nas Casas Bahia pagando em 15 vezes. O povo já está sentindo isso no bolso, e a cúpula petista já percebeu que não vai colar.
Ao que tudo indica, como em 1989, vivemos o fim de um ciclo, o ciclo do PT no poder. Mas o que virá em seguida? Aventureiros outsiders como outro Collor de Melo? Uma radicalização que remete a outra crise, a de 1964? Ou recuando ainda mais até 1954, um auto-sacrifício de Lula que reverterá a onda anti-petista?
Ou talvez nada disso aconteça e o país fique em piloto automático, conduzido por super-ministros e eminências pardas.
O ano de 1989 foi o último em que presenciamos, no Brasil, o fim de um ciclo e o início de outro. A ditadura já havia acabado, mas o nacional-estatismo fora tocado por Sarney com potência máxima, incluindo o congelamento de preços do Plano Cruzado, ponto máximo do intervencionismo estatal na economia, jamais ousado por um governo anterior. O retumbante fracasso do plano, bem como de outras políticas condizentes com o espírito da época como a Reserva de Mercado na Informática, enterrou não somente o governo Sarney mas também todo o ciclo nacional-estatista iniciado décadas antes por Vargas. No cenário arrasado surgiram outsiders: Lula e Collor de Melo. Venceu Collor. Seu governo acabou sendo um fracasso ainda mais retumbante, mas o país não voltou atrás: a partir de então estabeleceu-se o consenso de que o Estado devia encolher, desregulamentar-se, que nosso setor privado era ineficiente e acostumado a viver de subsídios do Estado, que o número de empresas estatais era excessivo e o Estado não tinha recursos para moderniza-las, que o nacionalismo tacanho tornava nossos carros iguais a carroças. Lenta mas inexoravelmente, tal como um transatlântico, o país mudou de rumo. Vieram o Plano Real, e as privatizações e a Lei de Responsabilidade Fiscal. O país parecia convencido enfim que as despesas não podiam superar as receitas.
O governo Lula inicialmente não reverteu esse quadro. Embora embalado por um discurso social e altamente crítico ao "neoliberalismo" de Fernando Henrique, Lula preservou com unhas e dentes a macroeconomia herdada do Plano Real. A inflação caiu e o PIB subiu. Pela primeira vez na nossa História, os trabalhadores experimentaram uma consistente melhora em seus rendimentos puxada pela estabilidade econômica e pela expansão do crédito. Mas Lula também implementou uma espécie de getulismo tardio, voltando a aumentar o tamanho do Estado, aumentando a carga tributária e subsidiando empresas nacionais com recursos públicos, comprando navios com soldas defeituosas de estaleiros nacionais pelo dobro do preço cobrado por um navio coreano com soldas perfeitas. As nuvens estavam no horizonte...
Com o governo Dilma inicia-se o efetivo desmonte da Era FHC e retorno ao nacional-estatismo, com o BNDES emitindo dinheiro para empresta-lo a juros subsidiados ao séquito de empresários amigos-do-rei. O último e essencial componente do antigo modelo - a inflação - ameaça voltar. A inflação foi saudada pelos próceres do nacional-estatismo, de JK a Celso Furtado, como essencial para o desenvolvimento, pois permitia ao governo cobrir seus deficits emitindo dinheiro e assim mandar a fatura para a população, que a pagava com a perda de seu poder aquisitivo. Essa ideia fazia algum sentido naqueles tempos em que tínhamos uma indústria incipiente e uma baixa carga tributária, mas na época atual, seu efeito imediato será liquidar todo o aumento de renda proporcionado por Lula à classe trabalhadora, o qual sustenta-se, como aqui já mencionei, na estabilidade da economia e na expansão do crédito que permite ao trabalhador "tirar" uma geladeira nas Casas Bahia pagando em 15 vezes. O povo já está sentindo isso no bolso, e a cúpula petista já percebeu que não vai colar.
Ao que tudo indica, como em 1989, vivemos o fim de um ciclo, o ciclo do PT no poder. Mas o que virá em seguida? Aventureiros outsiders como outro Collor de Melo? Uma radicalização que remete a outra crise, a de 1964? Ou recuando ainda mais até 1954, um auto-sacrifício de Lula que reverterá a onda anti-petista?
Ou talvez nada disso aconteça e o país fique em piloto automático, conduzido por super-ministros e eminências pardas.
sábado, 27 de junho de 2015
O futuro já está chegando?
Modéstia à parte, tenho certo talento em prever o futuro. Muito do que eu prevejo, efetivamente acontece, e às vezes eu bem desejaria estar errado. Quem me acompanha deve saber que desde o ano passado eu venho prevendo que Lula, em determinado momento, iria romper com Dilma, afirmar que não sabia de nada e lançar sua candidatura para 2018 com discurso de oposicionista. Eu esperava isso para daqui a uns dois anos.
Mas não é que Lula resolveu antecipar-se? Em sua recente entrevista, quando declarou o PT e Dilma "no volume morto", foi altamente crítico ao governo e já está brandindo um discurso claramente de oposicionista. Evidente que apenas personagens de extraordinário carisma pessoal como nosso ex-presidente podem jogar tal m* no ventilador sem que esta borrife sobre ele próprio, o mentor político da atual presidente e introdutor das políticas que redundaram no atual cenário de crise. Pois na visão do povo, PT é PT e Lula é Lula. Ele não tem culpa de nada. Mas conforme ele próprio reconheceu na mesma entrevista, também está "no volume morto", e as pesquisas confirmam isso: se a eleição fosse hoje, perderia fácil para Aécio.
Mas as eleições serão daqui a três anos e até lá muito pode mudar. A chance de Lula será descolar sua imagem do PT, e descolar a lembrança de seus oito anos de governo, indiscutivelmente bons, da lembrança dos oito anos de Dilma, indiscutivelmente ruins. O eleitorado vai se dividir entre os que desejam alguma coisa nova e os que desejam a volta dos bons anos de Lula. Qual tendência vai prevalecer? Desta vez não arrisco um prognóstico, pois só sou profeta quando tenho razoável certeza. E uma coisa de que tenho razoável certeza agora é de que, mesmo que Lula triunfe, a debacle do PT é certa. Eu que acompanho desde sempre os forum´s de discussão na internet, comecei a notar de quatro anos para cá uma massiva conversão dos comentaristas em petistas chapa-branca. Se no início do governo petista eles se mostravam reticentes, diziam que o PT deixara de ser socialista e exibiam um discurso ultra radical e algo porra-louca, de um momento para outro passaram a repetir o discurso-padrão do PT e fazer política partidária, sobretudo para atacar os tucanos. Surpreso a princípio, pus-me a raciocinar e atribuí essa mudança ao fato do dinheiro extraído da Petrobras ter começado a jorrar entre os blogueiros. Parece-me uma hipótese razoável.
Mas agora que a polícia apertou, a fonte secou, e os mesmos comentaristas mostram-se desapontados e já voltam a dizer que o PT abandonou o socialismo. O cenário é esse. Mas chega de ser profeta por hoje.
Mas não é que Lula resolveu antecipar-se? Em sua recente entrevista, quando declarou o PT e Dilma "no volume morto", foi altamente crítico ao governo e já está brandindo um discurso claramente de oposicionista. Evidente que apenas personagens de extraordinário carisma pessoal como nosso ex-presidente podem jogar tal m* no ventilador sem que esta borrife sobre ele próprio, o mentor político da atual presidente e introdutor das políticas que redundaram no atual cenário de crise. Pois na visão do povo, PT é PT e Lula é Lula. Ele não tem culpa de nada. Mas conforme ele próprio reconheceu na mesma entrevista, também está "no volume morto", e as pesquisas confirmam isso: se a eleição fosse hoje, perderia fácil para Aécio.
Mas as eleições serão daqui a três anos e até lá muito pode mudar. A chance de Lula será descolar sua imagem do PT, e descolar a lembrança de seus oito anos de governo, indiscutivelmente bons, da lembrança dos oito anos de Dilma, indiscutivelmente ruins. O eleitorado vai se dividir entre os que desejam alguma coisa nova e os que desejam a volta dos bons anos de Lula. Qual tendência vai prevalecer? Desta vez não arrisco um prognóstico, pois só sou profeta quando tenho razoável certeza. E uma coisa de que tenho razoável certeza agora é de que, mesmo que Lula triunfe, a debacle do PT é certa. Eu que acompanho desde sempre os forum´s de discussão na internet, comecei a notar de quatro anos para cá uma massiva conversão dos comentaristas em petistas chapa-branca. Se no início do governo petista eles se mostravam reticentes, diziam que o PT deixara de ser socialista e exibiam um discurso ultra radical e algo porra-louca, de um momento para outro passaram a repetir o discurso-padrão do PT e fazer política partidária, sobretudo para atacar os tucanos. Surpreso a princípio, pus-me a raciocinar e atribuí essa mudança ao fato do dinheiro extraído da Petrobras ter começado a jorrar entre os blogueiros. Parece-me uma hipótese razoável.
Mas agora que a polícia apertou, a fonte secou, e os mesmos comentaristas mostram-se desapontados e já voltam a dizer que o PT abandonou o socialismo. O cenário é esse. Mas chega de ser profeta por hoje.
domingo, 7 de junho de 2015
Campanha pela volta da inflação
Eu que frequento vários forum´s de discussão por aí, tenho notado com incômoda frequência a presença de artigos querendo vender o peixe de que "um pouquinho de inflação" é necessário para o país sair da crise. Tem este aqui por exemplo, ou ainda esse outro. Não que eu desconheça essa velha falácia cepalina que fazia sucesso 50 anos atrás; muita gente acreditou, de Kubitchek a Figueiredo. Mas eu pensei que isso tudo havia sido enterrado em definitivo após o Plano Real. Agora pipocam opiniões por todo lado dizendo que o Plano Real foi uma maldade dos neoliberais e que inflação é bom. Querem o dólar a 4 reais dizendo que irá agilizar as exportações do país, e mais inflação dizendo ser necessário para manter o nível de emprego.
Ora, produzir inflação nada mais é do que emitir moeda sem lastro. Em outras palavras, emitir dinheiro falso. Quando se diz que o índice de inflação é 8%, o que se quer dizer é que de cada 108 moedas de 1 real emitidas pela Casa da Moeda, 8 são falsas. Isso é necessário para criar empregos, dizem. Mas empregos criados com dinheiro de mentira são empregos de mentira, gerados à custa da perda do poder aquisitivo daqueles que já estão empregados. É como se o seu patrão chegasse para você e dissesse: vou descontar 8% do seu salário para dar emprego àquele seu colega que está desempregado.
A quem, então, interessa a volta da inflação?
Ao governo, evidentemente. Pois inflação não é problema algum para quem emite o dinheiro, é problema para quem usa o dinheiro. Para quem emite, então, é solução: basta girar a maquininha da Casa da Moeda que os rombos do governo estão cobertos, e a fatura vai para o infeliz usuário do papel-moeda. É como um imposto invisível, com a vantagem de que pode ser criado sem aquela chatice de comprar deputados. Permite também diminuir salários, o que é proibido por lei: basta dar reajustes inferiores ao aumento dos preços. É óbvio que o governo anseia por ter de volta às mãos instrumento tão poderoso, capaz de fazer eu e você pagarmos pelo dinheiro que o BNDES vai mandar para o séquito de empresários amigos-do-rei. Tudo isso em prol do desenvolvimento do país, é o que dizem.
É nesse ponto que surge a minha suspeita: essa campanha pró-inflação pode ser parte de uma estratégia do governo já em andamento. Uma vez que o aumento de impostos foi barrado no legislativo, e a captação de dinheiro via corrupção foi barrada pelo judiciário, resta a terceira opção de captar o dinheiro do povo via inflação. É a melhor escolha, pois produzir inflação é uma forma de roubo altamente sofisticada, que prescinde até de retirar as cédulas do bolso do roubado.
O que tem segurado o governo até agora é uma coisa só: todo o aumento do consumo da parcela mais pobre da população nos últimos 12 anos, o que tem garantido as vitórias eleitorais do PT até agora, é devido essencialmente à expansão do crédito, que permitiu ao povo comprar geladeiras nas Casas Bahia pagando em 15 vezes. Esse quadro obviamente só se mantem em um cenário de inflação baixa. Se deixar a inflação voltar, a carruagem vira abóbora de novo, e os milhões que passaram à classe C voltam à classe D. Poderá o governo conter o descontentamento dessa gente?
O remédio é esperar, como dizia a música da normalista.
Ora, produzir inflação nada mais é do que emitir moeda sem lastro. Em outras palavras, emitir dinheiro falso. Quando se diz que o índice de inflação é 8%, o que se quer dizer é que de cada 108 moedas de 1 real emitidas pela Casa da Moeda, 8 são falsas. Isso é necessário para criar empregos, dizem. Mas empregos criados com dinheiro de mentira são empregos de mentira, gerados à custa da perda do poder aquisitivo daqueles que já estão empregados. É como se o seu patrão chegasse para você e dissesse: vou descontar 8% do seu salário para dar emprego àquele seu colega que está desempregado.
A quem, então, interessa a volta da inflação?
Ao governo, evidentemente. Pois inflação não é problema algum para quem emite o dinheiro, é problema para quem usa o dinheiro. Para quem emite, então, é solução: basta girar a maquininha da Casa da Moeda que os rombos do governo estão cobertos, e a fatura vai para o infeliz usuário do papel-moeda. É como um imposto invisível, com a vantagem de que pode ser criado sem aquela chatice de comprar deputados. Permite também diminuir salários, o que é proibido por lei: basta dar reajustes inferiores ao aumento dos preços. É óbvio que o governo anseia por ter de volta às mãos instrumento tão poderoso, capaz de fazer eu e você pagarmos pelo dinheiro que o BNDES vai mandar para o séquito de empresários amigos-do-rei. Tudo isso em prol do desenvolvimento do país, é o que dizem.
É nesse ponto que surge a minha suspeita: essa campanha pró-inflação pode ser parte de uma estratégia do governo já em andamento. Uma vez que o aumento de impostos foi barrado no legislativo, e a captação de dinheiro via corrupção foi barrada pelo judiciário, resta a terceira opção de captar o dinheiro do povo via inflação. É a melhor escolha, pois produzir inflação é uma forma de roubo altamente sofisticada, que prescinde até de retirar as cédulas do bolso do roubado.
O que tem segurado o governo até agora é uma coisa só: todo o aumento do consumo da parcela mais pobre da população nos últimos 12 anos, o que tem garantido as vitórias eleitorais do PT até agora, é devido essencialmente à expansão do crédito, que permitiu ao povo comprar geladeiras nas Casas Bahia pagando em 15 vezes. Esse quadro obviamente só se mantem em um cenário de inflação baixa. Se deixar a inflação voltar, a carruagem vira abóbora de novo, e os milhões que passaram à classe C voltam à classe D. Poderá o governo conter o descontentamento dessa gente?
O remédio é esperar, como dizia a música da normalista.
sábado, 30 de maio de 2015
Dilma e Isabelita: tudo a ver?
Como afirmei no último post aí embaixo, não dá para escrever sobre o presente sem desvencilha-lo do contexto histórico onde se encontra inserido. Em outras palavras, não dá para falar no presente sem falar no passado. Sobretudo quando o passado teima em repetir o presente.
Um exemplo de repetição do passado, tal como uma peça que é reencenada com atores diferentes, eu encontrei aqui nesse artigo que traça paralelos entre Dilma Rousseff e Isabelita Perón da Argentina. A comparação é oportuna no momento político em que estamos vivendo, e verificam-se paralelos e divergências igualmente importantes. Como se sabe, Isabelita foi a primeira mulher presidente da Argentina, chegou ao poder por obra e graça de seu marido e patrono político Juan Perón, governou sem autoridade e refém de aliados oportunistas como López Rega, seu ultracorrupto ministro do bem-estar social, e por fim levou seu país a uma séria crise que terminou com sua deposição. Alguma coisa a ver?
Para começar, a história pessoal de Isabelita nada tem em comum com a história pessoal de Dilma Rousseff. O currículo de Isabelita aponta como ocupação inicial antes de chegar à presidência ter sido dançarina de cabaré. Dilma, bem ou mal, sempre teve presença na cena política desde a juventude. Deve ser de pronto ressaltado que a história de Isabelita se insere em uma trama exclusivamente argentina, sem correspondente brasileiro: ela foi escalada para ser a segunda encarnação de Evita Perón, a mãe dos descamisados.
Nesse ponto já não sei se estou falando de Evita ou de Isabelita, já que ambas representaram o mesmo personagem, ou melhor, uma é a reencarnação da outra. Em meio ao antigo caudilhismo latino-americano e seu afã por um governante que se comporte como um Pai da Pátria, os argentinos alcançaram um estágio mais profundo: exigem não só um Pai, mas também uma Mãe. Evita Perón foi a primeira Mãe, e atendendo às expectativas, ela tratou o povo tal como uma mãe trata seus filhos. A morte de Evita coincidiu com o esgotamento das reservas acumuladas pelo país durante a 2a Guerra, e na cabeça do povo, os tempos difíceis que então se iniciaram foram atribuídos à ausência de sua provedora. Desde então, ressuscitar Evita tornou-se uma obsessão para muitas gerações de argentinos. Primeiro tentou-se preservar seu cadáver embalsamado. Não adiantou, e o cadáver foi até roubado. Depois tentou-se fazer uma segunda Evita na pessoa de Isabelita, a nova esposa de Perón. Mas ao contrário de sua encarnação original, Isabelita não revelou nenhuma capacidade como governante, e as funestas consequências de seu governo são por suficiente conhecidas para que eu precise repeti-las aqui. A encarnação atual de Evita é Cristina Kirschner, que juntamente com seu marido Nestor, reencenou a trama do Pai e da Mãe da Pátria, que tratam o povo como seu filho e o orçamento da nação como seu orçamento doméstico. Mas essa trama é uma especificidade argentina. Há algum paralelo com Dilma Rousseff?
Algum paralelo há, sim. Tal como Isabelita, Dilma é um astro sem luz própria, que chegou ao governo pelas mãos de um patrono, este sim imbuído de poder e carisma. Perón, na Argentina, e Lula no Brasil, em momentos diferentes usaram Isabelita e Dilma como joguetes de seus projetos pessoais, embora sem sucesso. A ideia de Lula era dar a Dilma um mandato-tampão, esperando que ela pusesse as contas em ordem após os gastos excessivos do último ano de seu governo. Dilma deveria tomar medidas de austeridade, arcar com o correspondente ônus de impopularidade e deixar tudo em ordem para o retorno triunfal de seu patrono em 2014, em clima de copa e olimpíada. Como sabemos, as coisas não transcorreram conforme planejado, e Lula adiou para 2018 seu projeto de volta ao poder. É nesse ponto que ficam evidentes outros paralelos mais inquietantes entre a nossa Dilma e a Isabelita deles: tal como Isabelita, nossa presidente tem se mostrado uma governante fraca, refém de aliados mal-intencionados, que conduz o país a uma crise econômica. Resta esperar que o desfecho não seja o mesmo!
Quanto a mim, sinceramente não creio que o desfecho de Dilma vai repetir o de Isabelita. Penso que as medidas de ajuste serão tomadas, e seus adversários ficarão contentes em vê-la queimada. Se Dilma não fez a faxina encomendada por Lula em seu primeiro mandato, terá que faze-la agora. No momento certo, Lula anunciará seu rompimento com Dilma, dirá que não sabia de nada e se lançará em campanha com discurso de oposicionista. E Dilma, como boa faxineira, sairá pela porta dos fundos.
Um exemplo de repetição do passado, tal como uma peça que é reencenada com atores diferentes, eu encontrei aqui nesse artigo que traça paralelos entre Dilma Rousseff e Isabelita Perón da Argentina. A comparação é oportuna no momento político em que estamos vivendo, e verificam-se paralelos e divergências igualmente importantes. Como se sabe, Isabelita foi a primeira mulher presidente da Argentina, chegou ao poder por obra e graça de seu marido e patrono político Juan Perón, governou sem autoridade e refém de aliados oportunistas como López Rega, seu ultracorrupto ministro do bem-estar social, e por fim levou seu país a uma séria crise que terminou com sua deposição. Alguma coisa a ver?
Para começar, a história pessoal de Isabelita nada tem em comum com a história pessoal de Dilma Rousseff. O currículo de Isabelita aponta como ocupação inicial antes de chegar à presidência ter sido dançarina de cabaré. Dilma, bem ou mal, sempre teve presença na cena política desde a juventude. Deve ser de pronto ressaltado que a história de Isabelita se insere em uma trama exclusivamente argentina, sem correspondente brasileiro: ela foi escalada para ser a segunda encarnação de Evita Perón, a mãe dos descamisados.
Nesse ponto já não sei se estou falando de Evita ou de Isabelita, já que ambas representaram o mesmo personagem, ou melhor, uma é a reencarnação da outra. Em meio ao antigo caudilhismo latino-americano e seu afã por um governante que se comporte como um Pai da Pátria, os argentinos alcançaram um estágio mais profundo: exigem não só um Pai, mas também uma Mãe. Evita Perón foi a primeira Mãe, e atendendo às expectativas, ela tratou o povo tal como uma mãe trata seus filhos. A morte de Evita coincidiu com o esgotamento das reservas acumuladas pelo país durante a 2a Guerra, e na cabeça do povo, os tempos difíceis que então se iniciaram foram atribuídos à ausência de sua provedora. Desde então, ressuscitar Evita tornou-se uma obsessão para muitas gerações de argentinos. Primeiro tentou-se preservar seu cadáver embalsamado. Não adiantou, e o cadáver foi até roubado. Depois tentou-se fazer uma segunda Evita na pessoa de Isabelita, a nova esposa de Perón. Mas ao contrário de sua encarnação original, Isabelita não revelou nenhuma capacidade como governante, e as funestas consequências de seu governo são por suficiente conhecidas para que eu precise repeti-las aqui. A encarnação atual de Evita é Cristina Kirschner, que juntamente com seu marido Nestor, reencenou a trama do Pai e da Mãe da Pátria, que tratam o povo como seu filho e o orçamento da nação como seu orçamento doméstico. Mas essa trama é uma especificidade argentina. Há algum paralelo com Dilma Rousseff?
Algum paralelo há, sim. Tal como Isabelita, Dilma é um astro sem luz própria, que chegou ao governo pelas mãos de um patrono, este sim imbuído de poder e carisma. Perón, na Argentina, e Lula no Brasil, em momentos diferentes usaram Isabelita e Dilma como joguetes de seus projetos pessoais, embora sem sucesso. A ideia de Lula era dar a Dilma um mandato-tampão, esperando que ela pusesse as contas em ordem após os gastos excessivos do último ano de seu governo. Dilma deveria tomar medidas de austeridade, arcar com o correspondente ônus de impopularidade e deixar tudo em ordem para o retorno triunfal de seu patrono em 2014, em clima de copa e olimpíada. Como sabemos, as coisas não transcorreram conforme planejado, e Lula adiou para 2018 seu projeto de volta ao poder. É nesse ponto que ficam evidentes outros paralelos mais inquietantes entre a nossa Dilma e a Isabelita deles: tal como Isabelita, nossa presidente tem se mostrado uma governante fraca, refém de aliados mal-intencionados, que conduz o país a uma crise econômica. Resta esperar que o desfecho não seja o mesmo!
Quanto a mim, sinceramente não creio que o desfecho de Dilma vai repetir o de Isabelita. Penso que as medidas de ajuste serão tomadas, e seus adversários ficarão contentes em vê-la queimada. Se Dilma não fez a faxina encomendada por Lula em seu primeiro mandato, terá que faze-la agora. No momento certo, Lula anunciará seu rompimento com Dilma, dirá que não sabia de nada e se lançará em campanha com discurso de oposicionista. E Dilma, como boa faxineira, sairá pela porta dos fundos.
sexta-feira, 22 de maio de 2015
Quando penso no futuro...
"Meu filho, tome cuidado, quando penso no futuro, não esqueço meu passado"
Esse blog, como afirma o título, versa sobre História, aquilo que é passado. Mas mesmo quando comento assuntos do presente, é impossível separa-los de seu contexto histórico.
Com o anúncio pelo governo do ajuste fiscal, estamos assistindo a mais um debacle da euforia desenvolvimentista, como tantos outros que já tivemos em nossa História. Uma interessante explicação para tantos "voos de galinha" eu encontrei aqui nesse artigo de Diogo de Almeida Fontana, intitulado Take your time, Brazil.
Cito alguns trechos:
"...nosso primeiro século de existência independente foi um tempo de condescendência, no qual se reconhecia as mazelas, se apontava os problemas, com a consciência de que havia muito por fazer, mas reputando tudo sempre como desculpável, explicável por nossa juventude. Com o tempo, com o trabalho, cedo ou tarde haveríamos de atingir o patamar dos povos da Europa (...) Subitamente, todavia, despontou ao Norte um gigante que vencia europeus no campo de batalha, que erguia torres que chegavam até o céu, que fabricava automóveis, aviões, navios, e tudo o mais que se possa imaginar, que decidia uma guerra mundial. (...) Doravante não havia mais desculpa, não havia mais perdão. Caiam as escamas dos olhos nacionais. O Brasil revelava-se definitivamente um país atrasado, periférico, um povo bárbaro que ficara para trás na carreira da História"
"Desde então a pressa, um sentimento de urgência, um aflitivo imediatismo, tomou de vez a alma nacional. O Brasil já não tinha tempo a perder, era preciso correr, fazer 50 anos em 5..."
"Pressa, pressa, sempre a pressa a pautar nossas decisões! Levamos luz elétrica aos rincões e aos subúrbios, mas em horrorosos postes de concreto com a fiação exposta. Construímos estradas e pontes, mas com aparência militar, cinzas, feias, sem adorno, sem acabamento."
Algo que nunca deixei de reparar na paisagem urbana brasileira é como tudo parece ter sido feito "nas coxas", apressadamente, de qualquer maneira, sobretudo quando comparado a obras similares realizadas nos países desenvolvidos. O último governo não foi diferente: Dilma ressuscitou o nacional-estatismo que Fernando Henrique havia mal-e-mal sepultado, e retornamos à rotina de obras caras e mal feitas financiadas com dinheiro público distribuído pelo BNDES ao séquito de empresários amigos-do-rei, os juros subsidiados à custa dos juros altos pagos pelos que não são amigos do rei, ou pela totalidade da população na forma de perda do poder aquisitivo de sua moeda.
Quando nosso futuro deixará de repetir o passado?
domingo, 10 de maio de 2015
Lula assumindo
Uma notícia recente veio na medida para confirmar o que eu havia escrito em meu último post: O ex-presidente uruguaio José Mujica, em um relato autobiográfico, afirmou haver ouvido do ex-presidente Lula que o mensalão era a única forma de governar o Brasil.
É claro que Mujica prontamente desmentiu a notícia que difamava o colega. Mas a impressão que ficou foi de que Lula, e possivelmente o PT como um todo, estão chegando àquela terceira etapa a que me referi: vão assumir que fizeram, e dizer, sem temor, que aquilo que fizeram foi bom para o país. Estará o PT, então, despindo de vez sua capa constitucional e assumindo sua essência?
Quem quiser conhecer a essência do PT pode visitar essa página do partido. Nota-se o enorme abismo entre o discurso das bases militantes e a prática do PT no poder. O que concluir? As hipóteses são duas:
1) O plano da base militante é o que efetivamente norteia o PT, e a prática da cúpula governista é uma fachada, ou
2) A base militante não passa de massa de manobra que serve de cabo eleitoral à cúpula governista.
Podemos discutir se a realidade é (1) ou (2), mas é indiscutível que essas duas facetas do PT têm convivido desde muito tempo. Por que essa aparente contradição interna não racha o PT? Ao contrário, ambas parecem capazes de conviver juntas por tempo indeterminado. Qual seria o "real" PT?
O senso comum, comparando o governo petista com outros governos de esquerda ditos bolivarianos no continente, é que o PT seria muito mais moderado. Mas analisando retroativamente, vê-se que todas as propostas radicais implementadas pelos governos bolivarianos, aí incluídas a regulação da mídia e a criação de conselhos populares, foram em algum momento colocadas pelo PT. A diferença foi que, aqui, elas foram rejeitadas por ampla margem no legislativo. Ideologicamente, portanto, não se pode afirmar que o PT difira da Venezuela de Chávez e da Argentina de Kirschner. A diferença reside na capacidade de impor tais medidas. Os outros regimes bolivarianos dispõem de uma militância armada e adestrada. A militância petista é desarmada e entretida com o chamado marxismo cultural. O que vale dizer: o PT depende dos trâmites do estado de direito para implementar seus projetos. Em outras palavras, depende de eleições e maiorias nas câmaras. Mas eleição só se ganha com o povo satisfeito, tendo emprego e crédito para comprar uma geladeira nas Casas Bahia pagando em 15 vezes. Todos sabem que isso só tem sido possível conservando-se a macroeconomia herdada do Plano Real, a qual por sua vez contradiz visceralmente o projeto da base militante. Foi esse o capital político que o PT acumulou e permitiu-o vencer as eleições nos últimos doze anos, e que agora começa a ser corroído pela crise. A circunstância de depender de eleição jogou o PT em um dilema:
1) Para ter sucesso na economia e assim angariar capital político, o PT precisa abandonar o ideário da base militante;
2) Para implementar o ideário da base militante, o PT precisa destruir o capital político que acumulou anteriormente.
Ora, mas é justamente com esse capital político que o PT contava para implementar o ideário da base militante! Se o destrói, dá um tiro no próprio pé. A única conclusão que podemos chegar é que a ascenção ao poder da base militante do PT é inviável pela via democrática. Enquanto o legislativo e o judiciário forem independentes, as eleições forem limpas e o eleitorado responder com desagrado à destruição da economia, o bolivarianismo só chega ao poder pela via revolucionária. Pode o PT realizar essa revolução? Sinceramente não creio. Penso que será em breve apeado do poder por obra e graça de um eleitorado por demais inculto para se deixar seduzir por discursos ideológicos, e que só vê o próprio bolso e os preços do mercado da esquina. Mas se essa derrota eleitoral se concretizar, tampouco deve-se ter a ilusão de que o PT terá caído por causa do mensalão ou do que mais diga respeito à corrupção que praticou. Será apenas uma consequência do caráter humano: é característica do venal ser também mau agradecido.
É claro que Mujica prontamente desmentiu a notícia que difamava o colega. Mas a impressão que ficou foi de que Lula, e possivelmente o PT como um todo, estão chegando àquela terceira etapa a que me referi: vão assumir que fizeram, e dizer, sem temor, que aquilo que fizeram foi bom para o país. Estará o PT, então, despindo de vez sua capa constitucional e assumindo sua essência?
Quem quiser conhecer a essência do PT pode visitar essa página do partido. Nota-se o enorme abismo entre o discurso das bases militantes e a prática do PT no poder. O que concluir? As hipóteses são duas:
1) O plano da base militante é o que efetivamente norteia o PT, e a prática da cúpula governista é uma fachada, ou
2) A base militante não passa de massa de manobra que serve de cabo eleitoral à cúpula governista.
Podemos discutir se a realidade é (1) ou (2), mas é indiscutível que essas duas facetas do PT têm convivido desde muito tempo. Por que essa aparente contradição interna não racha o PT? Ao contrário, ambas parecem capazes de conviver juntas por tempo indeterminado. Qual seria o "real" PT?
O senso comum, comparando o governo petista com outros governos de esquerda ditos bolivarianos no continente, é que o PT seria muito mais moderado. Mas analisando retroativamente, vê-se que todas as propostas radicais implementadas pelos governos bolivarianos, aí incluídas a regulação da mídia e a criação de conselhos populares, foram em algum momento colocadas pelo PT. A diferença foi que, aqui, elas foram rejeitadas por ampla margem no legislativo. Ideologicamente, portanto, não se pode afirmar que o PT difira da Venezuela de Chávez e da Argentina de Kirschner. A diferença reside na capacidade de impor tais medidas. Os outros regimes bolivarianos dispõem de uma militância armada e adestrada. A militância petista é desarmada e entretida com o chamado marxismo cultural. O que vale dizer: o PT depende dos trâmites do estado de direito para implementar seus projetos. Em outras palavras, depende de eleições e maiorias nas câmaras. Mas eleição só se ganha com o povo satisfeito, tendo emprego e crédito para comprar uma geladeira nas Casas Bahia pagando em 15 vezes. Todos sabem que isso só tem sido possível conservando-se a macroeconomia herdada do Plano Real, a qual por sua vez contradiz visceralmente o projeto da base militante. Foi esse o capital político que o PT acumulou e permitiu-o vencer as eleições nos últimos doze anos, e que agora começa a ser corroído pela crise. A circunstância de depender de eleição jogou o PT em um dilema:
1) Para ter sucesso na economia e assim angariar capital político, o PT precisa abandonar o ideário da base militante;
2) Para implementar o ideário da base militante, o PT precisa destruir o capital político que acumulou anteriormente.
Ora, mas é justamente com esse capital político que o PT contava para implementar o ideário da base militante! Se o destrói, dá um tiro no próprio pé. A única conclusão que podemos chegar é que a ascenção ao poder da base militante do PT é inviável pela via democrática. Enquanto o legislativo e o judiciário forem independentes, as eleições forem limpas e o eleitorado responder com desagrado à destruição da economia, o bolivarianismo só chega ao poder pela via revolucionária. Pode o PT realizar essa revolução? Sinceramente não creio. Penso que será em breve apeado do poder por obra e graça de um eleitorado por demais inculto para se deixar seduzir por discursos ideológicos, e que só vê o próprio bolso e os preços do mercado da esquina. Mas se essa derrota eleitoral se concretizar, tampouco deve-se ter a ilusão de que o PT terá caído por causa do mensalão ou do que mais diga respeito à corrupção que praticou. Será apenas uma consequência do caráter humano: é característica do venal ser também mau agradecido.
terça-feira, 21 de abril de 2015
Deixem o PT roubar, senão...
Tenho acompanhado a argumentação apresentada pelos simpatizantes do PT desde que se tornou notório o imenso esquema de corrupção protagonizado por este partido antes tido como a vanguarda da ética na política. Compreendem três fases distintas. Na primeira, negam as acusações. Na segunda, já não negam, mas acusam seus adversários de fazer o mesmo. Na terceira, assumem o que fizeram, mas afirmam que tal foi benéfico para o povo ou simplesmente necessário para seu projeto político.
Esta cara dura não me impressiona tanto assim, pois quem conhece a História sempre soube que o combate à corrupção jamais foi uma bandeira da esquerda. Não há motivo para sê-lo, pois quem empunha essa bandeira endossa uma moral burguesa: a proibição de roubar, derivada do tabu da inviolabilidade da propriedade privada. Ora, quem professa uma ideologia de inspiração marxistas ou anarquista necessariamente não reconhece o princípio da inviolabilidade da propriedade privada, e portanto não tem motivo algum para condenar a corrupção. Se alguém ainda insistir que roubar é moralmente errado, pode-se afirmar que a corrupção seria inerente ao sistema capitalista e só poderia ser eliminada junto com este - assim, o combate à corrupção, antes da liquidação do capitalismo, é inútil, e após, desnecessário. Por conseguinte, não há sentido para um militante de esquerda clamar por ética na política, e de fato, na História do Brasil, esse discurso tem sido mais típico dos partidos conservadores, apropriadamente taxado pela esquerda de "udenismo" e dito ser mero subterfúgio para derrubar governos legitimamente eleitos. Só com o surgimento do PT, na década de oitenta, essa tendência se inverteu à medida em que esse partido apresentava-se como reformador dos costumes políticos e paladino da ética, sempre atacando e eventualmente derrubando governos corruptos, e desde então, no senso comum daqueles cuja memória histórica é curta, estabeleceu-se a noção de que a luta anti-corrupção é uma bandeira da esquerda e que só a direita é corrupta.
Essa noção foi violentamente virada de cabeça para baixo tão logo o PT assumiu o poder, surpreendendo os ingênuos. Repetindo o que disse, eu próprio não me surpreendi, mas admito sentir um certo mal-estar nesse momento em que vejo a maioria dos apoiadores do PT chegando à fase 3 - aquela em que o malfeito é assumido e justificado. Como diz o ditado, a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude. O que virá depois? Assusta-me que alguns artigos escritos por apologistas do PT sejam ponderados e bem embasados, sem tanta necessidade de recorrer ao cinismo. Um exemplo foi esse aqui de Luís Nassif. que encontrei no GGN. Destaca um suposto desastre político e econômico que a Operação Mãos Limpas teria provocado na Itália, e adverte para a possibilidade do mesmo ocorrer aqui, quando o juiz Sérgio Moro repete os métodos da Operação Mãos Limpas.
Afirma ele, a corrupção sempre fez parte dos costumes políticos italianos desde o tempo dos Médici, e a eliminação desta prática teria surtido consequências políticas e econômicas desastrosas, com a destruição do sistema político do pós-guerra, e liquidação dos quatro principais partidos políticos italianos - o Democrata Cristão, o Socialista, o Social Democrata e o Liberal - bem como de numerosas empresas privadas e estatais. Após a guerra, a Itália experimentara impressionante recuperação econômica e chegou ao posto de 5a economia do mundo, os empresários eram pujantes e criativos, o povo vivia feliz em meio à roubalheira dos políticos. Depois, acabou a esfuziante dolce vita: a economia estagnou, os empresários foram para a cadeia ou faliram, e no vácuo criado pela destruição do sistema político penetraram aventureiros como Sílvio Berlusconi. Conclui o autor, na construção das grandes economias há mais barões ladrões do que monges mendicantes.
Embora haja uma repulsa instintiva em assumir que a corrupção é melhor que a honestidade, é preciso admitir que tudo o que Luís Nassif argumentou é rigorosamente verdadeiro. A Itália, de fato, passou por um período de rápido crescimento até o início da Operação Mãos Limpas, desde então passa por um prolongado declínio econômico, e Berlusconi foi de fato um governante desastrado. Mas... será que foi mesmo a eliminação da corrupção que causou tudo isso?
É uma questão instigante, ainda mais porque cai em um terreno perigosamente fértil: nós aqui no Brasil também temos um longo caso de amor com a falta de ética. Fomos nós que romantizamos a malandragem, fomos nós que criamos o personagem Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, e temos sempre disposição para incensar todo tipo de personagem sem caráter, bem como para eleger e reeleger todo tipo de político ladrão. Enfim, não faltam argumentos para afirmar que a corrupção é indissociável do caráter brasileiro, e portanto ela é boa e necessária ao funcionamento de nossa sociedade. A mensagem é: deixem o PT roubar em paz, senão... acabaremos igual à Itália!
Devemos engolir isso?
Esta cara dura não me impressiona tanto assim, pois quem conhece a História sempre soube que o combate à corrupção jamais foi uma bandeira da esquerda. Não há motivo para sê-lo, pois quem empunha essa bandeira endossa uma moral burguesa: a proibição de roubar, derivada do tabu da inviolabilidade da propriedade privada. Ora, quem professa uma ideologia de inspiração marxistas ou anarquista necessariamente não reconhece o princípio da inviolabilidade da propriedade privada, e portanto não tem motivo algum para condenar a corrupção. Se alguém ainda insistir que roubar é moralmente errado, pode-se afirmar que a corrupção seria inerente ao sistema capitalista e só poderia ser eliminada junto com este - assim, o combate à corrupção, antes da liquidação do capitalismo, é inútil, e após, desnecessário. Por conseguinte, não há sentido para um militante de esquerda clamar por ética na política, e de fato, na História do Brasil, esse discurso tem sido mais típico dos partidos conservadores, apropriadamente taxado pela esquerda de "udenismo" e dito ser mero subterfúgio para derrubar governos legitimamente eleitos. Só com o surgimento do PT, na década de oitenta, essa tendência se inverteu à medida em que esse partido apresentava-se como reformador dos costumes políticos e paladino da ética, sempre atacando e eventualmente derrubando governos corruptos, e desde então, no senso comum daqueles cuja memória histórica é curta, estabeleceu-se a noção de que a luta anti-corrupção é uma bandeira da esquerda e que só a direita é corrupta.
Essa noção foi violentamente virada de cabeça para baixo tão logo o PT assumiu o poder, surpreendendo os ingênuos. Repetindo o que disse, eu próprio não me surpreendi, mas admito sentir um certo mal-estar nesse momento em que vejo a maioria dos apoiadores do PT chegando à fase 3 - aquela em que o malfeito é assumido e justificado. Como diz o ditado, a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude. O que virá depois? Assusta-me que alguns artigos escritos por apologistas do PT sejam ponderados e bem embasados, sem tanta necessidade de recorrer ao cinismo. Um exemplo foi esse aqui de Luís Nassif. que encontrei no GGN. Destaca um suposto desastre político e econômico que a Operação Mãos Limpas teria provocado na Itália, e adverte para a possibilidade do mesmo ocorrer aqui, quando o juiz Sérgio Moro repete os métodos da Operação Mãos Limpas.
Afirma ele, a corrupção sempre fez parte dos costumes políticos italianos desde o tempo dos Médici, e a eliminação desta prática teria surtido consequências políticas e econômicas desastrosas, com a destruição do sistema político do pós-guerra, e liquidação dos quatro principais partidos políticos italianos - o Democrata Cristão, o Socialista, o Social Democrata e o Liberal - bem como de numerosas empresas privadas e estatais. Após a guerra, a Itália experimentara impressionante recuperação econômica e chegou ao posto de 5a economia do mundo, os empresários eram pujantes e criativos, o povo vivia feliz em meio à roubalheira dos políticos. Depois, acabou a esfuziante dolce vita: a economia estagnou, os empresários foram para a cadeia ou faliram, e no vácuo criado pela destruição do sistema político penetraram aventureiros como Sílvio Berlusconi. Conclui o autor, na construção das grandes economias há mais barões ladrões do que monges mendicantes.
Embora haja uma repulsa instintiva em assumir que a corrupção é melhor que a honestidade, é preciso admitir que tudo o que Luís Nassif argumentou é rigorosamente verdadeiro. A Itália, de fato, passou por um período de rápido crescimento até o início da Operação Mãos Limpas, desde então passa por um prolongado declínio econômico, e Berlusconi foi de fato um governante desastrado. Mas... será que foi mesmo a eliminação da corrupção que causou tudo isso?
É uma questão instigante, ainda mais porque cai em um terreno perigosamente fértil: nós aqui no Brasil também temos um longo caso de amor com a falta de ética. Fomos nós que romantizamos a malandragem, fomos nós que criamos o personagem Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, e temos sempre disposição para incensar todo tipo de personagem sem caráter, bem como para eleger e reeleger todo tipo de político ladrão. Enfim, não faltam argumentos para afirmar que a corrupção é indissociável do caráter brasileiro, e portanto ela é boa e necessária ao funcionamento de nossa sociedade. A mensagem é: deixem o PT roubar em paz, senão... acabaremos igual à Itália!
Devemos engolir isso?
quarta-feira, 15 de abril de 2015
Por que a corrupção aumentou nas obras públicas?
O assunto do dia é a terceirização, objeto de uma lei que está em debate na câmara, com a finalidade de permiti-la em todas as atividades de uma empresa. Os argumentos pró e contra são aqueles rasos e maniqueístas de sempre: a terceirização é "precarização" do trabalho, mas vai garantir o aumento das contratações, etc. Mas em meio a essa balbúrdia eu encontrei aqui um raro artigo melhor elaborado que procura correlacionar a terceirização com o aumento da corrupção nas obras públicas.
O autor afirma que o notório aumento da corrupção nas obras públicas foi a consequência do desmonte dos departamentos de engenharia das estatais. Antes esses departamentos eram responsáveis pelo Projeto Básico, e muitas vezes também o Projeto Executivo, e as empreiteiras ficavam somente com a execução, fiscalizadas de perto pelos engenheiros da empresa. Assim minimizavam-se as oportunidades de adendos contratuais e mudanças nos projetos com o fim de encarecer a obra. Com a terceirização, isso acabou: as empreiteiras ficaram com todo o projeto na mão, e puderam deitar e rolar.
Bom artigo, muito racional e honesto, mas faltou responder uma questãozinha essencial: se os departamentos de engenharia das estatais eram tão bons assim, por que motivo eles foram desmontados?
Os petistas vão bradar que a culpa é dos tucanos que sucatearam as empresas em sua busca pelo "estado mínimo", e os tucanos vão bradar que o PT, uma vez no poder, nada fez para mudar esse estado de coisas, muito pelo contrário. Mas se quisermos dar seguimento ao tom de honestidade deste artigo, tempos que ir à raiz do problema. Eu já trabalhei em empresa estatal mais de uma vez, tanto como terceirizado quanto como concursado, e posso dizer que conheço o problema por dentro, e por suas duas vertentes. Seja lá o que foi que aconteceu, ocorreu entre o fim do regime militar e o atual governo. O autor do artigo foi honesto bastante para expor aqui uma verdade muito embaraçosa, que todo o mundo sabe mas ninguém diz: no tempo dos militares havia bem menos corrupção nas estatais. E olha que não era para ser assim, pois no tempo deles havia censura e se eles quisessem, qualquer escândalo podia ser abafado. Veio a democracia, acabou a censura. Então, o que deu errado?
A raiz do problema da terceirização, a meu ver, é a própria CLT, que com o tempo tornou-se tão complicada, arriscada e onerosa, que os empregadores acharam preferível pagar a conta altíssima dos atravessadores de mão-de-obra. Mas no que diz respeito às firmas estatais, existe um considerável agravante: a enorme burocracia para fazer contratações, em razão da obrigatoriedade de concurso público. Não sei se vocês fazem ideia de como é demorado e custoso realizar um concurso público. Primeiro tem que ter previsão orçamentária. Aí tem que publicar o edital, fazer as provas, corrigir, formar o cadastro reserva, e só pode chamar de um em um, conforme a classificação na lista. Imagine que a empresa necessita urgente de um profissional com determinado perfil. Não há tempo para fazer um concurso, e mesmo se houvesse, não compensaria fazer concurso para preencher uma só vaga. Mesmo se houver sobras do cadastro reserva do último concurso, pode não haver ali um profissional com o perfil requerido, e se houver, ele pode estar em uma posição mais atrás na lista e não pode ser chamado antes dos outros que estão na frente. Simplesmente não há outra alternativa além da terceirização!
No tempo dos militares, as pessoas eram mais honestas? Não creio. Eu penso que a explicação é outra: no tempo dos militares a CLT era menos complicada e havia menos burocracia para as empresas estatais contratarem, sem tanta exigência de concurso público. A teoria que eu tenho para explicar a decadência e o desmonte dos departamentos de engenharia é a seguinte: com o tempo, as contratações foram ficando tão difíceis que os departamentos não puderam ser renovados à medida em que os engenheiros saíam, se aposentavam ou morriam. Chegou um momento em que não houve outra alternativa senão terceirizar tudo, do projeto à execução.
Como solucionar esse impasse?
Voltando à raiz do problema, é preciso rever a CLT, que se tornou totalmente obsoleta. No caso específico das estatais, é preciso que elas tenham a mesma liberdade quanto à gestão de seu pessoal de que desfrutam as empresas privadas. Quando uma empresa privada necessita de um profissional, ela vai no mercado e o contrata sem mais delongas. Então, ou se privatiza de uma vez todas as empresas, ou se acaba com a obrigatoriedade de concurso público, mesmo porque concurso público é algo indicado somente para funcionários públicos, pessoas que exercem funções de responsabilidade que exigem uma formação específica - fiscais, auditores, juízes, etc.
Se isso for feito, penso que a terceirização retornará a seu escopo original - as atividades contratadas como empreitada, com prazo para terminar. Afinal, ao contrário do que muitos pensam, terceirizar não sai barato: as empresas alocadoras de mão-de-obra cobram cerca do triplo do salário em carteira de cada trabalhador alocado. O empregador, invariavelmente, se dispõe a pagar um valor X por cada empregado, valor esse determinado pelo mercado de trabalho. Se desse valor, um total y será descontado na forma de encargos trabalhistas pela CLT ou na forma de pagamento à empresa terceirizada, isso é indiferente para o empregador: ele desembolsou X, e ponto final. Mas não é indiferente para o empregado, que recebe X - y em seu contracheque. Acredito que para o trabalhador, interessante seria se ele recebesse o valor X integralmente - sem nem o Estado, nem o atravessador de mão-de-obra no caminho.
O autor afirma que o notório aumento da corrupção nas obras públicas foi a consequência do desmonte dos departamentos de engenharia das estatais. Antes esses departamentos eram responsáveis pelo Projeto Básico, e muitas vezes também o Projeto Executivo, e as empreiteiras ficavam somente com a execução, fiscalizadas de perto pelos engenheiros da empresa. Assim minimizavam-se as oportunidades de adendos contratuais e mudanças nos projetos com o fim de encarecer a obra. Com a terceirização, isso acabou: as empreiteiras ficaram com todo o projeto na mão, e puderam deitar e rolar.
Bom artigo, muito racional e honesto, mas faltou responder uma questãozinha essencial: se os departamentos de engenharia das estatais eram tão bons assim, por que motivo eles foram desmontados?
Os petistas vão bradar que a culpa é dos tucanos que sucatearam as empresas em sua busca pelo "estado mínimo", e os tucanos vão bradar que o PT, uma vez no poder, nada fez para mudar esse estado de coisas, muito pelo contrário. Mas se quisermos dar seguimento ao tom de honestidade deste artigo, tempos que ir à raiz do problema. Eu já trabalhei em empresa estatal mais de uma vez, tanto como terceirizado quanto como concursado, e posso dizer que conheço o problema por dentro, e por suas duas vertentes. Seja lá o que foi que aconteceu, ocorreu entre o fim do regime militar e o atual governo. O autor do artigo foi honesto bastante para expor aqui uma verdade muito embaraçosa, que todo o mundo sabe mas ninguém diz: no tempo dos militares havia bem menos corrupção nas estatais. E olha que não era para ser assim, pois no tempo deles havia censura e se eles quisessem, qualquer escândalo podia ser abafado. Veio a democracia, acabou a censura. Então, o que deu errado?
A raiz do problema da terceirização, a meu ver, é a própria CLT, que com o tempo tornou-se tão complicada, arriscada e onerosa, que os empregadores acharam preferível pagar a conta altíssima dos atravessadores de mão-de-obra. Mas no que diz respeito às firmas estatais, existe um considerável agravante: a enorme burocracia para fazer contratações, em razão da obrigatoriedade de concurso público. Não sei se vocês fazem ideia de como é demorado e custoso realizar um concurso público. Primeiro tem que ter previsão orçamentária. Aí tem que publicar o edital, fazer as provas, corrigir, formar o cadastro reserva, e só pode chamar de um em um, conforme a classificação na lista. Imagine que a empresa necessita urgente de um profissional com determinado perfil. Não há tempo para fazer um concurso, e mesmo se houvesse, não compensaria fazer concurso para preencher uma só vaga. Mesmo se houver sobras do cadastro reserva do último concurso, pode não haver ali um profissional com o perfil requerido, e se houver, ele pode estar em uma posição mais atrás na lista e não pode ser chamado antes dos outros que estão na frente. Simplesmente não há outra alternativa além da terceirização!
No tempo dos militares, as pessoas eram mais honestas? Não creio. Eu penso que a explicação é outra: no tempo dos militares a CLT era menos complicada e havia menos burocracia para as empresas estatais contratarem, sem tanta exigência de concurso público. A teoria que eu tenho para explicar a decadência e o desmonte dos departamentos de engenharia é a seguinte: com o tempo, as contratações foram ficando tão difíceis que os departamentos não puderam ser renovados à medida em que os engenheiros saíam, se aposentavam ou morriam. Chegou um momento em que não houve outra alternativa senão terceirizar tudo, do projeto à execução.
Como solucionar esse impasse?
Voltando à raiz do problema, é preciso rever a CLT, que se tornou totalmente obsoleta. No caso específico das estatais, é preciso que elas tenham a mesma liberdade quanto à gestão de seu pessoal de que desfrutam as empresas privadas. Quando uma empresa privada necessita de um profissional, ela vai no mercado e o contrata sem mais delongas. Então, ou se privatiza de uma vez todas as empresas, ou se acaba com a obrigatoriedade de concurso público, mesmo porque concurso público é algo indicado somente para funcionários públicos, pessoas que exercem funções de responsabilidade que exigem uma formação específica - fiscais, auditores, juízes, etc.
Se isso for feito, penso que a terceirização retornará a seu escopo original - as atividades contratadas como empreitada, com prazo para terminar. Afinal, ao contrário do que muitos pensam, terceirizar não sai barato: as empresas alocadoras de mão-de-obra cobram cerca do triplo do salário em carteira de cada trabalhador alocado. O empregador, invariavelmente, se dispõe a pagar um valor X por cada empregado, valor esse determinado pelo mercado de trabalho. Se desse valor, um total y será descontado na forma de encargos trabalhistas pela CLT ou na forma de pagamento à empresa terceirizada, isso é indiferente para o empregador: ele desembolsou X, e ponto final. Mas não é indiferente para o empregado, que recebe X - y em seu contracheque. Acredito que para o trabalhador, interessante seria se ele recebesse o valor X integralmente - sem nem o Estado, nem o atravessador de mão-de-obra no caminho.
sexta-feira, 27 de março de 2015
O Brasil e o Mundo Ocidental
Pouca gente se dá conta, e dos que dão conta, poucos dão a devida importância ao assunto, mas uma descoberta que fiz recentemente, e que chamou minha atenção, foi que boa parte do Mundo Ocidental não considera o Brasil parte do Mundo Ocidental. Outros também - jornalistas, acadêmicos - fizeram a mesma descoberta, com surpresa e alguma apreensão: o professor de literatura Alex Castro, trabalhando em uma universidade norte-americana, descobriu que seus alunos matricularam-se em seu curso porque queriam ter contato com uma literatura não-ocidental. O jornalista Guga Chacra fez a mesma descoberta. E a também jornalista Gisela Anauate conta como descobriu em Paris que não era ocidental.
Faz diferença? Essa podia ser uma discussão bizantina sobre conceitos subjetivos, mas faz diferença, sim. Por detrás da exclusão do Brasil do imaginário ocidental, há posturas pessoais e atitudes que podem efetivamente prejudicar-nos. Não confio em quem pensa isso de mim. Podemos afirmar: afinal, acreditem ou não, nós somos parte do ocidente, como provam nossa colonização, nossa língua, nossa religião, nossa cultura, nossa inserção em uma História européia que teve início quando Cristóvão Colombo aportou neste continente. Inútil: não se pode provar, cabalmente, que pertencemos ao Mundo Ocidental, pois esse conceito não tem uma definição estabelecida, mas pertence ao senso comum. O senso comum, como se sabe, muda com o tempo, e na época atual a ideia de Ocidente está ligada aos valores políticos e econômicos tornados dominantes a partir da hegemonia mundial européia. Pertencem ao Ocidente os países da Europa Ocidental, Os EUA, o Canadá, a Austrália e Nova Zelândia, pois são capitalistas, ricos e democráticos. O Brasil e o restante da América Latina não pertencem ao Mundo Ocidental porque são pobres. Ponto. Mas seguindo essa linha de raciocínio, o Japão também é incluído no Mundo Ocidental porque, afinal, também é capitalista, rico e democrático.
A inclusão do Japão parece-me ainda mais absurda que a exclusão do Brasil. O Japão tem sua própria civilização, a qual, tendo cinco mil anos de História, é mais antiga que a própria civilização ocidental, que tem apenas dois mil anos. O caso é que a acepção em uso do conceito de Ocidente exclui toda referência cultural. Tornou-se um paradigma, reduzido de fato a sinônimo de Primeiro Mundo. Entretanto, se o senso comum pode modificar o sentido das palavras, não pode apagar o significado anterior, pois este continua registrado em impressos e na memória das pessoas: ocidente, no dicionário, ainda significa um lugar específico do mapa, e no contexto da presente discussão, sabemos que este lugar é a Europa Ocidental, e não outra parte do mundo. Uma vez que o Brasil foi colonizado por países da Europa Ocidental e é herdeiro da cultura aqui deixada pelo colonizador, penso que temos motivos pertinentes para afirmar que somos parte do Mundo Ocidental, tanto quanto norte-americanos, canadenses e demais países do Novo Mundo colonizados por europeus.
Uma alternativa para contemporizar seria lembrar que a formação do Brasil não incluiu somente europeus, mas também índios, africanos e asiáticos. Soa bem. Mas não resolve a questão: sob esta lógica, EUA, Canadá e Austrália também seriam países não-ocidentais. No entanto, não são apenas europeus e norte-americanos que querem nos excluir do Ocidente; muitos latino-americanos têm o mesmo propósito, mas com objetivos diferentes. Todos se lembram quando Hugo Chávez, na Venezuela, declarou que não mais comemoraria o dia da descoberta da América, posto que não havia nada a comemorar, uma vez que o que teria de fato ocorrido foi uma invasão que trouxe a desgraça aos povos originários. Esta não é a opinião apenas de líderes carismáticos, muitos antropólogos e historiadores endossam a tese: a civilização latino-americana já existia em 1492 quando foi invadida por europeus. Assim, o que existe hoje nessa parte do globo não seria uma parte da civilização ocidental, mas uma civilização créole, mesclando elementos europeus com ameríndios.
Vale conferir. Há de fato locais da América do Sul e Central - os Andes, o México, o Caribe - onde existem descendentes de antigos povos autóctones que falam a língua e praticam costumes de seus ancestrais. Mas são apenas aqueles poucos grupos étnicos que eram evoluídos e tinham cultura vigorosa quando o europeu chegou. Na maior parte do continente, a população indígena era primitiva e foi totalmente aculturada, deixando como legado apenas vestígios de sua cultura original. O brasileiro pode ser caboclo ou mulato, mas não fala tupi ou ieorubá, fala o português deixado pelo colonizador. Não acredito ser válida, do ponto de vista antropológico, a definição de uma civilização sul-americana original e distinta da civilização ocidental. Ou melhor dizendo, a civilização sul-americana não é uma civilização, mas um gueto, um conceito que foi inventado para aparta-la do Mundo Ocidental.
A quem interessa aparta-la? Do nosso lado, aos nacionalistas exaltados, que desejam afrontar o antigo colonizador, ao mesmo tempo em que cortejam os antigos descendentes de índios e criam um senso de solidariedade com o resto do Terceiro Mundo. Na extremidade oposta, os membros ricos do Mundo Ocidental desejam apartar-nos porque, do contrário, teriam que admitir que o Mundo Ocidental contém países pobres. Uma vez que na conceituação destes, o Ocidente foi reduzido ao paradigma Capitalista-Rico-Democrático, então por definição não existem pobres no ocidente. Vê-se que tanto de um lado quanto do outro a exclusão da América Latina do Ocidente esconde sentimentos mutuamente hostis, senão de baixa paixão, por detrás do arrazoado tecnicista. Nós nos excluímos porque desejamos renegar nossos colonizadores; eles nos excluem porque lhes é vergonhoso compartilhar seus contexto civilizacional com pobres. Uma abordagem desapaixonada, a meu ver, não pode concluir outra coisa senão que a América Latina é um ocidente pobre, e que a civilização ocidental, como toda civilização, também contém partes pobres. De resto, mesmo os membros do Mundo Ocidental tidos atualmente como efetivos não foram sempre ricos, nem foram sempre democráticos. E não custa lembrar que o comunismo, tanto quanto o capitalismo, surgiu no cerne mesmo do Mundo Ocidental antes de espalhar-se pela periferia.
Acredito que devemos, sim, afirmar nossa condição de membros do Mundo Ocidental, ao invés de relativizar a questão. Somos um ocidente pobre, mas tão produto da colonização européia quanto EUA ou Austrália. Abrir mão desse vínculo só tem o efeito de nos deixar à deriva, privados de referenciais, tentando construir do zero uma hipotética civilização latino-americano. O próprio nome é autocontraditório, pois afinal, de que outro lugar veio o latino, senão da Europa? Que eu saiba, o Latium era a região da Itália central onde surgiu Roma. Trata-se de outra mistificação que bem devíamos combater: assim como o conceito de Mundo Ocidental tem sido transmutado em Primeiro Mundo, o conceito de latino tem sido transmutado em não-europeu (ou não-branco), ou seja, o que é originado da América do Sul ou Central. É um erro enorme. Nossa latinidade é o vínculo que nos une ao cerne mesmo da civilização ocidental, que conforme se sabe, é formada pela conjunção da herança greco-romana (ou latina) com a tradição judaico-cristã.
Faz diferença? Essa podia ser uma discussão bizantina sobre conceitos subjetivos, mas faz diferença, sim. Por detrás da exclusão do Brasil do imaginário ocidental, há posturas pessoais e atitudes que podem efetivamente prejudicar-nos. Não confio em quem pensa isso de mim. Podemos afirmar: afinal, acreditem ou não, nós somos parte do ocidente, como provam nossa colonização, nossa língua, nossa religião, nossa cultura, nossa inserção em uma História européia que teve início quando Cristóvão Colombo aportou neste continente. Inútil: não se pode provar, cabalmente, que pertencemos ao Mundo Ocidental, pois esse conceito não tem uma definição estabelecida, mas pertence ao senso comum. O senso comum, como se sabe, muda com o tempo, e na época atual a ideia de Ocidente está ligada aos valores políticos e econômicos tornados dominantes a partir da hegemonia mundial européia. Pertencem ao Ocidente os países da Europa Ocidental, Os EUA, o Canadá, a Austrália e Nova Zelândia, pois são capitalistas, ricos e democráticos. O Brasil e o restante da América Latina não pertencem ao Mundo Ocidental porque são pobres. Ponto. Mas seguindo essa linha de raciocínio, o Japão também é incluído no Mundo Ocidental porque, afinal, também é capitalista, rico e democrático.
A inclusão do Japão parece-me ainda mais absurda que a exclusão do Brasil. O Japão tem sua própria civilização, a qual, tendo cinco mil anos de História, é mais antiga que a própria civilização ocidental, que tem apenas dois mil anos. O caso é que a acepção em uso do conceito de Ocidente exclui toda referência cultural. Tornou-se um paradigma, reduzido de fato a sinônimo de Primeiro Mundo. Entretanto, se o senso comum pode modificar o sentido das palavras, não pode apagar o significado anterior, pois este continua registrado em impressos e na memória das pessoas: ocidente, no dicionário, ainda significa um lugar específico do mapa, e no contexto da presente discussão, sabemos que este lugar é a Europa Ocidental, e não outra parte do mundo. Uma vez que o Brasil foi colonizado por países da Europa Ocidental e é herdeiro da cultura aqui deixada pelo colonizador, penso que temos motivos pertinentes para afirmar que somos parte do Mundo Ocidental, tanto quanto norte-americanos, canadenses e demais países do Novo Mundo colonizados por europeus.
Uma alternativa para contemporizar seria lembrar que a formação do Brasil não incluiu somente europeus, mas também índios, africanos e asiáticos. Soa bem. Mas não resolve a questão: sob esta lógica, EUA, Canadá e Austrália também seriam países não-ocidentais. No entanto, não são apenas europeus e norte-americanos que querem nos excluir do Ocidente; muitos latino-americanos têm o mesmo propósito, mas com objetivos diferentes. Todos se lembram quando Hugo Chávez, na Venezuela, declarou que não mais comemoraria o dia da descoberta da América, posto que não havia nada a comemorar, uma vez que o que teria de fato ocorrido foi uma invasão que trouxe a desgraça aos povos originários. Esta não é a opinião apenas de líderes carismáticos, muitos antropólogos e historiadores endossam a tese: a civilização latino-americana já existia em 1492 quando foi invadida por europeus. Assim, o que existe hoje nessa parte do globo não seria uma parte da civilização ocidental, mas uma civilização créole, mesclando elementos europeus com ameríndios.
Vale conferir. Há de fato locais da América do Sul e Central - os Andes, o México, o Caribe - onde existem descendentes de antigos povos autóctones que falam a língua e praticam costumes de seus ancestrais. Mas são apenas aqueles poucos grupos étnicos que eram evoluídos e tinham cultura vigorosa quando o europeu chegou. Na maior parte do continente, a população indígena era primitiva e foi totalmente aculturada, deixando como legado apenas vestígios de sua cultura original. O brasileiro pode ser caboclo ou mulato, mas não fala tupi ou ieorubá, fala o português deixado pelo colonizador. Não acredito ser válida, do ponto de vista antropológico, a definição de uma civilização sul-americana original e distinta da civilização ocidental. Ou melhor dizendo, a civilização sul-americana não é uma civilização, mas um gueto, um conceito que foi inventado para aparta-la do Mundo Ocidental.
A quem interessa aparta-la? Do nosso lado, aos nacionalistas exaltados, que desejam afrontar o antigo colonizador, ao mesmo tempo em que cortejam os antigos descendentes de índios e criam um senso de solidariedade com o resto do Terceiro Mundo. Na extremidade oposta, os membros ricos do Mundo Ocidental desejam apartar-nos porque, do contrário, teriam que admitir que o Mundo Ocidental contém países pobres. Uma vez que na conceituação destes, o Ocidente foi reduzido ao paradigma Capitalista-Rico-Democrático, então por definição não existem pobres no ocidente. Vê-se que tanto de um lado quanto do outro a exclusão da América Latina do Ocidente esconde sentimentos mutuamente hostis, senão de baixa paixão, por detrás do arrazoado tecnicista. Nós nos excluímos porque desejamos renegar nossos colonizadores; eles nos excluem porque lhes é vergonhoso compartilhar seus contexto civilizacional com pobres. Uma abordagem desapaixonada, a meu ver, não pode concluir outra coisa senão que a América Latina é um ocidente pobre, e que a civilização ocidental, como toda civilização, também contém partes pobres. De resto, mesmo os membros do Mundo Ocidental tidos atualmente como efetivos não foram sempre ricos, nem foram sempre democráticos. E não custa lembrar que o comunismo, tanto quanto o capitalismo, surgiu no cerne mesmo do Mundo Ocidental antes de espalhar-se pela periferia.
Acredito que devemos, sim, afirmar nossa condição de membros do Mundo Ocidental, ao invés de relativizar a questão. Somos um ocidente pobre, mas tão produto da colonização européia quanto EUA ou Austrália. Abrir mão desse vínculo só tem o efeito de nos deixar à deriva, privados de referenciais, tentando construir do zero uma hipotética civilização latino-americano. O próprio nome é autocontraditório, pois afinal, de que outro lugar veio o latino, senão da Europa? Que eu saiba, o Latium era a região da Itália central onde surgiu Roma. Trata-se de outra mistificação que bem devíamos combater: assim como o conceito de Mundo Ocidental tem sido transmutado em Primeiro Mundo, o conceito de latino tem sido transmutado em não-europeu (ou não-branco), ou seja, o que é originado da América do Sul ou Central. É um erro enorme. Nossa latinidade é o vínculo que nos une ao cerne mesmo da civilização ocidental, que conforme se sabe, é formada pela conjunção da herança greco-romana (ou latina) com a tradição judaico-cristã.
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