Todos aqueles que se formaram, como eu, no último quarto do século passado, acostumaram-se com a dicotomia País Industrializado X País Agrícola sinônimo de Desenvolvido X Subdesenvolvido. Desde Vargas, os governos divergiam em tudo, e só concordavam com a meta: o país devia se industrializar. Isso era ponto pacífico. Variadas políticas foram implementadas em prol da industrialização, com resultados mais ou menos eficazes, mas de modo geral passamos a ver o crescimento da parcela do PIB nacional derivado da indústria como uma tendência inexorável, embora este índice ainda estivesse longe de nos colocar no rol dos países ditos industrializados.
É com inevitável perplexidade que contatamos, nesse quarto inicial do novo século, que o país na realidade está se desindustrializando: a fatia do PIB nacional derivada da indústria de transformação tem caído ano após ano. Esse setor já representou 35% de nosso PIB e hoje não é mais que 12%. De fato, como mostra esse estudo do economista Ha-Joon Chang, o Brasil vive a maior desindustrialização da história da economia.
Onde foi que falhamos? Por que esse quadro, após havermos sido um dos campeões mundiais de crescimento econômico no século passado? Ha-Joon Chang tenta algumas respostas. Explica que os países hoje desenvolvidos iniciaram sua industrialização com base no que Alexander Hamilton, primeiro secretário de tesouro dos EUA, defendeu como o argumento da indústria nascente. Do mesmo jeito que mandamos nossas crianças para a escola ao invés do trabalho quando são pequenas, afirma ele, e as protegemos até elas crescerem, os governos de economias emergentes têm que proteger suas indústrias até que elas cresçam e possam competir com as indústrias de países ricos.
Mas não foi exatamente isso que fizemos?
Ha-Joon Chang é sul-coreano, e portanto deve uma explicação de como seu país conseguiu sólida industrialização em tão pouco tempo, constituindo-se um modelo de sucesso junto ao terceiro mundo. Por aqui, acostumamos-nos a apontar a Coréia do Sul como o oposto do Brasil: aquele que foi bem sucedido onde falhamos. No Brasil teria havido uma excessiva dependência da indústria nascente para com o Estado, enquanto lá desde cedo as indústrias tiveram que competir no mercado global. Mas uma análise mais detalhada mostra que há mais semelhanças do que diferenças entre os modelos coreano e brasileiro. Lá também houve pesada interferência do Estado e muito protecionismo. Esse é o ponto mais destacado na argumentação de Ha-Joon Chang, que critica os países desenvolvidos por condenarem o protecionismo nos países pobres após eles próprios haverem se desenvolvido graças ao protecionismo. Afirma ele, os países ricos estariam "chutando a escada", após haverem subido por ela. Esse aliás é o título de um de seus livros. Chang lamenta que após a crise de 1997 seu país aderiu aos ditames "neoliberais", e se antes crescia a 7% ou 8% ao ano, agora não cresce a mais de 3%.
Quanto a mim, careço de informações mais abundantes, mas parece-me irracional que os coreanos sejam tão idiotas a ponto de manterem por 20 anos um modelo tão ineficiente ao invés de retomar o modelo antigo muito mais eficiente. A explicação deve ser outra. A crise de 1997 deve ter representado o esgotamento de um modelo. De fato, altos índices de crescimento são esperados nos primórdios da industrialização; afinal, onde há uma fábrica e se constrói mais uma, o crescimento é de 100%, certo? E um índice na faixa de 3% é normal em países já desenvolvidos. Penso, então, que a desaceleração do crescimento da Coréia do Sul meramente indica aquilo que o senso comum já percebeu: a Coréia do Sul tornou-se mais um país desenvolvido.
E o Brasil? Pondo de lado rótulos bipolares como "neoliberalismo" e "protecionismo", e rebuscando minhas próprias memórias, recordo-me que o momento em que o percentual da indústria no PIB atingiu seu auge de 35% correspondeu ao pior momento de nossa economia: foi nos anos 80, a década perdida, em meio à inflação e ao desemprego. No momento atual esse percentual caiu para 12%, mas ninguém dirá que estamos pior hoje do que em estávamos nos anos 80 do século passado. Ao menos não no ponto de vista social. Também estamos em recessão, mas o desemprego e a inflação não se comparam ao que eram naquela época. E deve ser lembrado que a tendência de queda do percentual da indústria no PIB é anterior à presente recessão.
Então, afinal, talvez o fenômeno da desindustrialização não seja algo tão ruim assim. Deve ao menos ser entendido melhor, e observado que também ocorre em países desenvolvidos: mesmo os EUA estão se "desindustrializando" em alguns setores, exportando suas fábricas para países pobres. O modelo de "país industrializado" hoje em dia é a China, com sua indústria de mão-de-obra intensiva e baixa qualidade, que apesar de seus altos índices de crescimento, ainda apresenta um PIB per Capita inferior ao do Brasil. De fato, a tendência nos países ricos é o encolhimento do setor secundário (indústria) e concomitante crescimento do setor terciário (serviços), tal como no século 19 o setor secundário cresceu com o correspondente encolhimento do setor primário (agricultura). Pode estar havendo fenômeno similar aqui?
Em alguma medida, pode. O setor terciário também cresce entre nós. E note-se que apesar do encolhimento da indústria e crescimento da agricultura no percentual do PIB, isso NÃO significa que nosso setor primário esteja voltando a crescer. O número de brasileiros que trabalha no campo só tem diminuído. Isso denota que o crescimento da fatia da agricultura no PIB não se deve somente ao encolhimento da indústria, mas ao crescimento em termos brutos de nossa agricultura, que hoje é muito mais moderna e produtiva. É melhor ter uma agricultura moderna do que uma indústria ultrapassada? O ideal, sem dúvida, é modernizar ambos, mas no século passado assistimos a sucessivos surtos de industrialização puxados por incentivos do Estado, que refluíram tão logo cessaram esses incentivos. A indústria naval e a informática são exemplos. Se tenho saudades dos computadores nacionais dos anos 80, os piores e mais caros do mundo? Com certeza não. Mas se nossos empreendedores ainda estão sonhando com a revogação da abertura dos portos de 1808 e a volta do velho mercantilismo colonial, quando todo empreendimento só se fazia com o aval do rei, que concedia monopólios a seus protegidos, então o melhor é que vão mesmo plantar batatas.
quinta-feira, 25 de janeiro de 2018
terça-feira, 16 de janeiro de 2018
A Gênese do Mundo Ocidental
Uma hora ou outra, todos sentem vontade de responder à pergunta: quem somos? De onde viemos? Por que somos assim? Geralmente isso ocorre nos momentos de insegurança, quando sentimos nossas convicções abaladas. Na dúvida, queremos agarrar a nossa tábua de valores. Por este motivo, é útil decifrar o gênese de nosso mundo, o Mundo Ocidental, e oportuno fazê-lo nesse momento em que o fenômeno da globalização ameaça dissolver as identidades em um caldo único, e inclusive muita gente deseja declarar que não pertencemos ao ocidente, tema de outro ensaio meu.
A Civilização Ocidental é recente se comparada a outras como a chinesa e a japonesa, tem no máximo dois mil anos, mas só fez jus de fato a essa designação a partir da Alta Idade Média. Antes o ocidente era Roma e o oriente era a Grécia, sendo que o norte da Europa era totalmente distinto. A menção meramente geográfica, Oeste X Leste, já não faz mais sentido na época atual, mas o núcleo difusor da civilização ocidental efetivamente teve início em um local geográfico que correspondia ao oeste de um continente. Aquelas terras do mundo que receberam o influxo desta civilização compõem hoje o Mundo Ocidental, e são tão geograficamente dispersas quanto a América Latina e a Nova Zelândia. Mas precisamos recuar dois mil anos no tempo para levantar o gênese deste mundo.
O senso comum é que a Civilização Ocidental possui quatro pilares: a herança greco-romana, origem dos idiomas, das instituições e da filosofia, e a herança judaico-cristã, origem das crenças e valores. Mas como esses pilares se uniram não é tão fácil explicar. Mesmo porque, em sua origem, eles eram bastante disjuntos. A primeira noção de um ocidente oposto a um oriente vem a surgir na Grécia de cinco séculos antes de cristo, época das guerras contra os persas. Na visão dos gregos, os persas constituíam não apenas seu inimigo, mas também uma anti-civilização, oposta em tudo à helênica. Assim, o mundo dos bárbaros passou a ser o oriente. Para a porção ocidental da Europa além da Grécia, contudo, essa dicotomia ainda não fazia sentido.
Após a conquista romana, a Grécia passou a ser o oriente. Roma era o ocidente. Mas como é norma acontecer nos casos em que a superioridade militar não corresponde a uma superioridade cultural, os romanos assimilaram o legado cultural dos gregos, e as duas civilizações se fundiram. Temos aí os dois primeiros pilares fincados. Mas o norte da Europa nada tinha a ver com o mundo greco-romano; sua civilização era peculiar, e eram considerados tão diferentes quanto os povos da Ásia Menor. Como foi que essa porção do mundo se incorporou ao contexto civilizacional greco-romano, formando a Europa como hoje a conhecemos? Ironicamente, foi graças aos bárbaros da Ásia Menor, devido a uma religião por eles difundida. Inicialmente, a conquista militar só incorporou ao mundo romano o oeste da Europa, mas quando Roma já não tinha a força militar, sua civilização passou a difundir-se por meio da religião à qual se haviam convertido, o cristianismo.
Penso eu, se a herança greco-romana forneceu as pedras da construção, a herança judaico-cristã foi o cimento que as uniu. Uma religião que incorpora uma ética lida com crenças íntimas, onde se encontram as convicções mais profundas do homem do povo. Pode ser difundida pela força, mas também, e mais eficazmente, pela persuasão. Missionários propagam uma civilização de forma mais rápida, limpa e completa do que legionários ou mercadores. Não foi à toa que para a conquista do Novo Mundo, padres e pastores desempenharam um papel essencial. Mas afinal como foi que uma religião vinda do oriente, totalmente estranha aos valores romanos, foi aceita por este povo que desprezava os orientais como bárbaros?
Esse é um dos grandes mistérios da História, ainda não totalmente explicado. A combinação de componentes tão opostos quanto o politeísmo romano e o monoteísmo judaico, a filosofia grega e o dogmatismo cristão, não se deu em um instante, nem foi isenta de luta. Foi assim como uma reação química fulminante, que combina ingredientes imisturáveis e produz um composto totalmente distinto. O processo inteiro levou cerca de cinco séculos, e na maior parte do tempo distinguiu-se mais por estranhamento do que por adesão.
O choque começou entre os dois pilares do oriente, o judaísmo e o cristianismo. Como se sabe, o cristianismo foi repudiado em seu local de nascimento, a Judéia romana, mas propagou-se com rapidez nos arredores. Jesus aparentemente era analfabeto, pois não deixou obra escrita, mas sua doutrina foi apropriada por seus seguidores. Inicialmente uma seita do judaísmo, o cristianismo ganhou identidade definitiva de nova religião quando surgiram os primeiros textos doutrinários escritos, sobretudo os de autoria de São Paulo. Mas a herança judaica foi acomodada na nova religião como o Antigo Testamento, traduzido para o grego entre os séculos I e III A.C. em Alexandria, versão conhecida como septuaginta por supostamente haver sido redigida por setenta escribas. Os dois pilares do oriente estavam unidos.
A penetração da nova religião no mundo romano foi mais traumática. Mesmo porque, em perspectiva, a crença judaico-cristã nada tinha a ver com a mentalidade romana, que prezava o corpo, a glória e a riqueza terrenas. Os primeiros cristãos eram vistos como uma seita macabra que se refugiava em catacumbas, onde celebravam, dizia-se, rituais medonhos onde comiam o corpo e bebiam o sangue de um tal Jesus. E além disso ainda repudiavam o banho. Não admira que fossem responsabilizados pelo incêndio de Roma, já que viviam falando de um fim do mundo pelas chamas. Foram reprimidos com violência, mesmo porque a adesão cada vez maior da parte dos escravos alimentava o receio de uma revolução social. Mas a despeito de tudo isso, o número de convertidos crescia sem parar.
A única explicação que encontro é que a mensagem dos cristãos tinha, efetivamente, uma aceitação profunda da parte dos homens e das mulheres do povo, propiciando-lhes um conforto que as religiões então existentes nunca poderiam permitir. Diferente dos deuses pagãos, o deus dos cristãos não se limitava a conceder graças em troca de oferendas, mas exigia um comportamento ético da parte de seus seguidores. Proibia o roubo, a cobiça e a violência. Já os deuses pagãos relacionavam-se com seus seguidores mais ou menos da mesma forma que qualquer senhor poderoso da época relacionava-se com seus clientes: apenas uma troca de favores. Não amavam nem eram amados, nada tinham a ensinar, favoreciam àqueles que concediam-lhes as melhores oferendas e castigavam impiedosamente conforme sua veneta. O deus dos cristãos tinha para com seus seguidores uma intimidade só concebível entre duas criaturas unidas por amor sincero, e preenchia profundas carências, comuns em uma época de insegurança e violência desmedidas. Seus ensinamentos aliviavam a opressão cometida por senhores contra seus servos, e sobretudo contra as mulheres: dizer isso hoje em dia pode soar estranho, mas quando de seu surgimento, o cristianismo impôs uma sensível melhora na condição feminina se comparado ao que havia antes. Proibiu a poligamia e o divórcio, o que não é pouca coisa levando-se em conta que os homens de então podiam ter várias esposas e divorciar-se delas sem lhes dar nada.
Aceito o cristianismo como a religião oficial do império romano, veio o embate seguinte, opondo a doutrina cristã à cultura helênica. Agora são cristãos os opressores; destroem templos pagãos, mas também perseguem filósofos e cientistas. Foi uma luta violenta e repleta de lances trágicos, como o linchamento da filósofa Hipatia de Alexandria por uma turba enlouquecida. Por um instante parecia que os cristãos iam liquidar a vida intelectual do mundo grego e reduzir a recém-nascida civilização ocidental à mediocridade, mas a previsão não se cumpriu. O legado intelectual dos gregos acabou por ser acolhido entre os cristãos, e tão bem preservado que mil anos após conheceria um formidável florescimento, que dura até hoje. Difundido por toda a Europa por intermédio de escolas e universidades, formatou o racionalismo e o cientificismo que hoje nos parecem inseparáveis da mentalidade ocidental. Conceitos como democracia, cidadania e civismo, ao ressurgirem no século 18, pareciam tão atuais quanto no tempo dos atenienses, evidenciando o quanto a herança grega acompanhou a gênese de nossa civilização, mesmo que por muitos séculos permanecesse arquivada e disponível apenas a uns poucos letrados.
Foi assim que chegamos aqui. Quatro pilares, que pareciam de todo inconciliáveis, de algum modo se combinaram e forneceram um patamar extremamente sólido para uma civilização que, bem ou mal, tem sido a dominante no planeta nos últimos cinco séculos.
Só não entendo porque os ocidentais têm um afã tão grande em criticar e renegar sua própria civilização. Sentimento de culpa?
A Civilização Ocidental é recente se comparada a outras como a chinesa e a japonesa, tem no máximo dois mil anos, mas só fez jus de fato a essa designação a partir da Alta Idade Média. Antes o ocidente era Roma e o oriente era a Grécia, sendo que o norte da Europa era totalmente distinto. A menção meramente geográfica, Oeste X Leste, já não faz mais sentido na época atual, mas o núcleo difusor da civilização ocidental efetivamente teve início em um local geográfico que correspondia ao oeste de um continente. Aquelas terras do mundo que receberam o influxo desta civilização compõem hoje o Mundo Ocidental, e são tão geograficamente dispersas quanto a América Latina e a Nova Zelândia. Mas precisamos recuar dois mil anos no tempo para levantar o gênese deste mundo.
O senso comum é que a Civilização Ocidental possui quatro pilares: a herança greco-romana, origem dos idiomas, das instituições e da filosofia, e a herança judaico-cristã, origem das crenças e valores. Mas como esses pilares se uniram não é tão fácil explicar. Mesmo porque, em sua origem, eles eram bastante disjuntos. A primeira noção de um ocidente oposto a um oriente vem a surgir na Grécia de cinco séculos antes de cristo, época das guerras contra os persas. Na visão dos gregos, os persas constituíam não apenas seu inimigo, mas também uma anti-civilização, oposta em tudo à helênica. Assim, o mundo dos bárbaros passou a ser o oriente. Para a porção ocidental da Europa além da Grécia, contudo, essa dicotomia ainda não fazia sentido.
Após a conquista romana, a Grécia passou a ser o oriente. Roma era o ocidente. Mas como é norma acontecer nos casos em que a superioridade militar não corresponde a uma superioridade cultural, os romanos assimilaram o legado cultural dos gregos, e as duas civilizações se fundiram. Temos aí os dois primeiros pilares fincados. Mas o norte da Europa nada tinha a ver com o mundo greco-romano; sua civilização era peculiar, e eram considerados tão diferentes quanto os povos da Ásia Menor. Como foi que essa porção do mundo se incorporou ao contexto civilizacional greco-romano, formando a Europa como hoje a conhecemos? Ironicamente, foi graças aos bárbaros da Ásia Menor, devido a uma religião por eles difundida. Inicialmente, a conquista militar só incorporou ao mundo romano o oeste da Europa, mas quando Roma já não tinha a força militar, sua civilização passou a difundir-se por meio da religião à qual se haviam convertido, o cristianismo.
Penso eu, se a herança greco-romana forneceu as pedras da construção, a herança judaico-cristã foi o cimento que as uniu. Uma religião que incorpora uma ética lida com crenças íntimas, onde se encontram as convicções mais profundas do homem do povo. Pode ser difundida pela força, mas também, e mais eficazmente, pela persuasão. Missionários propagam uma civilização de forma mais rápida, limpa e completa do que legionários ou mercadores. Não foi à toa que para a conquista do Novo Mundo, padres e pastores desempenharam um papel essencial. Mas afinal como foi que uma religião vinda do oriente, totalmente estranha aos valores romanos, foi aceita por este povo que desprezava os orientais como bárbaros?
Esse é um dos grandes mistérios da História, ainda não totalmente explicado. A combinação de componentes tão opostos quanto o politeísmo romano e o monoteísmo judaico, a filosofia grega e o dogmatismo cristão, não se deu em um instante, nem foi isenta de luta. Foi assim como uma reação química fulminante, que combina ingredientes imisturáveis e produz um composto totalmente distinto. O processo inteiro levou cerca de cinco séculos, e na maior parte do tempo distinguiu-se mais por estranhamento do que por adesão.
O choque começou entre os dois pilares do oriente, o judaísmo e o cristianismo. Como se sabe, o cristianismo foi repudiado em seu local de nascimento, a Judéia romana, mas propagou-se com rapidez nos arredores. Jesus aparentemente era analfabeto, pois não deixou obra escrita, mas sua doutrina foi apropriada por seus seguidores. Inicialmente uma seita do judaísmo, o cristianismo ganhou identidade definitiva de nova religião quando surgiram os primeiros textos doutrinários escritos, sobretudo os de autoria de São Paulo. Mas a herança judaica foi acomodada na nova religião como o Antigo Testamento, traduzido para o grego entre os séculos I e III A.C. em Alexandria, versão conhecida como septuaginta por supostamente haver sido redigida por setenta escribas. Os dois pilares do oriente estavam unidos.
A penetração da nova religião no mundo romano foi mais traumática. Mesmo porque, em perspectiva, a crença judaico-cristã nada tinha a ver com a mentalidade romana, que prezava o corpo, a glória e a riqueza terrenas. Os primeiros cristãos eram vistos como uma seita macabra que se refugiava em catacumbas, onde celebravam, dizia-se, rituais medonhos onde comiam o corpo e bebiam o sangue de um tal Jesus. E além disso ainda repudiavam o banho. Não admira que fossem responsabilizados pelo incêndio de Roma, já que viviam falando de um fim do mundo pelas chamas. Foram reprimidos com violência, mesmo porque a adesão cada vez maior da parte dos escravos alimentava o receio de uma revolução social. Mas a despeito de tudo isso, o número de convertidos crescia sem parar.
A única explicação que encontro é que a mensagem dos cristãos tinha, efetivamente, uma aceitação profunda da parte dos homens e das mulheres do povo, propiciando-lhes um conforto que as religiões então existentes nunca poderiam permitir. Diferente dos deuses pagãos, o deus dos cristãos não se limitava a conceder graças em troca de oferendas, mas exigia um comportamento ético da parte de seus seguidores. Proibia o roubo, a cobiça e a violência. Já os deuses pagãos relacionavam-se com seus seguidores mais ou menos da mesma forma que qualquer senhor poderoso da época relacionava-se com seus clientes: apenas uma troca de favores. Não amavam nem eram amados, nada tinham a ensinar, favoreciam àqueles que concediam-lhes as melhores oferendas e castigavam impiedosamente conforme sua veneta. O deus dos cristãos tinha para com seus seguidores uma intimidade só concebível entre duas criaturas unidas por amor sincero, e preenchia profundas carências, comuns em uma época de insegurança e violência desmedidas. Seus ensinamentos aliviavam a opressão cometida por senhores contra seus servos, e sobretudo contra as mulheres: dizer isso hoje em dia pode soar estranho, mas quando de seu surgimento, o cristianismo impôs uma sensível melhora na condição feminina se comparado ao que havia antes. Proibiu a poligamia e o divórcio, o que não é pouca coisa levando-se em conta que os homens de então podiam ter várias esposas e divorciar-se delas sem lhes dar nada.
Aceito o cristianismo como a religião oficial do império romano, veio o embate seguinte, opondo a doutrina cristã à cultura helênica. Agora são cristãos os opressores; destroem templos pagãos, mas também perseguem filósofos e cientistas. Foi uma luta violenta e repleta de lances trágicos, como o linchamento da filósofa Hipatia de Alexandria por uma turba enlouquecida. Por um instante parecia que os cristãos iam liquidar a vida intelectual do mundo grego e reduzir a recém-nascida civilização ocidental à mediocridade, mas a previsão não se cumpriu. O legado intelectual dos gregos acabou por ser acolhido entre os cristãos, e tão bem preservado que mil anos após conheceria um formidável florescimento, que dura até hoje. Difundido por toda a Europa por intermédio de escolas e universidades, formatou o racionalismo e o cientificismo que hoje nos parecem inseparáveis da mentalidade ocidental. Conceitos como democracia, cidadania e civismo, ao ressurgirem no século 18, pareciam tão atuais quanto no tempo dos atenienses, evidenciando o quanto a herança grega acompanhou a gênese de nossa civilização, mesmo que por muitos séculos permanecesse arquivada e disponível apenas a uns poucos letrados.
Foi assim que chegamos aqui. Quatro pilares, que pareciam de todo inconciliáveis, de algum modo se combinaram e forneceram um patamar extremamente sólido para uma civilização que, bem ou mal, tem sido a dominante no planeta nos últimos cinco séculos.
Só não entendo porque os ocidentais têm um afã tão grande em criticar e renegar sua própria civilização. Sentimento de culpa?
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