domingo, 25 de setembro de 2022

Dois Personagens Injustiçados

O tempo está bom para falar de reis. O bicentenário da independência e o falecimento da rainha Elizabeth da Inglaterra puxam o assunto. Hoje vou abordar dois personagens tão importantes quanto injustiçados de nossa História: dom João VI e Pedro I.

O rei dom João é apresentado como um glutão bonachão e medroso, e seu filho, o futuro primeiro imperador do Brasil, como um rapagão mulherengo, grosseiro e ignorante a ponto de ser considerado quase um semi-analfabeto. Tanto um quanto o outro isentos de qualidades de estadista.

Mas primeiro de tudo faltou colocá-los em seu devido contexto histórico. O parvo João moveu-se em um verdadeiro olho de um furacão, tendo reinado em um dos períodos mais conturbados e de mais súbitas mudanças de toda a História Universal. De príncipe a rei, sem ter sido educado para tal, pois não era o herdeiro. Da Europa para o Brasil. De absolutista a constitucional. Do Brasil colônia a país independente. Passou por todas essas transições e permaneceu no poder, enquanto outros reis muito mais poderosos e melhor preparados eram depostos e exilados. E mais não se diga, inserido em um ambiente doméstico tão inóspido quanto o ambiente político.

Segundo de tudo, é preciso desmitificar a suposta fuga de João, que dizem, escafedeu-se deixando o seu povo a ver navios, daí ter surgido essa antiga expressão, pois a população de Lisboa ficou vendo os navios do rei sua comitiva ao longe enquanto as tropas de Napoleão chegavam. Mas é preciso dizer e repetir: João não fugiu. Tivesse fugido, seria apenas mais um rei no exílio. Mas continuou reinando, pois junto com ele, foi transportada toda a máquina governamental, incluindo o funcionalismo, os arquivos, o tesouro, a biblioteca que está aqui até hoje, e até uma tipografia completa. Uma operação de logistica complicadíssima para a época, mais ainda por ter sido planejada em total sigilo, que nunca antes fora executada, nem jamais o seria depois. Dom João VI foi o primeiro e o último monarca a visitar suas colônias na América - hoje isso pode parecer estranho, mas na época não se justificava de modo algum um rei meter-se em um navio para uma viagem arriscada e desconfortável, que tomaria mais de três meses tanto para a ida quanto para a volta, perfazendo bem um ano de ausência na metrópole.

A transferência do reino para outro continente foi uma façanha extraordinária e única, que já bastaria para tornar João admirável. Mas ele continuou a ser considerado um governante fracote e pusilânime, que sempre postergava decisões, supostamente por medo de tomá-las. Mas de postergação em postergação, o rei sobreviveu a todas as crises políticas e impasses militares daquea época conturbada, deu um grande impulso ao Brasil, que deixou de ser colônia, e ainda foi bem recebido de volta a Portugal, a terra de onde supostamente havia fugido correndo. Parece-me bem falso que João não tivesse qualidades de estadista.

Já dom Pedro é lembrado por haver tido dezenas de amantes e filhos naturais, bem como por seus modos grosseiros e sua boca cheia de palavrões. Não deixa de ser verdade. Mas se esquece que tal libertinagem era a regra para todos os reis e nobres da época. Uma espécie de compensação: sabia-se que reis e nobres tinham que sacrificar sua vida privada em prol de interesses políticos, com casamentos arranjados, mas ao mesmo tempo eram homens poderosos e acostumados a ter seus prazeres satsfeitos. Então lhes era concedida uma tolerância para casos extraconjugais que não se extendia à burguesia e ao povo.

É verdade também que o rapaz Pedro preferia expressar-se em linguagem coloquial, e por vezes conduzia-se como um rude homem do povo. Mas também é verdade que os arquivos da Biblioteca Nacional guardam muitos documentos bem escritos pelo próprio punho do imperador, em linguagem adequada. Não, Pedro não era um ignorante semi-analfabeto como muitos imaginam; ele teve, sim, uma educação de príncipe. Também é absurdo afirmar que não tinha qualidades de estadista um homem que aos 24 anos já havia feito a independência de um país que era quase um continente inteiro, e antes dos 36 anos já havia conduzido e vencido uma guerra em Portugal contra o usurpador do trono de sua filha, deixando tanto o Brasil quanto Portugal com regimes constitucionais, em uma época em que a monarquia absoluta estava em alta após as guerras napoleônicas. Pedro agiu bem e agiu mal, mas sobretudo, agiu sempre, quando poderia ter simplesmente se retirado para os bastidores e ali levado uma sossegada vida de pândega e fudelança.

Não vejo outra razão para o pouco caso com que são tratados esses personagens tão importantes de nossa História, senão como um sinal de profunda falta de autoestima. Antes que os outros zombem de nós, nós mesmos nos zombamos.

sábado, 17 de setembro de 2022

A Monarca e a Nação

A notícia que dominou a mídia na última semana foi o falecimento da rainha Elizabeth II da Inglaterra. Entende-se que um personagem tão simpático desperte uma justa comoção ao partir deste mundo, e de fato, a falecida soube como poucos conduzir-se como uma rainha deve ser, separando com discrição a vida pública da vida privada.

Muitos, contudo, não julgarão o ocorrido algo diferente da morte de alguma socialite ou artista muito popular. Mas eu insisto que Elizabeth foi mais do que isso. O que é a monarquia no mundo atual? Um regime de espetáculo, politicamente inútil e muito dispendioso, ao qual só alguns países muito ricos e tradicionalistas podem ser dar ao luxo de manter, certo? Custa caro, mas não afeta o funcionamento do governo, digo a vida de quem efetivamente governa. Desperta a nostagia de um passado quando os governantes era figuras garbosas, tão diferentes dos políticos que querem se passar por homens do povo, mas o que importa é que, garbosos ou não, aqueles que governam são referendados pelo povo. Ponto. Ficou no passado a dicotomia Monarquia/Aristocracia X República/Democracia.

Mas afinal, se a monarquia é um regime onde o povo não governa, como explicar que no mundo atual todos os regimes monárquicos sejam democracias exemplares, e todas as ditaduras são ou foram regimes republicanos?

Aí temos que recorrer à História e acompanhar a evolução dos regimes monárquicos, de absolutistas a constitucionais, até chegar à mera encenação de espetáculo que tornaram-se no tempo presente. O caso mais emblemático foi o da Inglaterra. Difícil hoje pensar em uma Inglaterra onde não haja um rei. Já dizia um certo personagem cujo nome eu esqueci, no futuro so restarão cinco reis: o rei de copas, o rei de espadas, o rei de ouros, o rei de paus e o rei da Inglaterra. Mas nem sempre foi assim. A Inglaterra foi o primeiro lugar do mundo moderno onde o regime monárquico foi seriamente questionado, ali pelo século 16. Um rei perdeu a cabeça, mas depois chegou-se à concusão de que o melhor mesmo era ter um rei, e a monarquia foi restaurada. Mas até o fim do século 18 foi um regime bastante desastrado, com reis mais interessados na vida dissoluta do que nos assuntos de estado, o que abriu espaço para que o parlamento e o primeiro ministro concentrassem cada vez mais o poder.

A monarquia britânica só consolidou-se de fato e tornou-se benquista com o reinado da rainha Vitória, e de certa fora foi ela, e não a tirânica Elizabeth I, a precursora da falecida Elizabeth II. Com a agitação social resultante da revolução industrial, surgiu a demanda por um governo que incutisse respeito à população, e a jovem rainha mostrou-se a figura ideal. Vitória tornou-se o protótipo do governante que, com sua conduta pessoal ilibada, dá legitimidade ao regime e às hierarquias sociais que o sustentam. Apesar de nunca haver mostrado interesse pelas demandas populares e não esconder sua preferência pelos conservadores, Vitória gozou de bons índices de aprovação popular a maior parte de seu reinado, em razão do poder e prosperidade alcançados pelo Império Britânico, e por sua vida exemplar na companhia do marido, sem os escândalos e adultérios que haviam até então marcado a família real. Aí foi gestado o conceito que ganhou o nome de moral burguesa, oposta à lassidão dos aristocratas, mas também devendo servir de modelo às classes trabalhadoras.

Elizabeth II reproduziu sem grandes volteios o papel de Vitória. Então, a monarquia não é mero resquício inútil de épocas passadas, ela teve uma função ao construir o presente dos países mais evoluídos do globo, e por isto é mantida com esmero por estes. O monarca não governa, mas reina; ele não está vinculado a um partido, mas à nação; e como tal, reúne em torno de si um poderoso simbolismo que mantém acesa a mística da nacionalidade. Faz-nos muita falta algo assim, tal como também falta a tantas outras repúblicas imperfeitas ou meramente repúblicas de fancaria pelo planeta afora. Mas já o tivemos. Terá sido coincidência que o país foi o único do continente que obteve sua independência com um regime monárquico, e também o único que manteve-se íntegro, sem fragmentar-se em dezenas de republiquetas? Terá sido por acaso que o Segundo Reinado foi bem mais estável política e economicamente do que a república que o sucedeu?

O papel de nosso último monarca foi bem resgatado em um memorável artigo que o escritor Monteiro Lobato publicou no longínquo ano de 1918. Ele procurava explicar como a época da monarquia podia ter sido tão menos conturbada que os tempos republicanos que estava vivendo então, se o povo e a classe política eram essencialemente os mesmos. Ele chegou à resposta: a presença de dom Pedro II:

Pedro II era a luz do baile.


Muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, jóias de arte sobre os consolos, dando ao conjunto uma impressão genérica de apuradíssima cultura social.


Extingue-se a luz. As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se tabefes, ouvem-se palavreados de tarimba, desaparecem as jóias…