domingo, 29 de março de 2020

1964, Mais uma Rodada

Não tem jeito. Todo ano, aproxima-se o dia 31 de março, vem mais uma revoada de artigos comentando o movimento de 1964, que surge assim como um fulcro em nossa História, uma esfinge indecifrada, um episódio não digerido e ainda menos compreendido, e por isso mesmo não se pode dizer que pertence à História, já que ainda é presente. Os mesmos questionamentos se sucedem ano após ano: foi golpe ou revolução? Foi nacionalista ou entreguista? Os comunistas estavam mesmo prestes a tomar o poder? Se não tivesse havido essa ditadura, teríamos caído em uma ditadura de esquerda pior?

Antes que venha o falatório de todo ano, resolvi me antecipar e publicar aqui minha análise, procurando não repetir os argumentos de sempre. Serei original. Começo afirmando que a causa principal da não compreensão exata do significado do movimento de 1964 é a insistência (desculpável) de abordá-lo restrito ao contexto da guerra fria dos anos 60 e da luta de classes marxista do século 19. Na realidade, suas raízes são mais antigas. Remontam, de fato, ao positivismo de Auguste Comte que seduziu as mentes de militares brasileiros desde o final do império, e que teve longo histórico de influência na política nacional, sobretudo entre os gaúchos.

Conhecendo essas origens antigas do militarismo no Brasil, certas aparentes contradições do regime de 1964 podem ser explicadas. Como pôde o regime implementar um desenvolvimentismo tão análogo ao nacional-estatismo de Vargas, se formalmente o movimento se opunha ao varguismo e havia derrubado o presidente que se proclamava herdeiro de Vargas? Na realidade, tanto o getulismo quanto a doutrina propagada pela Escola Superior de Guerra, que embasava o regime, têm raízes no positivismo do início do século 20. Vargas foi um herdeiro direto do positivismo gaúcho de Borges de Medeiros. O militarismo brasileiro originou-se do movimento tenentista dos anos 20, herdeiro dos militares positivistas que derrubaram o imperador. Tais personagens podiam se desentender e optar por ideologias distintas, mas suas ideias políticas vinham do mesmo tronco, embora as raízes do dito tronco não fossem mais visíveis.

Conhecendo-se a doutrina propugnada por Auguste Comte, faz todo o sentido. Ele considerava a forma parlamentar de governo superada, e acreditava em uma "ditadura republicana, racional e científica". Um governo exercido por homens superiores e compenetrados, que supostamente fariam uma administração visando o progresso e o bem comum, seguindo critérios puramente técnicos, acima dos interesses oligárquicos, corporativos ou meramente pessoais dos políticos profissionais. Bastante utópico, sem dúvida, e discurso semelhante já foi reproduzido por muitos governantes autoritários considerados "progressistas", no Brasil e nas vizinhanças, até pelo ditador mexicano Porfírio Diaz, que tinha como divisa "pouca política, muita administração".

Um ponto que ninguém discorda é que o regime militar brasileiro foi bastante peculiar, fugindo ao arquétipo da ditadura militar sul-americana. Examinado de perto, contudo, corresponde à perfeição ao positivismo proposto por Comte cem anos antes. Nota-se:

Os generais-presidentes tinham plenos poderes mas não eram caudilhos, isso é, não eram personalistas nem se eternizavam no poder, invariavelmente deixando o cargo ao término estipulado de seus mandatos. Ou seja, o regime era totalitário, mas preservava o formato republicano, com alternância no poder e mandatos fixos. Esse modelo corresponde à "ditadura republicana" desejada por Comte.

A administração se caracterizava pelo protagonismo de superministros, cuja influência superava o escopo de suas pastas, com amplas atribuições de planejamento centralizado. Delfim Neto e Mário Simonsen foram os mais notáveis. Esses superministros e suas equipes eram chamados de tecnocratas. Verifica-se a correspondência com o ideal comtiano de uma ditadura "científica", supostamente guiada apenas pelo parecer técnico.

Os discursos e as propagandas da época caracterizavam-se pela repetição de slogans patrióticos e não de slogans partidários, exaltando o progresso e o amor à pátria. Criava-se desta forma a impressão de que os governantes eram altruístas e visavam o bem comum, em substituição à incompetência e à corrupção dos políticos. Tudo a ver com o ideal comtiano do "amor por princípio, ordem por base e progresso por fim".

É irônico que os positivistas que derrubaram o imperador tenham chegado ao poder cem anos depois, quando não se falava mais em positivismo. Em sua época eles tentaram alçar o poder através do governo ditatorial de Floriano Peixoto, mas o "marechal de ferro" não ligava muito para textos de filósofos, e em seu governo havia mais militares na cadeia do que no poder. Os jornais positivistas, contudo, escreviam sem receio que a forma ideal de governo era a ditadura militar. Foram banidos durante o governo Prudente de Morais, mas as ideias positivistas, internalizadas nos hábitos mentais da caserna, passaram de geração em geração, e muitos continuavam a ver os militares como reserva moral da nação e investidos do Poder Moderador formalmente extinto com o fim da monarquia - enquanto os militares exercessem esse Poder Moderador, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerras civis.

O protagonismo militar na política ressurgiu com o movimento tenentista nos anos 20, e pelo século adentro o dito poder moderador foi exercido em muitas ocasiões, até ser transformado em poder executivo após 1964. No primeiro momento, o poder foi tomado por um conluio entre a liderança udenista e oficiais imbuídos da Doutrina de Segurança Nacional propagada pela ESG, mas o verdadeiro estamento burocrático do novo regime era o núcleo de militares-executivos colocados na direção de companhias estatais, criação de Juscelino Kubitschek na década anterior, que assim pretendia fabricar um grupo de apoiadores. Esse estamento burocrático ocupou gradualmente o cerne do poder nos anos seguintes ao golpe. Castelo Branco assumiu a presidência com plenos poderes, mas ao passar a faixa para Costa e Silva, com cuja candidatura não concordava, era já um mandatário esvaziado de todo o poder. Costa e Silva promulgou o AI-5 e tornou-se efetivamente um ditador, mas antes de ser imobilizado por uma trombose, estava já totalmente imobilizado pelo núcleo de oficiais conhecidos como a linha dura. A escolha de Emílio Médici representou a plenitude do novo regime.

O mote inicial do regime era o combate à subversão e à corrupção, mas logo ficou claro que para além desses objetivos, havia um projeto desenvolvimentista. Esse projeto, surpreendentemente, não se desviou do nacional-estatismo de Vargas e Kubitschek, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e "entreguista" (Kubitschek, Castelo). De fato, foi no período do governo dos militares que esse modelo chegou ao auge, com o "milagre" dos anos 70, bem como ao estertor, com o esgotamento nos anos 80. O regime, entretanto, não se perpetuou. Seu líder máximo, o presidente Médici, não se revelou um líder político, mas um gestor autoritário, concentrado em obras, e não em projetos políticos. Embora seu governo tenha sido o apogeu do regime, juntando o máximo rendimento econômico com o máximo poder sustentado pela máquina da repressão, Médici não fez um sucessor à sua semelhança e permitiu a volta do moderado grupo castelista, na figura de Ernesto Geisel. Esse grupo urdiu a abertura política, àquela altura essencial em razão do declínio do modelo econômico, e o governo militar brasileiro foi o único regime militar sul-americano a deixar o poder sem ser derrubado por um golpe, com a escolha de Tancredo Neves dentro do arcabouço constitucional herdado do próprio regime.

Mas a marca ficou. Uma herança do período de governo dos generais foi, ironicamente, a destruição da direita nacional. A vanguarda civil udenista, com Carlos Lacerda à frente, queria assumir o poder e foi prontamente liquidada pelos militares. A UDN foi desfibrada, tendo seus líderes cassados e os demais atirados na vala comum dos dois partidos mantidos pro forma. Nunca mais surgiria no país uma direita ativa e intelectualmente destacada como nos tempos de Carlos Lacerda. A classe política que emergiu após o fim do regime era provinciana e medíocre, personificada em tipos como José Sarney, que antes de 1964 nunca se cogitaria estar um dia no centro do poder. De fato, a classe política brasileira até hoje não se recuperou, e não se pode dizer que sua destruição foi um acidente: o regime de 1964 agiu fiel aos princípios de Auguste Comte, que via na política parlamentar um atraso. Consoante com esses princípios, todas as reformas constitucionais pós 1964 foram no sentido de prestigiar o eleitorado dos rincões do interior em detrimento ao eleitorado das grandes capitais. Não mudou muito de lá para cá. Por outro lado, o regime ditatorial foi pouco repressivo se comparado a nossos vizinhos: duas centenas e meia de mortos e outros tantos desaparecidos em vinte anos de ditadura, comparado aos mais de quinze mil mortos na Argentina, de população bem menor e em um período bem mais curto.

A crise econômica que se seguiu ao fim do regime abalou o mito dos militares como governantes superiores aos civis, e nos anos seguintes, até recentemente, não se registraram mais clamores por uma volta dos militares ao poder. Neste século 21, as ideias positivistas que embasaram a ditadura parecem mortas. A própria ditadura sempre clamou ser provisória, justificada pelo perigo da subversão comunista, e manteve sempre uma fachada democrática, posto que o discurso da época da guerra fria afirmava que o conflito existente opunha o totalitarismo comunista ao "mundo livre" democrático.

Mas a memória do regime dos generais continua a perturbar, agora mitificada. Teria sido uma época em que não havia corrupção, com segurança pública, patriotismo e empregos abundantes. O atual presidente não esconde sua admiração pelo período, mas o governo que conduz nada tem em comum com o nacional-estatismo dos militares de 1964 - a política econômica da equipe de Bolsonaro é liberal e desestatizante. A meu ver, não há compatibilidade nenhuma entre o período e a época atual, sendo a única explicação para a perturbação que ainda causa o recalque. A frustração daqueles que lamentam a derrota, e daqueles que lamentam não haver tomado parte do período.

terça-feira, 17 de março de 2020

Revendo Cidade de Deus

Outro dia assisti pela primeira vez o filme Cidade de Deus. Tinha já ouvido tanto falar que nem julgava mais necessário assisti-lo, mas resolvi dar uma conferida. Pode parecer estranho que eu queira fazer uma resenha quase vinte anos após o lançamento, mas é útil. Se quando foi lançado, o filme mostrava uma evolução histórica com um ponto de inflexão, agora ele próprio é parte da História e igualmente mostra um ponto de inflexão, mais precisamente aquele que separa a era do banditismo romântico da era do capitão Nascimento.

Artisticamente, o filme é muito bom e sem dúvida que mereceu os aplausos internacionais. O frenesi de tomadas com cortes no tempo prende efetivamente a atenção do espectador, e diversas cenas ficaram marcadas na memória coletiva. O real e a ficção são mesclados com competência, a ponto de não se saber distingui-los. Mas o filme é um marco, sobretudo, por romper com a narrativa do bandido-vítima que vinha predominando em nossa cinematografia desde os anos 60, começando no Assalto ao Trem Pagador até Pixote a Lei do Mais Fraco, Lúcio Flávio o Passageiro da Agonia e 400 Contra Um, passando por outros filmes baba-bandido mais esquecíveis. Cidade de Deus começa com uma referência a esta época, os inocentes anos 60 quando a favela foi criada, mostrando bandidos robinhoodianos que assaltam um caminhão de gás e distribuem o produto do roubo aos moradores. Mas nos anos setenta, com o advento do tráfico de drogas e do crime organizado, os bandidos nada mais têm de bonzinhos. Aterrorizam os moradores, saqueiam modestos estabelecimentos comerciais da favela e se matam mutuamente na disputa por bocas de fumos.

A inocência, se um dia existiu, foi perdida. Mas se os bandidos não mais são mostrados como heróis, persiste uma glamourização em torno da bandidagem. Os marginais são audazes e suas ações são espetaculares, enquanto os policiais são sempre paspalhos e incompetentes - e neste aspecto Cidade de Deus marca um ponto equidistante entre Lúcio Flávio e Tropa de Elite. Na verdade, os marginais do filme ainda são mostrados como heróis - porém, não no sentido atual do termo, de indivíduo destemido e abnegado, mas no sentido original da palavra surgida na Grécia antiga, denotando indivíduo de força e coragem sobre-humanas, que triunfa sobre seus inimigos gloriosamente.

Como se sabe, a ideia fixa de apresentar o marginal como um herói revolucionário surgiu da militância intelectual de esquerda, que tem sido proeminente em nossa cinematografia deste os tempos do Cinema Novo de Glauber Rocha, que foi pioneiro ao reciclar a figura do cangaceiro como um justiceiro social. Na realidade, essa tendência está ligada à evolução dos acontecimentos entre os anos 60 e 70, com a derrota da guerrilha revolucionária, a qual não teve o apoio dos trabalhadores, e reflete um esforço de substituição simbólica da figura do trabalhador pela figura do marginal, o lumpen-proletariado segundo Marx, como o público revolucionário por excelência, segundo o entendimento dos intelectuais militantes. Não deu certo, e o sucesso de Tropa de Elite vem encerrar este capítulo. O povo das periferias não se identifica com os marginais, mas com o capitão Nascimento, para desgosto dos cineastas.

A admiração dos intelectuais de esquerda pelos marginais das favelas deixa entrever um sentimento de frustração pelo malogro da luta armada. Afinal, ao contrário dos guerrilheiros, essas quadrilhas bem armadas conseguiram efetivamente desafiar as forças da segurança. O problema é que esses quadrilheiros nada têm de revolucionários sociais, como sonhavam Glauber Rocha e outros. Ao contrário, a organização de seus negócios insere-se em um arcabouço de todo capitalista, inclusive imitando suas hierarquias e funções: as bocas têm um "proprietário", um "gerente" e uma multidão de "assalariados", de vigias a "soldados". Marx já no século 19 não hesitava em apontar os lumpens como imprestáveis como revolucionários - eles podem ser aguerridos, mas em razão de seu caráter venal, são facilmente cooptados pela burguesia dominante. E de fato, através da História, os burgueses sempre têm comprado os lumpens por poucos tostões, inclusive para jogá-los contra os trabalhadores.

Então, Cidade de Deus fica como um longínquo divisor de águas entre os tempos do banditismo romântico e a época atual que prega o endurecimento das penas. Também contribuiu para reforçar o senso comum estrangeiro de que a favela é o habitat padrão do brasileiro. Não é de hoje que existe um esforço dos produtores culturais do país para apresentar a favela como ícone nacional - acredito que em mais nenhum lugar do mundo chefes de estado estrangeiros são levados para visitar favelas. Resta saber se esse esforço redunda em algum benefício para a imagem e a autoestima dos habitantes locais. Segundo o wikipedia, o filme favoreceu uma onda de preconceito e discriminação contra os moradores da Cidade de Deus.