segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Morre Fidel: a História o absolverá?

Uns dizem que ele já estava morto e não sabia. Outros dizem que ele é imortal. O fato é que desde já algum tempo, afastado da presidência por motivos de saúde, Fidel já não comandava os destinos do país que chefiou por 47 anos. É o de menos: Fidel pertence àquela categoria de homens públicos cuja relevância do que representava para os outros tornou irrelevante aquilo que ele efetivamente era. Fidel foi um ídolo, não um homem de carne e osso, tal como um John Lennon, que como pessoa era péssimo em todos os sentidos, mau marido, mau pai, grosso e mal educado, mas isso obviamente não importa.

Para a esquerda, foi quase um deus. O David que venceu o Golias Americano. O gênio que transformou um país miserável e devastado pela exploração e pela injustiça em um exemplo de equidade, com trabalho, comida e saúde para todos, capaz até para exportar médicos. Para a direita, foi quase um demônio. O tirano que colocou em fuga quase um terço da população de seu país, reduziu os restantes à pobreza e governou sem convocar eleições por quase meio século. Para os jornalistas mexeriqueiros, foi um indivíduo enigmático, mulherengo, com uma vida privada cheia de episódios obscuros. Devemos deixar que apenas estes últimos se encarreguem de decifrar o "verdadeiro" Fidel?

Mas um ídolo não se prende à pessoa física nem ao local geográfico. Mesmo sem nunca haver comandado guerrilha no Brasil, Fidel governou o imaginário de boa parte da juventude brasileira, muitos dos quais, hoje grisalhos, ainda o admiram. Não que ainda tenham a pretensão de imitar o exemplo cubano, mas Fidel foi uma lembrança terna que embalou os devaneios de toda uma geração, e foi uma compensação para as sucessivas derrotas experimentadas desde 1964. Mas se a morte, que chega para todos, heróis ou covardes, grandes ou medíocres, nada mais é, como se diz, um encontro entre o deve e o haver, cumpre aproveitar esse momento para ao menos tentar fazer um julgamento histórico de Fidel Castro.

Se muitos não o chamam de tirano, ao menos todos concordam que foi um ditador, mas é preciso reconhecer que é um enorme erro de avaliação coloca-lo no mesmo patamar que os tiranos comunistas genocidas da estirpe de um Stálin ou um Mao Tsé-Tung. Fidel modestamente fuzilou uns tantos, aqueles mataram milhões, a maioria de fome, como consequência de desastrosas política agrícolas impostas sob a égide de um poder absoluto. Não, Fidel não foi um monstro. Mas garimpando os talentos que ele efetivamente possuía, e que não são um exagero de seus admiradores, cita-se que Fidel era capaz de discursar de improviso por cinco horas seguidas. Imenso carisma. Mas fora o carisma não sobra quase nada além de um talentoso criador de ilusões. Com a queda da ex-URSS e o fim da mesada que sustentava a economia cubana, o mundo pôde perceber o imenso engodo que era a Cuba imaginada pelos revolucionários sonhadores.

O mito da Cuba que erradicou a miséria e o analfabetismo, que tem excelente saúde pública e índice de mortalidade infantil inferior ao dos EUA, coisa que muita gente acredita ainda hoje, mesmo os que não são admiradores de Fidel, foi uma mistura de wishful thinking com paciente manipulação de informações. Na verdade, o mito foi construído em duas mãos: a primeira, exagerando as realizações da revolução; a segunda, exagerando as carências da Cuba pré-castrista.

A Cuba de 1958 não era um inferno sobre a terra, o país possuía indicadores acima da média da América Latina. O índice de alfabetização naquele ano era de 80%, superior ao que tínhamos no Brasil na mesma época. Passar de 80% para 100% em 40 anos não me parece uma façanha extraordinária. A educação em Cuba, na época, era a terceira da América Latina, só inferior à da Argentina e do Uruguai. Mesma posição que ocupa hoje.

Da excelência da saúde pública cubana, o que há de verdade é um número enorme de médicos por habitante, mais que o dobro do índice da Dinamarca e muito superior ao considerado ideal pela Organização Mundial de Saúde. Mas os remédios que eles receitam nunca estão nas prateleiras. E esses médicos, na realidade, se destinam à exportação, a fim de angariar fundos para o regime. Quanto ao baixíssimo índice de mortalidade infantil de Cuba, inferior até ao dos EUA, é uma realidade, mas raramente se fala do altíssimo índice de abortos em Cuba, um dos maiores do mundo. A coisa funciona da seguinte maneira: se um nascimento apresenta alguma possibilidade de ter problemas, o feto é abortado. Assim se constrói a estatística reconhecida pelas organizações internacionais e apresentada como propaganda do regime.

Se a figura mítica do ídolo Fidel não vai morrer tão cedo, a Cuba sonhada pelos revolucionários românticos já morreu faz tempo. Sob a chefia de líderes menos carismáticos e mais pragmáticos, por mera questão de sobrevivência vai aderindo ao capitalismo seguindo o modelo chinês: toda liberdade ao capital, nenhuma ao indivíduo. Quando ele próprio ainda era um revolucionário sonhador, Fidel disse a seus julgadores: a História me absolverá. Não sei se a História absolverá Fidel, mas espero ao menos que, gradualmente livre das opiniões passionais de admiradores e detratores, a História por fim reduza Fidel a sua correta dimensão.

domingo, 6 de novembro de 2016

Visconde do Uruguai, fundador de nossa diplomacia

A Revista de História da Biblioteca Nacional, que recentemente voltou a sair nas bancas (embora a intervalos irregulares) prestou mais um bom serviço à difusão do conhecimento histórico, com um bem escrito artigo de Miguel Gustavo de Paiva Torres resgatando a figura de Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai.

Que o Brasil trata mal seus vultos históricos, é bem sabido. Quando não os relega ao esquecimento, deturpa sua memória, apresentando-os como vilões e envolvendo-os em anedotas e teorias conspiratórias. Mas há outro tipo de deturpação: a interpretação errada ou incompleta quanto ao papel histórico efetivamente desempenhado pela figura. É o caso do Visconde do Uruguai, cuja atuação política durante a regência e o início do segundo reinado é razoavelmente conhecida, mas é frequentemente esquecida sua atuação na política externa, pela qual merece ser considerado o real fundador de nossa diplomacia.

Nada de desmerecer o Barão do Rio Branco, considerado com justiça nosso maior diplomata. Mas se José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco, integrou um corpo diplomático já profissionalizado, deve isto a Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai. Como observa Miguel Gustavo:

...seu legado imprimiu à política externa a noção de razão de estado, sobrepondo o coletivo aos interesses particulares, consolidando os fundamentos do interesse nacional e profissionalizando o ofício diplomático (...) a diplomacia se resumia a uma pequena rede de pessoas chefiadas por plenipotenciários nomeados pelo imperador, de acordo com as necessidades das circunstâncias externas.


Em sua primeira gestão à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi essencial para reconhecer a independência do Paraguai, contrariando as pretensões expansionistas do general argentino Juan Manuel Rosas. Suas gestões também contribuíram para frear as ambições deste caudilho quanto ao Uruguai, em reconhecimento do que recebeu o título pelo qual é conhecido. Tendo garantido a estabilidade e a livre navegação no Rio da Prata, em sua segunda gestão no Ministério dos Negócios Estrangeiros tratou de fechar o rio Amazonas à navegação internacional, pois estava ciente das pretensões norte-americanas de incorporar aquela região à economia sulista algodoeira e escravocrata. Garantida a integridade das fronteiras externas, em sua gestão como Ministro da Justiça lutou para manter a integridade do território nacional, ameaçada por movimentos separatistas. O visconde defendia o centralismo monárquico e não acreditava na viabilidade aqui do modelo federalista norte-americano, pois bem sabia que seu único efeito seria substituir a autoridade da corte pelo mandonismo de miríades de chefes regionais, os famigerados coronéis do sertão, o que viria efetivamente a ocorrer após a proclamação da república. E realizou o primeiro concurso público para ingresso na diplomacia.

Tendo caído progressivamente no esquecimento, o ministro, senador e conselheiro do império faleceu pobre e recluso em 1866. Não havia mordomias nem pensões para políticos naquele tempo, mas o patriotismo era genuíno.

Esperemos que a Revista de História da Biblioteca Nacional permaneça ativa e continue resgatando momentos e indivíduos esquecidos de nossa História.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Trump, Crivella e a globalização

Os candidatos já foram de um melhor nível, tanto por aqui como nos EUA, sem dúvida. Um prócer da duvidosa Igreja Universal do Reinado de Deus, do bispo Macedo, acaba de ser eleito prefeito da segunda cidade do país. Nos EUA destaca-se o bufão Donald Trump. Podemos lamentar o fenômeno, mas o melhor mesmo é buscar uma explicação racional. Uma que me pareceu instigante eu li nesse artigo do Jornal GGN, que credita a popularidade de Trump a uma rejeição à globalização.

Várias podem ser as explicações, mas há grande consenso de que essa candidatura é a catarse de um ressentimento de boa parte da população americana, grandes fatias da classe média das fábricas e dos escritórios revoltados com os  maus resultados distributivos da globalização financeira e da globalização comercial e industrial

 Quando leio essa palavra já fico com um pé atrás. Globalização, assim como o famigerado Neoliberalismo, é um daqueles conceitos que de tão vilipendiados foram esvaziados de seu sentido original e convertidos em um espantalho, ou judas de sábado de aleluia, culpados de tudo o que há de ruim no mundo. Suponhamos que a ascenção de Trump tem mesmo a ver com uma rejeição à globalização. Mas a globalização pode ser revertida?

Em um contexto restrito no tempo e no espaço, sem dúvida que sim! Medidas protecionistas podem ser tomadas para defender a indústria local. E tivemos o recente episódio do Brexit, com a saída da Inglaterra da CE. Mas globalização também é um conceito vago. Ninguém sabe quando começou, nem aonde irá terminar. E principalmente, não se trata de invenção de um grupo de pessoas que um dia se reuniram em um gabinete para planejar um novo sistema econômico. A globalização é a consequência não planejada do encolhimento das distâncias, que por sua vez decorre do aumento das populações e dos progressos tecnológicos nos meios de transporte e nas comunicações. Aquilo que não foi iniciado por decisão de alguém, tampouco pode ser parado por decisão de alguém. Assim, se os eleitores de Trump esperam que ele ponha fim à globalização, em grande medida ficarão desapontados. Se eleito, Trump não poderá agir como o bufão dos palanques, sob pena de causar um desastre que não será apenas nacional, mas planetário, considerada a importância dos EUA no mundo.

Já o caso do bispo Crivella é mais simples de explicar. Não precisamos lançar mão daqueles vagos conceitos-espantalho como a tal da globalização. Trata-se meramente da reação do povo contra o vilipêndio de seus valores tradicionais, que tem sido constante no zeitgast recente. De fato, é emblemático que a disputa final tenha ocorrido contra Marcelo Freixo do PSol, que representa em tom máximo a ideologia do politicamente correto, também conhecida como marxismo cultural, que predominou no país desde a década passada, e que agora se encontra em refluxo. Acossado pela violência e pela imoralidade, vendo seus valores tradicionais sistematicamente solapados, o povo corre para a religião. É claro que nessa corrida sobressaem-se como os principais guias aqueles pastores que falam uma linguagem mais acessível às massas e dizem o que todos querem ouvir. Assim como Trump, Crivella não poderá por integralmente em prática a pregação dos palanques, mas se tentar, pelo menos o desastre não será nem planetário ne nacional, mas afetará apenas uma cidade que de tantos desastres, parece já ter se tornado imune a eles.