quarta-feira, 28 de junho de 2017

Saudades de Médici

Nesse momento de grande desalento com a política, um fenômeno cada vez mais chama a minha atenção: o revisionismo em relação ao regime de 1964. E não são apenas os radicais de direita que têm levantado essa bandeira: também os esquerdistas têm resgatado supostas virtudes dos militares, como seu nacionalismo e seu projeto de construção de um país soberano. "Os militares odiavam os comunistas e amavam o país", escreveu certo comentarista. Esta postura particularmente me surpreende, pois sempre foi discurso padrão das esquerdas apontar os militares como entreguistas e subservientes às potências estrangeiras. Mas não é de hoje que as semelhanças entre o projeto nacional-estatista dos militares e o nacionalismo varguista têm sido apontadas - estas ficaram evidentes desde a época de Geisel, muito embora apontar isso fosse uma heresia e quem o fizesse arriscava-se a ser taxado de louco.

Sabemos que o saudosismo e a idealização dos tempos antigos é um sintoma comum do desencanto com a situação do presente, mas isso se torna perigoso quando radicais arrivistas podem se aproveitar da situação para chegar ao poder na esteira dessas fantasias. Temos muitos casos ao redor, com desastrosas consequências. O melhor remédio contra isso é separar a realidade do mito: o que foi, afinal, o período em que os militares estiveram no comando na nação? Em primeiro lugar é forçoso reconhecer que a ação dos militares não se limitava à repressão e ao combate à subversão: eles tinham efetivamente um projeto de país de longo prazo, e esse projeto se enquadrava nos moldes do nacional-estatismo lançado nos anos trinta. Iniciado por Vargas e continuado por Kubitchek, foram de fato os militares que levaram este modelo ao apogeu nos anos setenta e ao esgotamento nos anos oitenta, quando não por coincidência também se esgotou o regime de 1964.

Sob o enfoque econômico, portanto, não é difícil conceituar o que foi o regime militar brasileiro. Bem mais complicado é conceituá-lo do ponto de vista político. Eles se diziam democratas, mas pela forma como agiam evidentemente não eram democratas. Mas tampouco eram fascistas. Não havia culto à personalidade, nem organizações de massa, nem partido único, nem rituais exotéricos, nem desfiles embandeirados; os generais-presidentes alternavam-se monotonamente no poder sob um formato republicano fake; os atos discricionários eram catalogados com pudor bacharelesco: houve mais de vinte atos institucionais, embora os mais lembrados sejam o AI-1, o AI-2 e obviamente o AI-5. O regime se eternizava mas não se estabelecia, era mais como um estado-de-sítio prolongado, sem data para terminar mas sempre permeado por discursos que afirmavam ser a situação transitória, que o verdadeiro objetivo do regime era a democracia e que esta logo seria restabelecida. De minha parte, eu achava graça nas aulas de OSPB e Moral e Cívica, onde era enaltecida a democracia, a constituição e tudo o mais que era o exato oposto daquilo que o governo praticava.

Chama a atenção o pudor dos próceres do regime em se assumirem como ditadores. Eles queriam a ditadura, sem dúvida, mas tinham consciência de que ela era moralmente injustificável. É necessário um trabalho de psicólogo para desvendar esse paradoxo. A meu ver ele pode ser explicado pela formação positivista que marcou profundamente os militares brasileiros desde os fins do século 19, com sua descrença pela política parlamentar e sua convicção de que o bom governo deveria ser forte e racional - a "ditadura científica" propugnada pelos teóricos de Comte que os militares de 1964, consciente ou inconscientemente, não importa, tentaram realizar na prática pela instituição de um governo totalitário e tecnocrático. Foi a era dos "superministros", como Delfim e Simonsen, cuja liderança ultrapassava em muito o escopo original de suas pastas, preenchendo o vácuo deixado pela classe política que se retirou de cena. Certo ou errado, os militares acreditavam que esse modelo podia levar o país ao desenvolvimento, e uma vez alcançado esse objetivo, poderiam retornar à democracia e tirar o peso da consciência. Não notavam que esta lógica era autocontraditória: se a ditadura levava efetivamente o país ao desenvolvimento, então a ditadura era uma coisa boa e por que acabar com ela? Se a ditadura não conduzia o país ao desenvolvimento, então o objetivo não seria alcançado e de qualquer modo a ditadura ia durar indefinidamente.

Preso em suas contradições, o modelo esgotou-se nos anos oitenta, e os militares retiraram-se do poder sem deixar herdeiros políticos. Decorridos trinta anos, é tempo suficiente para que a memória seletiva filtre as coisas ruins do passado e a época possa ser idealizada pelas novas gerações descrentes do presente. Novos líderes, que não participaram efetivamente do regime, proclamam-se seus herdeiros. Algumas coisas boas existiram de fato. Havia muito mais otimismo para com o futuro, a economia crescia a altas taxas e havia mais empregos. Havia também menos crime nas ruas. Todos esses aspectos, entretanto, só podem ser entendidos plenamente se vistos sob uma perspectiva histórica, e não apenas à luz da época. Havia mais crescimento econômico e mais empregos, efetivamente. Mas tal como no tempo de Vargas e JK, o modelo econômico era baseado na hipoteca do futuro, ou como se diz, em vender o jantar para comprar o almoço. Isto era feito pelo endividamento externo, ou pelo endividamento interno via emissão de moeda. Ambos geram uma conta a ser paga pelas gerações futuras. E o futuro chegou.

Os impressionantes índices de crescimento econômico escondiam um desastre financeiro, que ficou evidente na chegada dos anos oitenta. Produzindo inflação, o governo cobria seus gastos mediante o confisco do poder aquisitivo dos cidadãos, como se fosse um imposto invisível que não precisava de aprovação do parlamento. Desde Vargas, passando por JK até Médici, foi desta maneira realizado um crescimento com pouca inserção social, já que os ganhos obtidos pelos trabalhadores com a abundância de empregos eram logo anulados pelo surto inflacionário que vinha em seguida. O país se tornou um dos mais desiguais do planeta, posição que mantem até hoje.

Outros saudosistas lembram que no tempo dos militares havia muito menos crime do que hoje. É verdade. Mas também é verdade que o crime vinha em ascenção no período, algo que não foi de todo notado porque as atenções estavam voltadas para a arena política. A segurança pública não era considerada questão de segurança nacional, e foi deixada a cargo das polícias militares estaduais. É certo que as polícias militares foram formalmente colocadas sob a supervisão do exército, mas esse arranjo tinha em mente utilizar as polícias militares como força de apoio no combate à guerrilha, e não utilizar o exército como força de apoio no combate ao crime comum. A segurança pública foi negligenciada e praticada com aquele misto de truculência e incompetência característico dos regimes autoritários, e deu no que deu.

Outro aspecto lembrado do período foi que havia menos corrupção, um dado embaraçoso para os que acham que apenas as ditaduras são corruptas. Mas a explicação é prosaica: não havia campanhas eleitorais custosas na época. Simples assim.

Pode-se ainda passar um bom tempo discutindo prós e contras da época, mas quanto a mim, tenho uma opinião definitiva: o regime de 1964 não pode ser imitado hoje porque lhe faltou uma identidade tangível que possa ser captada e emulada. Não havia textos escritos, ritos, símbolos, pais fundadores, séquito de devotos, milícias, clubes, mesmo seu partido de sustentação o era apenas pro forma. Foi uma ditadura não assumida, ou como definiu Elio Gaspari, uma ditadura envergonhada, que proclamava seu caráter provisório e prometia sair de cena tão logo cumprisse sua missão de levar o país ao desenvolvimento. Um regime sem rosto que hoje pode ser imaginado como se queira.

Espero que não usemos muita imaginação na próxima eleição.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A História acontecendo: a cracolândia

Um fenômeno raro que eu gosto e assistir quando tenho oportunidade são os fatos se interpondo às teses. Isso é ver a História acontecendo em tempo real.

Semana passada houve uma ação na conhecida cracolândia, reduto de consumidores de crack em São Paulo, por iniciativa do prefeito Dória, considerada truculenta e que motivou numerosas críticas. O médico Dráuzio Varella comentou na Folha de São Paulo:

Todo o mundo tem que se convencer que não é possível acabar com a cracolândia. A cracolândia não é causa de nada, é consequência de uma ordem social que deixa à margem da sociedade uma massa de meninos e meninas nas periferias nas cidades brasileiras, sem qualquer oportunidade. Pararam de estudar com 13, 14 anos e acabam indo por este caminho.


Ou seja, o indivíduo vai se drogar cracolândia porque a sociedade não lhe deu oportunidade. Tivesse tido oportunidade, estaria andando pelas ruas muito limpo e direitinho, indo para o trabalho. Será?

Outros comentaristas, como nesse artigo de Aldo Fornazieri, repetiram chavões como "nazismo", "pogrom" e "elite branca", mais uma vez dando uma leitura de luta de classes à ocorrência. Mas na mesma semana dois acontecimentos bem inusitados vieram desmentir essas assertivas. O primeiro foi o encontro, em plena cracolândia, de ninguém menos que o cidadão Andreas von Richthofen, irmão da notória Suzane von Richthofen. Rapaz rico, inteligente, com doutorado em química, foi preso totalmente drogado, transtornado e maltrapilho em meio aos viciados. Outra notícia dá conta de que um certo Carlos Eduardo Albuquerque Maranhão, ex-aluno do conceituado Colégio Santo Inácio, criado no conceituado bairro do Jardim Botânico no Rio de Janeiro, é habitante da cracolândia. O que demonstra de forma cabal que o vício nada tem a ver com a condição social Ambos tiveram todas as oportunidades cuja falta, afirma Dráuzio Varella, é a causa da existência da cracolândia. São exceções? Sim, são. Mas de modo geral, ser rico no Brasil é uma exceção, seja a amostra colhida na cracolância ou em qualquer outro lugar.

Andreas von Richthofen e Carlos Eduardo se tornaram drogados em razão de graves problema psicológicos, no primeiro, quase que certamente, decorrentes da tragédia familiar, e o segundo de causas não conhecidos, mas amigos afirmaram que ele já se drogava desde os tempos do Santo Inácio. Nada a ver com condição social. Os outros drogados pobres provavelmente tiveram um histórico semelhante, e certamente menos recursos para trata-lo. Carlos Eduardo, aliás, faleceu dias depois de haver sido internado. Estaria vivo se houvesse sido internado à força bem antes desta semana?

De qualquer modo, os críticos viram como um grande fracasso a operação montada pelo prefeito Dória. Argumenta o artigo do já citado Aldo Fornazieri:

Na ação espetaculosa do prefeito contra a Cracolândia foram presos 38 traficantes e apreendidas algumas armas. O que consta é que nenhum desses presos é um grande traficante, um chefe do tráfico em São Paulo. Ou seja, os extraordinários gestores de São Paulo estão enxugando gelo.

Mais uma vez se incorre no erro de achar que o crime é como um organismo vivo em que, se cortando a cabeça, todo o resto vem abaixo. Como se os chefes do tráfico não pudessem ser prontamente substituídos. O crime, contudo, só pode ser combatido pela base, e não pelo topo. Cracolândia por cracolândia, esquina a esquina.