Crise militar já foi coisa séria por aqui, daí que não dá para evitar um ar de dejà vu na trapalhada presente. É sabido que o presidente nutre uma nostalgia por um tempo que ele próprio não viveu - os anos do regime dos generais, quando era apenas um cadete - e teve o apoio de um eleitorado que igualmente, em boa parte, não viveu o regime dos generais, mas o idealizam, sobretudo em razão do desenvolvimento econômico e da menor criminalidade do período.
Já abordei essa época e procurei discernir o que há de verdade e o que há de wishful thinking, mas hoje tive a atenção despertada por um vídeo trazendo um exemplo bem próximo de nós: o lamentável estado das Forças Armadas na Argentina, resultado evidente da perda de confiança daquela nação em suas classes armadas após haverem elas sucessivas vezes exercido o governo, sempre com resultados desastrosos. Da crença no messianismo dos militares, nossos vizinhos já estão livres. Mas nós ainda não.
Examinemos o caso da Argentina. No início do século 20, tinha um regime político republicano estável. Com a economia puxada pela exportação de carne bovina nos recém-inventados navios frigoríficos, tornou-se um dos países mais ricos do mundo, e uma crescente classe média ganhava protagonismo político por intermédio de um partido nascido para representar os setores urbanos e romper o domínio da velha oligarquia, a Unión Cívica Radical, isso em uma época em que todos os demais países sul-americanos eram governados por sua elite rural. Tudo parecia rumar em direção ao mesmo modelo dos demais países ocidentais desenvolvidos. Mas o trajeto foi interrompido por um golpe de estado em 1930, quando assumiu o poder um general-presidente, cujo nome não importa.
Rompida a legalidade constitucional, esta nunca mais se restaurou. Em mais um de tantos golpes, assumiu o poder um certo coronel chamado Juan Domingo Perón, que ao contrário dos demais, possuía um forte carisma. Perón instaurou um regime nacionalista autoritário, calcado do fascismo de Mussolini, e aproveitou-se de uma conjuntura econômica favorável após o fim da segunda guerra, quando o país tinha altos saldos comerciais, para conceder grandes benefícios aos trabalhadores, o que lhe garantiu amplo apoio popular. Escreveu ele certa vez a seu colega presidente do Chile:
"Dê ao povo, principalmente aos trabalhadores, tudo o que for possível. Quando achar que está dando demais, dê mais ainda. Verá os resultados. Como de costume, todos tentarão assustá-lo com o fantasma do colapso da economia. Mas é tudo mentira. Não existe nada mais elástico que a economia, que todos temem porque ninguém entende"
Tampouco ele entendia...
Mas a bonança dos tempos de Perón ficou bem marcada na memória da população, que associou à sua ausência os tempos bicudos que passaram a viver após haver sido gasto o saldo da balança econômica pós-guerra. Isso mais a violência e o personalismo de seu regime produziram uma grande fissão na sociedade argentina, levando alguns setores a trocar o jogo político pela luta armada. A ala esquerda do peronismo criou o grupo guerrilheiro denominado os Montoneros, enquanto a ala direita gerou a Aliança Anticomunista Argentina, capitaneada por López Rega, ministro do Bem-Estar Social. A estes se juntou o Exército Revolucionário do Povo, de inspiração guevarista. Tanta subversão produziria inevitavelmente mais instabilidade e mais intervenções militares, todas mal sucedidas, e à degradação política seguiu-se a degradação econômica: de país rico, a Argentina assumiu um perfil típico de Terceiro Mundo. Após o desastre da Guerra das Malvinas, os argentinos finalmente se convenceram de que a indisciplina de seus militares era a causa histórica de sua decadência.
Por aqui as coisas foram um pouco diferentes. Desde a proclamação da república, os militares assumiram uma posição de mediadores, com o papel de intervir nos impasses. Isso resguardou a reputação dos militares, que foram vistos como uma reserva moral da nação: enquanto eles exercessem este poder moderador, o país estaria livre de desenlaces sangrentos e de guerras civis. Até que em 1964 eles decidiram assumir efetivamente o poder. Também esta fase distinguiu-se do ocorrido na Argentina: os generais-presidentes sucederam-se no poder dentro de uma ordem constitucional aparentemente estável, acompanhada de forte crescimento econômico.
Mas sob uma perspectiva histórica, o período militar não foi uma singularidade, e sim a continuação do modelo desenvolvimentista nacional-estatista iniciado por Vargas nos anos 30 em moldes igualmente totalitários, passando pelo período democrático do segundo governo Vargas, dos governos JK e João Goulart. De fato, os militares levaram este modelo ao auge, nos anos 70, e ao esgotamento nos anos 80. Com a gigantesca crise na "década perdida", a população pôde constatar que os militares não eram governantes superiores aos civis, e desde então não se ouviram mais clamores por uma intervenção militar, até recentemente.
Contudo os "bons tempos" em que os generais impunham ordem e progresso, tal como estava em nossa bandeira, ainda alimentam utopias. Nisso estamos um passo atrás de nossos vizinhos argentinos. Mas pelo menos, não se fazem mais crises militares como antigamente.