quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Presidente bom é presidente chato

Estou com saudades de Michel Temer. Não, não é piada. Se ele foi um dos mais apagados e esquecíveis personagens que já sentaram na cadeira presidencial, e inclusive a legitimidade de seu mandato foi colocada em dúvida pelos que não aceitavam o impedimento de Dilma Rousseff, por outro lado é preciso recordar que naqueles anos a situação financeira do país foi melhorando gradual e continuamente, a ponto de Jair Bolsonaro pegar o país já com uma modesta recuperação econômica. Pouco depois, como se sabe, o dólar disparou e o crescimento travou.
 
Alguém comentou que Temer deveria ter aproveitado o fato de ser um presidente impopular para tomar medidas impopulares, o que ele fez até certo ponto, mas na minha opinião deveria ter feito mais. O problema é que o antigo paternalismo vigente por aqui nas relações entre governantes e governados faz com que as pessoas acreditem que os sucessos e os fracassos de um presidente dependem de sua boa ou má vontade. Lula pegou uma conjuntura econômica favorável e vendeu a ideia de que os bons resultados eram obra de sua gestão, mas dificilmente poderá repetir a mágica se eleito agora. Como Dilma igualmente não pôde. Vendo o saco de bondades do PT esvaziado, o povo voltou suas esperanças para "o mito", sempre a procura de um salvador da pátria.
 
Michel Temer me lembra Itamar Franco, outro presidente sem carisma que assumiu após o impedimento do titular cheio de carisma. Sua melhor ideia foi reativar a produção do fusca. Mas foi também no seu período que se iniciou o primeiro planejamento econômico sério desde muitas décadas após a pior crise econômica do país. Fernando Henrique começou a gestar o Plano Real ainda como ministro de Itamar, depois tornou-se o presidente, e sua figura está indelevelmente ligada ao plano que pôs fim à hiperinflação que arruinava o país, ao passo que Itamar é mais lembrado por haver tirado aquela foto junto à modelo sem calcinha. Não sei quando a importância de Itamar será devidamente reconhecida, mas parece-me que assim como de tanto em tanto surgem umas figuras exóticas que ocupam a presidência com estardalhaço para desaparecer em seguida, também de tanto em tanto surgem umas figuras apagadas para colocar a casa em ordem.
 
Lembro-me daquele ditado dos frequentadores de estádios: o bom juiz de futebol é aquele que após o jogo você não sabe o nome. Porque se você sabe o nome, alguma coisa errada ele fez. Do mesmo odo, os presidentes mais falados são aqueles que mais desastres causaram ao país. Eu não sei o nome do síndico do prédio onde moro. Mas infelizmente sempre sei o nome do presidente do país.
 
Michel Temer para presidente!

domingo, 28 de novembro de 2021

Que Vença o Menos Odiado

Tendo sido o país incapaz de estabelecer um regime bipartidarista onde duas correntes de orientação bem conhecida se alternassem no poder sem traumas nem percalços, a exemplo das nações desenvolvidas politicamente estáveis como os EUA e a Inglaterra, a próxima eleição será disputada por candidatos personalistas, raivosos e com propostas radicalmente distintas. Nenhum deles possui maioria simples do eleitorado, mas em comum todos têm um altíssimo índice de rejeição - de onde se deduz que o próximo presidente não será escolhido entre os mais amados, mas entre os menos odiados, e seja quem for, governará tendo à frente uma oposição feroz.

Destes, o novo personagem é o ex-juiz Sérgio Moro. Não vou entrar aqui em tecnicidades quanto a sua atuação como juiz na prisão de Lula, mesmo porque não tenho conhecimento do assunto, mas me parece evidente que Moro estaria bem melhor se continuasse juiz. Sua atuação como ministro foi pífia, e sua saída do cargo foi inglória. Com certeza Sérgio Moro não conseguiu até agora ser um político competente, o que não causa estranheza, pois a atividade do político é o oposto da função do juiz. Na política, só se obtém resultado mediante negociação, e a institucionalidade é uma massa fresca sendo moldada. Já o juiz não negocia, impõe a sentença de forma unilateral, consoante uma institucionalidade rígida e imutável. Deduzo que se Moro for presidente e insistir em conduzir-se como juiz, ou ele será um ditador, o que é improvável, ou sua atuação será tão inócua quanto foi como ministro do governo atual.

De Bolsonaro e Lula, não há muito a dizer que já não tenha sido dito. A esperança que tenho é que, na impossibilidade de termos candidatos moderados, os personagens atuais acabem se moderando por puro desgaste. Bolsonaro já está bastante desgastado, não conseguiu impor-se para além de bravatas, e se ganhar um novo mandato, só obterá êxito se rever muitas de suas posturas atuais. Lula saiu da prisão com aura de vingador, mas todos sabem que já é um personagem gasto. Ainda é capaz de bravatas, como quando justificou que o líder nicaraguense Daniel Ortega possa permanecer indefinidamente no poder. Mas ele próprio por certo não ficará indefinidamente no poder, ainda mais considerando-se sua idade, e um novo governo Lula está mais para uma pálida cópia de seu notável mandato da primeira década, quando contou com uma conjuntura política e econômica muito mais favorável.

Assim, acredito que um Lula renascido em 2022 será uma versão desidratada do Lula que conhecemos. Ele poderá até permitir-se mais alguns arroubos, como dar apoio ostensivo aos velhos aliados da Venezuela e Cuba, mas ao fazê-lo estará apenas manifestando o caráter do "brasileiro cordial", por ele tão bem incorporado, para quem o que importa são os "companheiros", não importa quão questionáveis eles sejam (lembram-se de Cesare Battisti?) Mas não terá força para fazer mais do que isso, e o provável é que se valha de sua habilidade política para levar o mandato até o fim e preservar seu histórico. O Lula atual já pertence mais ao passado do que ao presente. Desperta paixões, muitos o endeusam e outros o abominam. Quanto a mim, creio que ainda se passará um tempo antes que sua figura seja vista com mais imparcialidade, e sua importância histórica seja reconhecida na dimensão correta: diferente de Bolsonaro, que se inclui mais no rol das singularidades destinadas ao esquecimento, Lula merece ser lembrado no futuro porque soube incorporar como nenhum outro de seus contemporâneos as poucas qualidades e os muitos defeitos dos brasileiros de sua geração.

domingo, 31 de outubro de 2021

Extrema Direita X Extrema Esquerda

Pelo senso comum, a próxima eleição presidencial no país será disputada entre a extrema direita e a extrema esquerda, mais exatamente entre Bolsonaro e Lula, com todas as consequências que a polarização politica pode surtir. Mas direita e esquerda são termos gastos de tanto uso. Convém averiguar o quanto ainda se aplicam ao quadro político que se desenha com as próximas eleições.

Jair Bolsonaro com certeza é direita. Fica a gosto do freguês afirmar se ele é extrema direita ou apenas direita. Entretanto, ele não saiu de um partido formalmente direitista, nem é versado em ideologias. Seu direitismo reduz-se à admiração pelo regime militar de 1964, do qual não participou em razão da pouca idade. O eleitorado de direita aglutinou-se em torno dele simplesmente porque não havia mais ninguém que se assumisse direitista no país, desde a morte de Enéas Carneiro. E a ironia é que quem matou a direita no Brasil, foi justamente o regime militar que Bolsonaro admira.

Historicamente, a direita nacional era representada pela UDN, onde pontificavam líderes como Carlos Lacerda. Mas ao tomar o poder em 1964, a segunda coisa que os militares fizeram, depois de liquidar a esquerda comunista e trabalhista, foi liquidar a UDN, justamente para evitar que esse partido chegasse ao poder. Os principais líderes, como Carlos Lacerda, foram cassados, e os demais atirados à vala comum da ARENA, partido sem ideologia e sem força. Evidente que eliminar a direita não era o objetivo declarado do grupo que tomou o poder - eles queriam eliminar alternativas civis à presidência, independente da cor ideológica. Seu projeto era um Estado com plenos poderes, garantido pelos militares e gerido pelos tecnocratas, superministros cuja influência ia muito além do escopo de suas pastas, dos quais os mais notáveis representantes foram Delfim Neto e Mário Simonsen. Nada tão original, também era assim o getulismo da época do Estado Novo, por sua vez gestado no positivismo do século 19, que propugnava uma "ditadura republicana, racional e científica" conduzida por critérios puramente técnicos em lugar dos interesses regionais, corporativos ou meramente pessoais dos políticos profissionais.

Mas os políticos não foram banidos de todo. Diferente das ditaduras pré-segunda guerra, a polarização ideológica da guerra fria proclamava-se uma luta do "mundo livre" contra o totalitarismo comunista. Então o regime inaugurado em 1964 tinha que exibir uma fachada democrática, com corpos legislativos supostamente atuantes e ao menos um partido de oposição admitido. Para criar esse simulacro, toda a legislação eleitoral foi alterada para privilegiar rincões políticos do interior em detrimento dos grandes centros. As consequências dessa repaginação de nossa classe política se manifestaram muito além do fim do regime militar. Por este motivo a direita brasileira não se recompôs após a supressão de suas lideranças em 1964 - nunca mais surgiram líderes intelectualmente valorosos e administradores competentes como Carlos Lacerda, o que surgiu em seu lugar foram políticos provincianos e medíocres. Estou convicto de que em 1964, José Sarney não imaginava que um dia seria o presidente.

Então, no deserto da direita nacional, quem apareceu foi a singularidade de Jair Bolsonaro. Ele nunca foi um líder direitista capaz para além de um pequeno carisma. Sofre tanto da falta de disposição para o jogo político quanto da falta de poder efetivo para implantar a ditadura que almeja, e nem lá nem cá, vai produzindo sucessivos impasses, às vezes apenas por conta de uma teimosia pueril. O tempo passa, a economia trava e as promessas vão ficando no vazio.

Concorrendo com ele, há o Lula renascido da prisão. Cabe agora definir se é de extrema esquerda ou apenas esquerda. Na minha opinião, não é nem de esquerda, e ele concorda. Não o vejo sequer como petista. Lula é, simplesmente... lulista. Seu marketing pessoal sobreviveu a todas as intempéries, e desde suas origens no ABC tem demonstrado uma incrível capacidade de se reinventar. Mesmo que perdesse muitas eleições, sempre esteve em evidência. Com o PT desmoralizado por escândalos, emergiu como líder inquestionável. Não acredito que o PT teria grandes chances na próxima eleição se seu candidato não se chamasse Lula.

Direita ou esquerda, a próxima eleição será disputada entre dois candidatos que se valem de seu carisma. Ainda continuamos carentes de partidos fortes com propostas claras.

domingo, 17 de outubro de 2021

Em Tempos de Polarização

 Recebi recentemente uma correspondência que tem bem a ver com esses tempos de efervescência social e polarização político-ideológica. Refere-se a uma entrevista com o poeta Ferreira Gullar publicada nas páginas amarelas da revista Veja.

Veja:

O senhor já disse que "se bacharelou em subversão" em Moscou e escreveu um poema em que a moça era "quase tão bonita quanto a revolução cubana". Como se deu sua desilusão com a utopia comunista?

Ferreira Gullar:

Não houve nenhum fato determinado. Nenhuma decepção específica. 

Foi uma questão de reflexão, de experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo, mas no contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo fracassou. Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica. A derrocada do socialismo não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso do sistema foi interno. 

Veja:

Por que o capitalismo venceu?

Ferreira Gullar:

O capitalismo do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de justiça se revoltaram contra aquilo. 

O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade. 

A luta dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos, tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produz a riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora.

É bobagem. Sem a empresa não existe riqueza. 

Um depende do outro. 

O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só o explora é radical, sectária, primária. A partir dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. Mas é um equívoco concluir que a derrocada do socialismo seja a prova de que o capitalismo seja inerentemente bom. 

O capitalismo é a expressão do egoísmo, da voracidade humana, da ganância. O ser humano é isso, com raras exceções. 

O capitalismo é forte porque é instintivo. 

O socialismo foi um sonho maravilhoso, uma realidade inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. 

O capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser humano. Por isso ele é invencível. A força que torna o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhares de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro. 

É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo um país não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. 

Não tem cabimento.

Sabemos que o comunismo seduziu mais de uma geração de intelectuais brasileiros, mesmo quando já era uma ideia abandonada em seu local de nascimento, e serve ainda hoje para atiçar o debate político, bem como de espantalho para se acusar os adversários. É oportuno procurar explicar a evolução peculiar dessa ideologia em nosso ambiente. Ferreira Gullar é um personagem bem adequado para essa discussão, pois ele viveu intensamente um período de nossa História, aderiu com fervor à utopia comunista na época em que ela cortejava nossos intelectuais, bem como soube admitir honestamente e compreender os motivos do fracasso daquela utopia.

A idade dourada da utopia comunista no Brasil e em outros países de quadro histórico e social similar foi o produto de um hiato em nosso desenvolvimento comparado com a Europa da revolução industrial. Ali o comunismo nasceu do momento histórico específico: boa parte da força de trabalho alocada no ambiente fabril, onde eram sobre-explorados mas exerciam as mesmas funções, trabalhavam nas mesmas fábricas e residiam nos mesmos bairros operários, então podiam reunir-se, organizar-se em torno de reivindicações comuns e parecia fazer sentido uma tomada do poder pelos trabalhadores - afinal, o mundo tal como eles o viam parecia resumir-se a patrões e trabalhadores, os primeiros em posição de poder e os segundos subjugados, bastando portanto inverter esse jogo para escapar à exploração.

Mas por aqui a industrialização foi lenta, e a utopia comunista entrou trazida em sua maioria por intelectuais, e não por trabalhadores. Quando se estabeleceu, o quadro industrial sombrio da época da revolução industrial já havia desaparecido do mundo desenvolvido, sem nunca haver aparecido de todo aqui. Daí que a utopia, entre nós, tenha vicejado justamente no momento em que fenecia em seu nascedouro, na época da Guerra Fria, quando o comunismo era visto como ditadura e opressão no mundo desenvolvido. Mas aqui, onde o capitalismo não havia trazido a mesma pujança, parecia uma alternativa viável, que qualquer um podia idealizar como quisesse. Foi assim que o comunismo tornou-se "o ópio dos intelectuais", contraposto ao "ópio do povo", como Marx descrevia as religiões.

Marx viu o mundo de seu tempo, marcado pela polarização Trabalhador X Empresário, e criou a sua teoria extrapolando aquele quadro social para o passado, até o início dos tempos (toda a História nada mais seria do que Luta de Classes) e também para o futuro, até o fim dos tempos (a tomada do poder pelos trabalhadores pondo fim à Luta de Classes e ao próprio Estado). Mas aquele quadro social que Marx via era peculiar ao presente do século 19 europeu, e não à História como um todo. Por isso suas predições não se cumpriram. Ferreira Gullar apontou corretamente a falha maior da teoria marxista, a crença de que o empresário seria um parasita que se apropria do trabalho alheio (a mais valia). Assim, pensava Marx, a eliminação desse parasita significaria abundância, pois o trabalhador passaria a usufruir da totalidade do resultado de seu trabalho.

Não foi o que aconteceu. O nível de vida dos trabalhadores encolheu ao invés de aumentar nos países comunistas. Isso porque o operário é apenas um componente solto da máquina, que sozinho de nada vale, e cabe ao empresário montar a máquina, alocando os operários e dando-lhes uma função. Portanto, o empresário não é uma excrescência, mas exerce uma função essencial de comando e gerência - ele pode até ser eliminado, mas a função que ele exerce não pode ser eliminada, outro alguém terá que exercê-la. Nos países comunistas esta função foi exercida pelos comissários do partido, que tinham uma vida privilegiada tal como os antigos patrões, solapando a utopia de um governo de trabalhadores onde todos teriam igual participação. Como o acesso ao alto comissariado do partido era muito mais restrito do que o acesso à antiga classe empresarial (pois requer apadrinhamento e contatos políticos, enquanto há abundantes relatos de pessoas comuns que se tornaram grandes industriais sob o regime capitalista) redunda que a gestão desses comissários é muito menos eficiente do que a gestão do empresário. Há muito menos estímulo ao trabalho, e portanto muito menos produtividade.

O capitalismo não é justo, mas é compatível com a natureza, que tampouco é justa. O capitalismo não é uma ideologia, mas um método, e foi gestado no dia-a-dia de pessoas comuns, e não nas mesas de filósofos ou militantes. Como pode um sistema cujo objetivo não é a justiça, produzir abundância? Como é que poucos donos dos modos de produção vão querer produzir para muitos? O segredo está no Livre Mercado. Os trabalhadores são a grande maioria dos consumidores, e produzir muitos itens baratos para os pobres sempre rendeu mais do que produzir poucos itens caros para os ricos. Afinal, é a Volkswagen a dona da Rolls-Royce, e não a Rolls-Royce a dona da Volkswagen, e é a Fiat a dona da Ferrari, e não a Ferrari a dona da Fiat. Desde os primórdios da revolução industrial, a maioria dos produtos das fábricas destinava-se ao consumo dos trabalhadores, e não dos ricos - assim, ao mesmo tempo em que eles eram sobre-explorados por seus patrões, o custo de vida baixava para eles. Não é verdade que a pobreza do século 19 fosse pior que a pobreza do século 18 pré-industrial, ela apenas tornou-se mais visível, posto que era uma pobreza urbana, podendo sensibilizar intelectuais como Marx e escritores como Dickens.

Por aqui, nossos modelos de industrialização no passado não deram os resultados esperados porque foi uma industrialização orientada pelo Estado, e não pelo Mercado - importações proibidas e empresas nacionais produzindo para empresas estatais, sem concorrência, formando assim o conhecido conluio entre políticos e empreiteiras. Enfim, para nossos empresários, a fórmula do sucesso não era a boa qualidade nem o bom preço, mas sim o bom relacionamento com os círculos do poder. Diferente do que aconteceu nos novos países industrializados da Ásia, como a Coréia do Sul, que desde o início direcionaram sua produção para a exportação. Por este motivo não se pode alegar que "se o comunismo não deu certo, tampouco o capitalismo deu certo no Brasil". O capitalismo nunca foi tentado em sua plenitude por aqui.

Resta saber se agora vamos superar essa polarização anacrônica em nosso debate político.

domingo, 26 de setembro de 2021

Paulo Freire, o responsável pelo desastre de nossa educação?

Nenhuma personalidade esteve mais na berlinda nos últimos anos do que o educador Paulo Freire, proclamado patrono de nossa educação em 2012. Seus detratores afirmam que levando em conta os desastrosos resultados obtidos pelos estudantes brasileiros em todas as avaliações, Paulo Freire é um adequado ocupante de tal posto. É acusado de ser o maior responsável pelo fracasso de nossa educação. Agora, em seu centenário, tem recebido diversas homenagens. Herói ou vilão?

Vou expressar minha opinião desapaixonada. Não acredito que Paulo Freire seja o responsável por nosso fracasso educacional. E nem poderia ser, por uma razão cabal: ele não é um educador, e sim um filósofo. Vão dizer, mas ele tem um método. Sim, mas o método a ele atribuído destina-se à alfabetização de adultos, não é de uso geral. Sua obra magna, Pedagogia do Oprimido, não cita nenhum educador, mas apenas líderes revolucionários. Não tem nenhuma utilidade prática em pedagogia ou didática. Enfim, Paulo Freire é um personagem arcano, bom para receber títulos honoris causa e citações elogiosas - e nada além disso. Os maus resultados de nossos estudantes têm outras causas, mais prosaicas e diversas, desde a falta de condições de trabalho de nossos professores até o mau estado das escolas.

Mas se não é o responsável pelo fracasso de nossa educação, Paulo Freire é o responsável pela aceitação resignada deste fracasso, em razão do desprestígio da figura do professor e do próprio ato de educar, trazido pelas ideias que disseminou. Ao conferir um significado político ao ato de educar, Paulo Freire vendeu a noção de que a principal finalidade do professor não seria ensinar a matéria, mas "formar cidadãos" - conceito subjetivo que cada um interpreta como quiser. Então, qual é o problema das notas estarem baixas, se a real finalidade da educação não é essa?

Com seu edifício de teorias construído em um mundo onde só há oprimidos e opressores, Paulo Freire deu o papel de opressor ao professor que tenta ensinar, mais precisamente, ao professor que tenta passar conhecimentos ao aluno - atitude condenável de quem vê o aluno como uma conta bancária que recebe depósitos, o que denominou "educação bancária", própria do opressor que tenciona replicar na geração seguinte a mesma sociedade injusta da qual supostamente é beneficiário. Segundo essa abordagem, o aluno não sabe menos que o professor, mas ambos têm saberes diferentes, tampouco existe aluno mau ou aluno bom, apenas pontos de vista distintos.

Desta forma fica impossibilitada qualquer hierarquia de autoridade que permita ao professor impor disciplina e transmitir o que sabe ao aluno que não sabe, bem como invalidado qualquer tipo de avaliação que permita premiar o aluno capaz e esforçado. Foi aberto assim o caminho à nefasta aprovação automática, implementada por Freire, já que reprovar seria um ato de opressão, mas motivada pelo propósito mais pragmático de zerar as estatísticas de reprovação. Até o bom uso do idioma foi demonizado, posto que a norma culta seria uma imposição do opressor, e a maneira de falar do inculto - o oprimido - supostamente é tão boa quanto. Desnecessário frisar que o mau domínio do idioma dificulta o aprendizado de qualquer conteúdo mais complexo.

Somente abandonar as ideias de Paulo Freire não fará a nossa educação sair do buraco. Mas permitirá ao menos enxergar este buraco, e restaurar o papel correto do educador e do educando permitirá ao menos enxergar a direção a seguir. 

domingo, 5 de setembro de 2021

O Sete de Setembro de Jair Bolsonaro

O Sete de Setembro costuma ser um feriado morno, com manifestações esquematizadas, o tradicional desfile. Afinal, a independência do país é um dos raros eventos históricos sobre o qual há unanimidade: alguém aí é contra a independência? Mas o deste ano promete surtir um efeito extra, em razão das manifestações programadas pelo presidente Jair Bolsonaro.

O fenômeno já é conhecido: de tanto em tanto surgem personagens improváveis em nossa História, tipo corpos estranhos ao sistema, que cruzam o céu da política em uma trajetória meteórica, chegam ao ápice e logo depois desaparecem de forma inglória. O primeiro foi Jânio Quadros, fenômeno eleitoral que governou por sete meses e renunciou tentando um golpe que fracassou. O segundo foi Paulo Maluf, que furou a cena da sucessão que deveria ser controlada pelo presidente Figueiredo como era praxe do regime, mas seus colegas de partido preferiram implodir o partido a abrir caminho para o arrivista. O terceiro foi Fernando Collor, que de um partido nanico saltou para a presidência com um rosto jovem e um currículo antigo, e terminou impedido após provocar a pior crise econômica da História. Em comum, todos tinham um caráter de homem-forte independente dos clãs políticos tradicionais, um discurso bombástico e um posicionamento inclinado à direita. E todos foram expelidos como corpos estranhos ao organismo político nacional.

Eis que surge um quarto personagem com precisamente tais características. Fica no ar a pergunta: será que desta vez vai dar certo? O golpe que Bolsonaro arma para o sete de setembro vai triunfar onde falhou o golpe da renúncia de Jânio? Bolsonaro vai ser bem sucedido onde Maluf falhou ao obter o apoio de sua base aliada? Seus planos econômicos vão dar certo onde o confisco da poupança de Collor fracassou?

Pessoalmente não acredito. Todo fenômeno político que se repete termina banalizado, pois o roteiro torna-se por demais conhecido - primeiro acontece como tragédia, e depois se repete como farsa. E já é o quarto re-play. O próprio dia escolhido carrega algo de farsesco: a real data da independência do Brasil não foi o sete de setembro, mas o conhecido "dia do fico", pois desde aquela data o imperador já se encontrava formalmente rompido com o governo metropolitano. O sete de setembro foi escolhido posteriormente para simbolizar a independência, mas a sequência de eventos teria acontecido de qualquer maneira, independente do que Dom Pedro fizesse ou deixasse da fazer naquele dia. A partir daí toda uma mitologia foi erguida em torno da data, a começar pelo suposto grito. Os professores de História não deixam de lembrar que o imperador só parou às margens do Ipiranga porque estava com uma diarreia. Outros dizem que Dom Pedro estava indo a São Paulo só para se encontrar com sua amante, sendo que o imperador nem conhecia dona Domitila na ocasião - veio a conhecê-la nessa viagem por acaso. Querendo a todo custo achincalhar com o país, passam a mensagem de que a independência foi algo tão fortuito que aconteceu graças a uma indisposição intestinal e a uma pulada de cerca.

Com tanta farsa no ar, não dá para levar muito a sério este sete de setembro de Bolsonaro. Vou pagar para ver. Minha aposta é que a diferença entre Bolsonaro e os três aventureiros que o antecederam, será que ao contrário destes, Bolsonaro vai terminar seu mandato. Nada além disso.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Bandeirantes, Heróis e Vilões

 Uma ocorrência menor, mas que chamou-me a atenção recentemente, foi o incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, por parte de ativistas contrários a homenagens a vultos históricos implicados no escravagismo e no extermínio de povos indígenas. Não é um ato isolado: trata-se do eco de um movimento que vem ganhando força em várias partes do mundo, onde se veem estátuas de antigos traficantes de escravos sendo derrubadas.

O ato, classificado por alguns de vandalismo, foi perpetrado por um grupo que tem como divisa "Revolução periférica - a favela vai descer e não vai ser carnaval" conforme faixa colocada em frente ao monumento em chamas. Pessoalmente duvido que algum morador de favela esteja preocupado com Borba Gato, ou mesmo saiba quem é, mas o dístico não me surpreende. Apenas confirma o fenômeno da mutação da militância de esquerda no país desde a década de setenta, época da derrocada da luta armada que não teve o apoio dos trabalhadores, e desde então os militantes vem trocando a porta das fábricas pelas periferias, os operários pelos marginais, desajustados e inconformistas, esperançosos de que os habitantes das favelas vão fazer a revolução que os trabalhadores não quiseram fazer. Só isso já dá um certo ar farsesco ao movimento. Mas achei interessante este vídeo, onde a dona do canal argumenta que o ato não foi mero vandalismo nem uma patética tentativa de apagar a História, mas uma necessária ressignificação da figura do bandeirante, que deve ser apresentado como um escravizador genocida, e não como um herói.

Sem novidade. Os bandeirantes já sofreram antes uma ressignificação, esta no século passado, quando foram transformados em heróis, responsáveis por desbravar e conquistar os territórios que hoje habitamos. É desta época que datam suas estátuas e quadros que ornam os museus. Mas em seu tempo, eles não ganharam nenhuma estátua nem pintura, jamais foram retratados em vida. Mal vistos pelas autoridades, eram considerados fora-da-lei porque invadiam território índio e espanhol, e capturavam índios quando a escravização de indígenas já estava ilegalizada. Isto não impedia que as autoridades recorressem a seus serviços como sertanistas e mercenários na luta contra tribos hostis e quilombolas, mas estavam muito longe de serem considerados heróis. Assim como sua figura passava longe das representações pictóricas por que os conhecemos hoje - alguns comentaristas os descreveram como "bárbaros, que mal falavam o português e se expressavam mais nas línguas dos índios". Nada glamuroso.

Mas o país independente precisava de mitos fundadores, e os bandeirantes prestaram-se a este papel. Agora este mito está sendo desconstruído, e os bandeirantes apresentados como cruéis escravizadores e matadores de índios. Sabe-se também que saqueavam as tropas que levavam as riquezas extraídas do império espanhol - ou seja, bandoleiros. E a menina do vídeo acrescenta: estupradores de mulheres índias. Com certeza faziam essas coisas todas, mas o real impacto histórico de cada uma deve ser corretamente mensurado, e aí começam as mistificações. O vídeo lamentavelmente repete uma lenda que muitos até hoje acreditam: que os brasileiros mestiços de índio e europeu, chamados caboclos ou mamelucos, foram produto de índias estupradas por bandeirantes.

Estupros sem dúvida ocorreram, mas deve ser lembrado que o propósito do estupro não é produzir descendentes, e quando produz, em geral eles não são cuidados. A maioria das tribos praticava o infanticídio (algumas o praticam até hoje) e não permitiam o nascimento de nenhuma criança indesejada. Afirmar que os milhões e milhões de brasileiros caboclos são o produto de um estupro cometido em algum momento do passado, em termos históricos e antropológicos, é táo primário quanto defender a tese de que os franceses atuais são o produto de mulheres gaulesas estupradas por legionários romanos, e que os escoceses surgiram de mulheres bretãs estupradas por vikings. Mas afinal, toda ressignificação traz necessariamente um rastro de lenda, pois ressignificar significa, estritamente, impingir um significado. No caso, um significado do interesse do momento histórico do presente.

E a verdade histórica, onde fica? Sabe-se que a grande massa de caboclos, na verdade foi produto anterior à era dos bandeirantes. Sua gestação ocorreu na época dos primeiros colonos, quando quase não havia mulheres entre os povoadores, e os colonos tinham que casar-se com mulheres indígenas a fim de obter descendentes e alianças com as tribos, o que era indispensável naquela fase inicial da colonização. Não havia nenhum estupro aí, nem podia haver, se quisessem mesmo o apoio das tribos amigas. Mas foi a partir de então que nasceu a lenda do português colono que saía a emprenhar nativas e a largar os filhos por aí. Pode ter contribuído para esta lenda o costume peculiar dos índios, pelo qual os filhos só eram cuidados pelos pais em idade tenra, e depois passavam a ser criados pela tribo inteira, coletivamente.

Assim nasceu o povo brasileiro - certo ou errado, feio ou bonito, é graças ao que os bandeirantes fizeram que existimos hoje. Podemos achar aquilo tudo um crime inominável, e assim o expressaram muitos comentaristas do vídeo. Mas que indivíduos com sobrenomes Costa, Mota, Reis, Vianna acreditem-se porta-vozes de povos originários, me parece um tanto falso, para não dizer hipócrita. Somos todos cúmplices de um genocídio? É certo que ninguém mais ouve falar das etnias indígenas que se defrontaram com os bandeirantes. Como também ninguém mais ouve falar de gauleses, bretões ou vikings, e no entanto ninguém afirma que esses povos foram vítimas de um genocídio. Esses povos perderam sua especificidade, misturaram-se com outros povos e deram origem à população européia atual. O mesmo aconteceu com as antigas tribos do tempo dos bandeirantes.

Incendiar a estátua de Borba Gato tem um significado simbólico, sem dúvida, mas não reescreve a História. Apenas a reinterpreta. A empostação dos bandeirantes como heróis já é coisa ultrapassada, mas a meu ver, mais importante do que ressignificar a História, é conhecê-la com exatidão.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

A Ditadura Perfeita

As notícias relatando protestos de rua em Cuba causaram-me surpresa. Não foi muitos dias atrás, e alguns apressados até comemoraram a próxima queda do regime iniciado por Fidel Castro, mas até agora ninguém sabe dizer exatamente o que aconteceu, nem como terminou. O fantástico, porém, foi aqueles protestos haverem acontecido, pois não é todo dia que se vê uma coisa assim em um regime comunista, e tampouco jamais alguém viu um regime comunista ser derrubado por protestos de rua.

O caso é que há ditadura perfeitas, assim entendido por não ser possível derrubá-las por intermédio de uma revolução. Elas caem por outros motivos. Outro exemplo foi o regime nazista, que a despeito de todas as suas atrocidades, e de toda a sua disposição de prosseguir com uma guerra perdida que causava enorme sacrifícios a sua população, jamais foi derrubado por uma revolução. Extinguiu-se com a derrota da Alemanha na guerra. Bem diferente do que acontecera em 1918, quando a mesma população, saturada dos sacrifícios impostos pela guerra, sacrifícios esses incomparavelmente menores do que aqueles sofridos em 1945, rebelou-se e pôs fim ao regime do Kaiser. Contando que o mesmo fosse acontecer na 2a Guerra, os aliados impuseram massivos bombardeios sobre a população civil alemã. Mas o que aconteceu foi o contrário: cada vez mais dependente do amparo do Estado, a população dedicou cada vez mais apoio ao governo, repetindo aliás o mesmo que havia acontecido quando a Inglaterra foi bombardeada em 1940.

O regime comunista soviético tampouco foi derrubado por uma revolução: desabou sozinho feito prédio condenado quando pedreiros imprudentes tentam fazer uma reforma de emergência. O que há em comum entre todas essas "ditaduras perfeitas"? Respondo eu: a redução do indivíduo a um estado de total dependência do governo. Ensina a História que revoluções bem sucedidas só acontecem quando está presente na sociedade local uma classe de indivíduos que detêm considerável espaço na economia, porém nenhum espaço na política, o que faz surgir uma demanda por poder. Mas para haver meios de se pressionar o governo, essa classe necessita ter a posse de bens materiais, mesmo que apenas sua força de trabalho. Por este motivo os regimes comunistas são ditaduras perfeitas: qual indivíduo consegue rebelar-se contra quem é, ao mesmo tempo, seu empregador, seu locatário, o dono da escola onde seu filho estuda, do hospital onde ele se trata e do jornal que ele lê? Que fazer quando não se é dono sequer de sua força de trabalho, já que é proibido vendê-la a um patrão?

Não acredito que o regime cubano venha a ser derrubado por uma revolução. O que não quer dizer que ele já não esteja sendo corroído há tempos, por força de sua inviabilidade econômica. Penso que a evolução será a mesma do regime comunista chinês: toda a liberdade ao capital, nenhuma ao indivíduo. O regime chinês, aliás, é outra ditadura perfeita. Com a prosperidade permitida por entrepostos altamente conectados com o mundo capitalista, como Hong Kong e Shangai, e a consequente subida do padrão de vida, a população pôde mesmo adquirir hábitos de consumo típicos do ocidente, sem que o regime político fosse alterado, ou sequer abrandado. Uma bem sucedida imitação do ocidente capitalista, a ponto de atualmente quase ninguém mais se lembrar de que a China é uma ditadura. Perfeita.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Lula, corrupto e corruptor

 Agora que Lula volta à cena eleitoral depois do longo ostracismo, fica a impressão de que sua condenação foi injusta, produto de uma perseguição, ou no mínimo desproporcionalmente severa. Lula foi corrupto? Se foi, não parece ter sido grande coisa se comparado a tantos outros bem conhecidos megacorruptos deste país. O maior emblema da pequenez da corrupção de Lula é a imagem dos pedalinhos do sítio de Atibaia. Mas este artigo da Isto É cita uma observação feita por Ciro Gomes. Ele definiu Lula como o maior corruptor da história brasileira.

É a verdadeira medida do papel que Lula teve na História Brasileira, para o bem ou o mal. Sob a chefia de Lula, o PT elevou a corrupção a um paradigma até então inédito. A corrupção sempre existiu, mas em geral era um conluio que beneficiava particulares. Com Lula, o grosso da verba desviada passou a fluir para o caixa do partido. Entende-se: o Brasil sempre teve partidos fracos e políticos fortes, para quem importava mais o carisma pessoal do que a coligação de siglas por vezes bizarra que o sustentava. Ao redor, enxameavam ladrões de vários calibres. Nesse cenário o PT surgiu como o primeiro partido forte, organizado e com militantes rigidamente obedientes a uma hierarquia. Esse partido chegou ao poder, adquiriu uma base aliada na multidão de políticos ávidos para vender seu apoio, e logo tratou de montar uma máquina que garantisse sua futura hegemonia. Para tal, precisou de muitos milhões. O negócio foi montar um complexo unindo o Partido, mais empresas estatais, mais empreiteiras que dependiam desses dois primeiros, tudo funcionando como um conglomerado.

Evidente que em um desvio de verbas que priorize a caixa do Partido, para que a parte que cabe aos operadores do esquema continue a ser atrativa, é necessário que o montante desviado seja muito maior. Assim a corrupção explodiu no país. O PT foi ingênuo ao acreditar que tal quantidade de desvios não seria detectada por uma Polícia Federal que foi sensivelmente melhorada e reequipada por ele mesmo, neste sentido pode-se dizer que o PT deu um tiro no próprio pé. Como também foi ingênuo em acreditar que a nova classe média que vangloriava-se de haver criado ficaria silente diante de tamanho roubo, tal como havia se calado ante roubalheira varejista do passado.

Se como corrupto Lula foi um peixe pequeno, como corruptor foi um gigante. Conclui o citado artigo da Isto É:

Quero dizer com isso que o uso que Lula e seu partido fizeram da Petrobras, para comprar apoio político e estender sabe lá até quando a sua permanência no poder, é muitíssimo mais grave do que qualquer pixuleco que o ex-presidente possa ter embolsado

O Lula corruptor foi muito mais nocivo ao país e à democracia do que o Lula que se deixou corromper.

É preciso que haja uma terceira via. 

A má gestão inerente à administração corrupta causa às empresas um prejuízo muito maior do que a comissão que é desviada do caixa no primeiro momento. Ninguém duvida que a perda que a Petrobrás teve com a aquisição da Refinaria de Pasadena, só para citar um exemplo, foi muito maior do que a propina paga aos diretores que aprovaram a compra de tal refinaria. É assim que a corrupção quebra um país inteiro.

Teremos isso de volta, se Lula retornar à presidência? O Rouba Mas Faz vai continuar a engambelar gerações? Uma coisa que Lula sabe fazer muito bem é se reinventar. É possível que o novo Lula que assumirá em 2023 não seja o mesmo Lula que saiu em 2010, assim como o Lula que assumiu em 2003 não foi o mesmo Lula dos palanques do ABC. Mas o ideal é mesmo que haja uma terceira via.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Um Projeto de Nação

Sentindo o alento que vem da perspectiva do fim da pandemia e da escolha de um novo governo para o ano que vem, é trazida de volta à baila um antigo dístico: o tal de "Projeto de Nação".

Já ouvimos muito essa história anos atrás, mas ela saiu de moda depois que se descobriu que o Estado era mais um peso do que um condutor para a economia. E após tanto tempo de desalento, ela nos causa uma certa saudade, evocando uma época em que ao menos acreditávamos no futuro. Escreveu Luciano Huck em um artigo:

Não há vento bom para uma nau sem rumo. O Brasil precisa de um projeto de nação. Um projeto de arquitetura, engenharia e construção.

A ideia de um Projeto de Nação, levado a cabo por um governo benévolo fiel a um receituário, surgiu no início da Era Vargas, com sua proposta de industrialização e modernização social. Mais industrialização que progresso social, na verdade. Desde então, a ideia foi encampada por governos de variados matizes ideológicos, democráticos ou ditatoriais, mas compartilhando da crença de que cabe ao Estado planificar e conduzir a economia (e por que não, tutelar o social). Embora comandada pela face autoritária de um presidente, a ideia tem atrás de si uma utopia. Somos o país do futuro, não? Ou pelo menos éramos. Quando foi que deixamos de ser? Escreveu o apresentador:

Infelizmente o Brasil hoje não tem a capacidade de liderar qualquer agenda global. Ao longo de todo o século XX, mesmo sendo um país pobre e em desenvolvimento, nós sempre fomos respeitados e reconhecidos pela nossa arte, arquitetura, música, cultura, esporte e agricultura. Na década de 50 fomos capazes de construir uma capital em 5 anos, tivemos a sensibilidade de encomendar uma cidade pelo olhos de gênios como Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Fizemos o primeiro palácio aberto, horizontal, envidraçado, nivelado na altura “do povo”. Longe do estilo rococó que materializava “o poder” ao redor do planeta.

Este Brasil infelizmente sumiu. Foi sufocado por uma visão míope das potencialidades brasileiras e atropelado por quem adora fazer apologia da mediocridade.

A utopia desapareceu. Sempre tivemos uma utopia. Vargas queria ser o Pai dos Pobres. JK tinha a utopia de Brasília. A garotada revolucionária dos anos sessenta tinha a utopia do socialismo. Os militares dos anos setenta tinham a utopia do Brasil Grande. Foram os militares, aliás, os autores do último Projeto de País, levando ao extremo o desenvolvimentismo nacional-estatista, que se esboroou nos anos oitenta, a "década perdida". Desde então o Estado Dirigista tornou-se um vilão, impedindo a economia de crescer com seus gastos excessivos, seus deficit´s e sua corrupção. Não acreditamos mais no poder transformador do Estado, mas parece que tampouco acreditamos em nós mesmos.

Quem fará o próximo Projeto de País? Desde o fim do governo dos militares, a pugna por um Estado Dirigista passou da direita para a esquerda, sendo encampada pelo PT, herdeiro do legado varguista. Em outros tempos Lula definiu a CLT como "o AI-5 dos trabalhadores". Hoje o PT defende-a com unhas e dentes, e no período em que esteve no poder, implementou uma espécie de getulismo tardio, reciclando um modelo desenvolvimentista e mesclando-o com conquistas na área social. Como se sabe, só funcionou enquanto bons ventos da economia mundial sopraram para o nosso lado. Se o PT chegar de novo ao poder nas próximas eleições, como indicam as pesquisas, terá que urdir um novo Projeto de País. Que ideias estão no ar? Voltando ao artigo de Luciano Huck:

É possível construir um futuro, encontrar saídas e retomar a esperança, mas isso só vai acontecer se a sociedade civil responder a um chamamento e se unir em torno do bem comum.

A agenda da sustentabilidade vai se impor. Quer dizer, já está se impondo. Não só porque é a escolha moralmente correta, mas também porque é importante para o sucesso dos negócios (...) O Brasil pós-2022 pode e deve liderar esta agenda verde, da agroindústria sustentável, da preservação, da floresta em pé, da proteção dos nossos povos ancestrais.

Vamos ter de definir nosso propósito e nossa missão. Quando você tem clareza sobre isso como nação, as oportunidades aparecem e o mundo vem até você. Nada virá por geração espontânea.

Parece um tanto piegas, sem dúvida, e tampouco Luciano Huck parece ser a pessoa mais habilitada a tratar desses assuntos. Sustentabilidade ao invés de fábricas. Mais respeito às minorias ao invés de mais direitos trabalhistas. O espírito da época está bem diferente daquele dos anos Vargas. Entretanto, continuo duvidando que pode haver um Projeto de País se não houver uma utopia por trás.

A opção mais lucrativa do presente pode não ser a do futuro.


quarta-feira, 23 de junho de 2021

Brasileiros Vem das Selvas

Causou celeuma a afirmação recente do presidente argentino Alberto Fernández de que “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós os argentinos, chegamos de barcos". Pegou mal, e ele próprio tratou de dar uma explicação, destacando a origem miscigenada dos argentinos. Na verdade ele estava parafraseando um músico argentino chamado Litto Nebbia, que incluiu essa frase em sua canção "Llegamos de Los Barcos". Igualmente parafraseava o autor mexicano Octávio Paz, que escreveu “os mexicanos descendem dos astecas, os peruanos dos incas e os argentinos, dos navios” (Octávio Paz não mencionou os brasileiros).

Nota-se na versão do argentino uma distinção entre os nativos brasileiros e os astecas e incas - segundo é dito, apenas esses últimos seriam "índios", enquanto os brasileiros são "selvagens". Ironicamente, as estatísticas mostram que o Brasil recebeu mais imigrantes europeus do que a própria Argentina, embora a presença destes seja menos notável aqui, por ter havido maior mistura. Entretanto, a identificação do povo brasileiro com a selva não é um preconceito lançado por argentinos. A rejeição de uma imagem eurocêntrica do Brasil é tão antiga quanto a aceitação de uma imagem eurocêntrica da Argentina, inclusive no exterior, onde o Brasil é normalmente identificado com a região amazônica, ao passo que toda a metade inferior do subcontinente sul-americano é referida vagamente como "Argentina", porção que inclui o sul do Brasil. Enfim, não vale a demografia nem as estatísticas da imigração, mas a ideia estabelecida de como cada um "deve ser".

É fato que nós mesmos, brasileiros, temos historicamente procurado difundir um mito fundador do Brasil ligado aos índios, daí advindo um orgulho patético, tal como os argentinos se orgulham de ser descendentes de europeus. Desde a época da Semana de Arte Moderna, intelectuais brasileiros têm se esforçado para resgatar uma suposta autenticidade nacional derivada dos índios, e taxar a herança cultural do colonizador como imitação subserviente. Antes disso já era moda nomes próprios de origem indígena. Antigas famílias brasileiras se orgulham de ter antepassados índios, fato que confere uma autenticidade simbólica ao direito dessas famílias à terra, além de terem os índios a fama de guerreiros valorosos. Mas se encontramos motivo para ter orgulho de sermos descendentes de índios, será que o mundo tem a mesma percepção?

Na concepção do presidente argentino, que apenas ecoa um senso comum mais geral, os índios brasileiros sequer são denominados índios - esta classificação vai apenas para astecas e incas. Os brasileiros, disse, vieram da selva, de onde se conclui que os índios brasileiros seriam tão-somente selvagens, criaturas sem cultura, conforme o entendimento daquilo que é "selvagem". Os antigos patriarcas das famílias quatrocentonas podiam se orgulhar de ter ancestrais índios, mas isso não significava que tolerariam a presença de índios em suas fazendas. Na verdade, mesmo a mais de cem anos atrás, pouquíssimos brasileiros já haviam visto um índio ou sabiam como era um índio, dai ser tão fácil romantizar uma figura meramente imaginada.

Mas na minha opinião, tudo não passa de um grande mal entendido. Essa busca por uma autenticidade nativista parece-me uma revolta pueril contra o antigo colonizador - queremos crer que o país já existia aqui em 1500, quando supostamente foi invadido pelos europeus. Mas o que existia aqui não era um país, e sim uma região geográfica habitada por numerosas tribos que não obedeciam a uma liderança central, nem tinham territórios demarcados por fronteiras. O conceito de estado-nação foi trazido pelo colonizador, e só a partir dele pode-se falar de um país como entidade política, étnica ou cultural. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil é uma criação do colonizador, e não do índio. Não obstante, esse brasileiro que veio da selva está pronto para ser reconhecido internacionalmente, posto que atende às utopias que os europeus têm nutrido sobre nós desde o século 16: a terra onde não há pecado, habitada pelas índias nuas e pelo bom selvagem de Rousseau. Modernamente, a utopia se reciclou na figura do índio ecologicamente consciente, que quer preservar as florestas invadidas pelo homem branco, e assim o planeta será salvo, ficando os brasileiros na selva e os europeus mantendo seus padrões de consumo sem pôr em risco a camada de ozônio.

Os argentinos se orgulham se ser descendentes de europeus. Não sei se os europeus se orgulham de ter os argentinos como descendentes, mas parece-me que decididamente não se orgulham de ter os brasileiros como seus descendentes, ou sequer têm ciência disto.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Escravidão, Racismo e Desigualdade

 Joaquim Nabuco, militante abolicionista, afirmava que por muitos anos a escravidão ainda seria o traço definidor do Brasil. Não falta quem atribua a ela a origem de todos os males nacionais, não sem alguma dose de razão. Recebi recentemente um email de um propagandista do Movimento Negro, endossando essa tese.

"Não se entende o Brasil sem compreender a função do racismo 'racial' entre nós. Não existe preconceito mais importante entre nós, já que ele tem o poder de definir e articular as relações entre todas as classes sociais no nosso país. É este preconceito que comanda a continuidade da escravidão com outros meios. Como esse mecanismo funciona na realidade cotidiana? Minha tese é a de que a escravidão, tanto no seu sentido econômico de exploração do trabalho alheio como no seu sentido moral e político de produção de distinções sociais, se manteve 'na prática' inalterado desde a abolição da escravatura"

"O ex-escravo é afastado do mercado de trabalho competitivo e passa a desempenhar as mesmas funções humilhantes e indignas que exercia antes. Seja tanto as funções de trabalho sujo, pesado e perigoso, para os homens, quanto as funções domésticas do antigo 'escravo doméstico', para as mulheres, as quais reproduzem todas as vicissitudes da antiga relação senhor/escravo. Faz parte do âmago desta relação não só a exploração do trabalho vendido a preço vil, mas também a humilhação cotidiana transformada em prazer sádico para o gozo frequente e para a sensação de superioridade e a 'distinção social' das classes média e alta"

Existe de fato uma analogia óbvia entre o escravo e o trabalhador mal qualificado que está na base da pirâmide social. Mas até que ponto há uma relação causa-efeito entre o primeiro e o segundo? É sabido que a grande maioria dos ex-escravos brasileiros veio a compor o extrato mais baixo de nosso proletariado. Entretanto, uma divisão social semelhante pode ser vista em nossos vizinhos sul-americanos que tiveram no passado muito pouca escravidão, e a aboliram muito antes de nós.

Eu penso, então, que a desigualdade social característica do mundo subdesenvolvido decorre de fatores puramente econômicos e impessoais - a falta de um dinamismo na economia que faz com que pouca riqueza seja produzida à custa de muito trabalho, e por conseguinte, o trabalho tenha pouco valor agregado. Chamar isso de escravidão moderna pode servir como metáfora, mas se levada em seu sentido literal, conduz a uma armadilha psicológica - o cidadão desfavorecido economicamente crê ser um escravo, vítima de manipulação maldosa da parte de uma "classe dominante" abstrata. Nesse contexto, a escravidão do passado atua como um trauma: seja ou não descendente de escravos, o desfavorecido enxerga escravidão aonde quer que olhe. 

Acrescente-se que analisados em seu substrato sócio-econômico, o escravo e o proletário assalariado não são a mesma coisa. Em termos de condições materiais, podem até assemelhar-se, mas o escravo é um bem de raiz de seu proprietário, enquanto que o proletário é parte de um exército de reserva. O escravo compõe o capital de seu dono; pode ser comprado, vendido, alugado e herdado, mesmo que em determinado momento não esteja produzindo nada. O trabalhador assalariado não compõe o capital de seu patrão, que por conseguinte não se dispõe a mantê-lo caso por algum motivo ele não esteja produzindo. O trabalhador deve ser parte de um exército de reserva pronto a colocar-se a serviço de seu patrão quando for necessário, e pronto a ser dispensado quando não for necessário. Por aí entende-se facilmente porque escravidão e capitalismo são sistemas mutuamente incompatíveis e antagônicos: não é possível haver capitalismo se toda ou quase toda a força de trabalho se encontra imobilizada como bem de raiz de alguém. O capitalismo, longe de ser uma versão atualizada da velha escravidão, entrou em rota de colisão contra esta, impondo-lhe a condição: ou deixa de existir, ou será suprimida pela força. A guerra da secessão norte-americana, opondo o norte industrial ao sul escravocrata, foi o mais bem acabado exemplo histórico do conflito entre capitalismo e escravidão.

"É importante notar que, paralelamente à condenação do negro à exclusão, o país passa a implementar a política abertamente racista da importação de imigrantes europeus brancos, na imensa maioria italiano (...) Uma parte considerável destes 'neobrasileiros' ascende rapidamente, alguns inclusive à elite de proprietários e de novos industriais, mas boa parte irá constituir a classe média branca de grandes cidades como São Paulo. Nas outras grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Recife, os portugueses exerceriam o mesmo papel do italiano em São Paulo"

"O imigrante branco, na maioria o italiano ou o português, irá constituir no Brasil, ao mesmo tempo em aliança e a serviço da elite de proprietários, uma espécie de 'bolsão racista e classista' contra os negros e pobres que constituem a maior parte do povo. Para a elite, isso significa a oportunidade de criminalizar e estigmatizar a soberania popular no nascedouro com a cumplicidade das classes médias (...) Muitos imigrantes não conseguiram ascender à classe média verdadeira nem à elite. Boa parte vai constituir uma zona cinza que inclui a classe trabalhadora precária e o que poderíamos chamar de 'baixa classe média'. O cotidiano de muitos destes não difere muito da vida do negro e do pobre brasileiro. Moram eventualmente no mesmo bairro e passam privações materiais. É precisamente nesta faixa social que o preconceito de raça é ainda mais importante. Afinal, a única distinção positiva [reconhecível socialmente] que este pessoal tem na vida é a 'brancura' da cor da pele para exibir contra o negro (...) Enfatizar uma distância social quase inexistente do ponto de vista econômico exige um racismo 'racial' turbinado e levado às últimas consequências"

No Brasil, contudo, a substituição do escravo negro pelo imigrante branco não foi parte de um projeto para implantar o capitalismo, mas ironicamente, de um projeto para dar sobrevida à escravatura, posto que a importação de novos escravos da África fora proibida, e novas frentes agrícolas estavam se abrindo. A implantação do capitalismo no Brasil por parte desses imigrantes e seus descendentes, que se tornaram empresários e trabalhadores, foi um fenômeno marginal e não-planejado, pois o que se esperava originalmente deles é que fossem os novos escravos (e de fato, muitos foram tratados com escravos). Esses imigrantes eram em geral camponeses que viviam uma situação de miséria na Europa da Revolução Industrial, frequentemente enganados por promessas não cumpridas da parte do governo brasileiro e lesados pelas companhias que patrocinavam suas viagens.

A ascensão social deste grupo pode ser explicada porque, ao contrário dos negros ex-escravos, eles já tinham experiência em trabalho fabril e pequenos empreendimentos em seus países de origem, bem como de pequena agricultura. Infelizmente também traziam o racismo de seus países de origem, que em geral eram impérios com colônias onde os nativos eram vistos como uma raça inferior. É irônico constatar que eram mais racistas do que os antigos fazendeiros escravocratas, os quais não viam os brancos pobres como superiores aos negros, mas como equivalentes a esses.

"Este é também precisamente o caso dos brancos americanos, das classes sociais mais ou menos, baixas e médias, que são convencionalmente - e depreciativamente - referidos como 'white trash', e que ajudaram a eleger Trump, o objeto do desejo e de imitação de Bolsonaro. Os brancos do Sul dos EUA, inferiores social e economicamente aos brancos do Norte, são, por conta disso, como uma espécie de 'compensação' da riqueza inexistente, os racistas mais ferozes e ativistas de uma 'Ku Klux Klan' que assassinava e linchava negros indiscriminadamente. Esta parece ser a aspiração do Bolsonarismo e de seus seguidores no Brasil, também"

Sabe-se que no Brasil, Bolsonaro foi eleito embalado por uma nuvem de ressentimento anti-petista. Faz algum sentido, portanto, a comparação da "white trash" norte-americana com a baixa classe média brasileira. Mas o papel que cada uma teve no fenômeno não é o mesmo. Deve ser lembrado que nos EUA, os brancos e a classe média são maioria, enquanto que no Brasil a maioria da população tem raça indefinida, e a classe média é minoritária. Portanto, quem quiser explicar a ascensão de Bolsonaro, deve se ater ao que dele pensam as massas, e não a classe média. A meu ver, este apoio deveu-se ao anseio que o povo das periferias tem por valores tradicionais e combate ao crime, mesmo motivo que leva este mesmo povo a correr para as igrejas evangélicas. Bolsonaro foi o único que prometeu algum endurecimento contra a bandidagem.

O que mostra que, ao contrário dos bairros pobres de negros e imigrantes nos EUA, o povo de nossas periferias não vê uma dicotomia Negros X Brancos no fenômeno da criminalidade que assola seus bairros. Este é um discurso importado, que não corresponde à nossa idiossincrasia.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Crise Militar de Bobagem

Crise militar já foi coisa séria por aqui, daí que não dá para evitar um ar de dejà vu na trapalhada presente. É sabido que o presidente nutre uma nostalgia por um tempo que ele próprio não viveu - os anos do regime dos generais, quando era apenas um cadete - e teve o apoio de um eleitorado que igualmente, em boa parte, não viveu o regime dos generais, mas o idealizam, sobretudo em razão do desenvolvimento econômico e da menor criminalidade do período.

Já abordei essa época e procurei discernir o que há de verdade e o que há de wishful thinking, mas hoje tive a atenção despertada por um vídeo trazendo um exemplo bem próximo de nós: o lamentável estado das Forças Armadas na Argentina, resultado evidente da perda de confiança daquela nação em suas classes armadas após haverem elas sucessivas vezes exercido o governo, sempre com resultados desastrosos. Da crença no messianismo dos militares, nossos vizinhos já estão livres. Mas nós ainda não.

Examinemos o caso da Argentina. No início do século 20, tinha um regime político republicano estável. Com a economia puxada pela exportação de carne bovina nos recém-inventados navios frigoríficos, tornou-se um dos países mais ricos do mundo, e uma crescente classe média ganhava protagonismo político por intermédio de um partido nascido para representar os setores urbanos e romper o domínio da velha oligarquia, a Unión Cívica Radical, isso em uma época em que todos os demais países sul-americanos eram governados por sua elite rural. Tudo parecia rumar em direção ao mesmo modelo dos demais países ocidentais desenvolvidos. Mas o trajeto foi interrompido por um golpe de estado em 1930, quando assumiu o poder um general-presidente, cujo nome não importa.

Rompida a legalidade constitucional, esta nunca mais se restaurou. Em mais um de tantos golpes, assumiu o poder um certo coronel chamado Juan Domingo Perón, que ao contrário dos demais, possuía um forte carisma. Perón instaurou um regime nacionalista autoritário, calcado do fascismo de Mussolini, e aproveitou-se de uma conjuntura econômica favorável após o fim da segunda guerra, quando o país tinha altos saldos comerciais, para conceder grandes benefícios aos trabalhadores, o que lhe garantiu amplo apoio popular. Escreveu ele certa vez a seu colega presidente do Chile:

"Dê ao povo, principalmente aos trabalhadores, tudo o que for possível. Quando achar que está dando demais, dê mais ainda. Verá os resultados. Como de costume, todos tentarão assustá-lo com o fantasma do colapso da economia. Mas é tudo mentira. Não existe nada mais elástico que a economia, que todos temem porque ninguém entende"

Tampouco ele entendia...

Mas a bonança dos tempos de Perón ficou bem marcada na memória da população, que associou à sua ausência os tempos bicudos que passaram a viver após haver sido gasto o saldo da balança econômica pós-guerra. Isso mais a violência e o personalismo de seu regime produziram uma grande fissão na sociedade argentina, levando alguns setores a trocar o jogo político pela luta armada. A ala esquerda do peronismo criou o grupo guerrilheiro denominado os Montoneros, enquanto a ala direita gerou a Aliança Anticomunista Argentina, capitaneada por López Rega, ministro do Bem-Estar Social. A estes se juntou o Exército Revolucionário do Povo, de inspiração guevarista. Tanta subversão produziria inevitavelmente mais instabilidade e mais intervenções militares, todas mal sucedidas, e à degradação política seguiu-se a degradação econômica: de país rico, a Argentina assumiu um perfil típico de Terceiro Mundo. Após o desastre da Guerra das Malvinas, os argentinos finalmente se convenceram de que a indisciplina de seus militares era a causa histórica de sua decadência.

Por aqui as coisas foram um pouco diferentes. Desde a proclamação da república, os militares assumiram uma posição de mediadores, com o papel de intervir nos impasses. Isso resguardou a reputação dos militares, que foram vistos como uma reserva moral da nação: enquanto eles exercessem este poder moderador, o país estaria livre de desenlaces sangrentos e de guerras civis. Até que em 1964 eles decidiram assumir efetivamente o poder. Também esta fase distinguiu-se do ocorrido na Argentina: os generais-presidentes sucederam-se no poder dentro de uma ordem constitucional aparentemente estável, acompanhada de forte crescimento econômico.

Mas sob uma perspectiva histórica, o período militar não foi uma singularidade, e sim a continuação do modelo desenvolvimentista nacional-estatista iniciado por Vargas nos anos 30 em moldes igualmente totalitários, passando pelo período democrático do segundo governo Vargas, dos governos JK e João Goulart. De fato, os militares levaram este modelo ao auge, nos anos 70, e ao esgotamento nos anos 80. Com a gigantesca crise na "década perdida", a população pôde constatar que os militares não eram governantes superiores aos civis, e desde então não se ouviram mais clamores por uma intervenção militar, até recentemente.

Contudo os "bons tempos" em que os generais impunham ordem e progresso, tal como estava em nossa bandeira, ainda alimentam utopias. Nisso estamos um passo atrás de nossos vizinhos argentinos. Mas pelo menos, não se fazem mais crises militares como antigamente.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Armando a população ou os bandidos?

 A tragédia recentemente ocorrida em Santa Catarina, onde um jovem mentalmente perturbado invadiu uma creche armado de um facão e matou várias pessoas, além das inevitáveis mensagens de pesar e clamor por justiça, despertou nos forum´s dos veículos da mídia uma discussão que me pareceu instigante. Alguns comentaristas afirmaram que se fosse liberado a população andar armada, como quer Bolsonaro, a tragédia não teria acontecido, pois certamente alguém já teria acertado o meliante com uma bala antes que ele pudesse causar mais estragos. Outros comentaristas replicaram, indignados, que se assim fosse, o assassino não estaria armado de uma faca, mas de uma pistola, tal como é nos EUA.

Então, o que é melhor, armar a população ou os bandidos, se a liberação colocará armas nas mãos de ambos? Aí caímos em uma daquelas armadilhas lógicas do gosto dos matemáticos. Certamente que bandidos, quando querem ter armas para violar a lei, violam a lei para ter armas. Mas um cidadão comum, mentalmente perturbado como foi o caso, teria acesso mais facilmente a uma arma se essas estivessem liberadas para os cidadãos. Provavelmente pegaria a pistola do pai, em casa mesmo. Voltamos então à estaca zero, e a discussão prossegue ociosa: liberar ou não as armas à população?

Para um quadro geral de criminalidade descontrolada e falta de confiança na polícia, é sedutora a ideia de fazer justiça com as próprias mãos. Sedutora e ingênua: a grande maioria dos cidadãos, se tivesse uma rama, não saberia usá-la. De um modo geral, sempre me pareceu pueril a proposta de Bolsonaro de armar a população, como se esta fosse uma solução mágica para o crime: então ele propõe que cada cidadão deve prender seu assaltante? Cômodo para os poderes públicos.

Mas tem a ver com a memória seletiva que projeta uma imagem edulcorada dos tempos da ditadura, quando supostamente bandido não tinha vez e a polícia resolvia tudo mandando bala. E do mesmo modo, a proibição das armas, e de resto todo o arcabouço legal que dificulta o combate ao crime também tem a ver com a memória do tempo da ditadura, desta vez com uma percepção invertida: a polícia era "do mal", os marginais eram o "povo oprimido" e a cadeia "não recupera". Sob este espírito de reparação das injustiças da ditadura foi escrita a constituição de 1988 e quatro anos depois o Estatuto da Criança e do Adolescente, com toda a sorte de empecilhos ao encarceramento e facilidades para o relaxamento da prisão em regime fechado. Não podia dar outra coisa, e o crime explodiu, produzindo o sentimento inverso do atual desejo de vingança, essa raiva difusa que leva o povo a votar em quem promete baixar o pau na bandidagem, geralmente sem cumprir.

Sem dúvida que a proposta de proibir as armas, abrandar a legislação penal e oferecer penas alternativas tem um traço humanista, pretensamente progressista e generoso. Mas também embute um sentimento rancoroso e vingativo contra o cidadão comum, jogando-se no corpo da sociedade a culpa pelos crimes cometidos pelos desvalidos, herança da ideologia de luta de classes que embalou o "espírito da época" que pariu o ECA e a constituição de 1988. O espírito da época atual é bem mais escuro, e emerge do ditado popular: aquele que absolve o lobo, condena a ovelha. Ninguém aguenta mais ser ovelha.

Mas o remédio não é dar armas a quem não sabe usá-las, e sim reverter todo aquela arcabouço legal que favorece o crime. Quem já teve contato com marginais sabe que bandido não tem medo de morrer, pois se tivesse não entrava para o crime - ao contrário, bandido sabe que vai morrer e cedo, e por isso procura aproveitar a vida ao máximo e de forma inconsequente. Bandido tem medo, isso sim, de cana dura. Não morrer, mas viver longos anos em uma cela sem conforto, sem festa, sem droga, sem mulher, sem nada daquilo que o motivou a ter uma carreira criminosa. Tanto medo tem, que quando ameaçado de um regime carcerário mais severo, chega a ter reações suicidas, como aquela de 2006 em SP, e em menor escala aquela de 2010 no RJ que motivou a criação da UPP´s. Solução para o crime é cadeia. Só.

domingo, 18 de abril de 2021

A Gênese da Direita Brasileira

 Há momentos tão importantes na vida política de um país que só podem ser compreendidas anos depois, escreveu o colunista Chico Alves neste artigo, comentando a sessão da Câmara que no dia 17 de abril de 2016 autorizou a continuação do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff. Eu que escrevo sobre História estou perfeitamente ciente da necessidade de um distanciamento para ideal apreciação. Não se pode observar uma catedral permanecendo dentro dela, e isso vale para o tempo tanto quanto para o espaço. E há outro motivo para se fazer necessário o distanciamento: arrefecer as paixões e os whishful thinkings inerentes a quem possui um envolvimento pessoal ou emocional com o evento que se quer observar. Existem acontecimentos históricos tão polêmicos que mesmo após muitas décadas não permitem um juízo final e estabelecido.

Aquele dia 17 de abril de 2016, de fato, não é fácil de esquecer. Foi quando o país divisou, atônito, o rosto feio de uma direita que nem sabia que existia, mas que nem por isso era descolada do caráter nacional. As frases cheias de ódio com que cada um brindou o seu voto contra a presidente conferiram àquela cerimônia um aspecto grotesco que até hoje causa consternação, parecendo vir de um subterrâneo onde milhões de pessoas que não tinham voz, subitamente puderam fazer-se ouvir. Até pouco tempo atrás, a direita brasileira parecia nem existir, a menos que se rotulasse de direita tudo o que não fosse de esquerda. Desde o fim do regime militar, não era politicamente correto assumir-se como de direita.

Ironicamente, quem acabou com a direita política nacional foram os militares que tomaram o poder em 1964. Decididos a manter o poder restrito ao establishment militar, trataram de neutralizar a vanguarda da UDN que havia sido o braço civil da revolta, e cassaram seus principais próceres, como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, atirando os restantes na vala comum da ARENA, partido de existência meramente formal onde não era admitida nenhuma liderança independente. O sistema político-eleitoral que se estabeleceu então foi calculado para dar a vitória ao interior mais retrógrado em detrimento dos grandes centros. Nunca mais surgiu na política uma direita intelectualizada e atuante como a que havia na antiga UDN. Cumpre frisar, entretanto, que este foi o fim da direita apenas na política. As ideias conservadoras da direita continuaram vivas na população, agora sem voz.

Chico Alves analisa o livro do sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo, na tentativa de explicar o inesperado surgimento daquela direita que derrubou Dilma e depois elegeu Bolsonaro. Escreveu ele: 

"O Brasil em sua maioria é um país de gente com mentalidade atrasada. E foi essa mentalidade atrasada que derrubou a chefe do governo cujo partido e o presidente que a precedeu davam mostras que queriam dar igualdade às mulheres, aos negros, aos gays, pautas de esquerda (...) Essa parcela atrasada assume valores que são de direita, mas não tinha como expressar isso antes. Isso é revertido quando surge a voz dos evangélicos legitimada em suas cadeiras políticas."

O quanto há de verdade na tese do sociólogo? Que os evangélicos ganharam um extraordinário protagonismo na política nos últimos anos, é fato. Mas por mais que a mentalidade da população seja conservadora, machista, sexista e contrária aos gays, não creio que isso seja o bastante para derrubar um presidente. Havia um sentimento de rejeição mais profundo. Por outro lado, também tenho que reconhecer que a crise econômica e as ditas pedaladas fiscais tampouco foram o verdadeiro motivo do impeachment. Conclui o sociólogo:

"O verdadeiro motivo foi a reação de uma parcela de brasileiros, até então sem voz, a avanços na agenda de costumes"

A meu ver, o verdadeiro motivo foi, em primeiro lugar, a destruição da direita política nacional, e de modo mais profundo e inexorável, a destruição da própria cultura nacional, essa levada a cabo pela difusão de contravalores da parte de intelectuais, escritores, cineastas e produtores culturais de esquerda. Foi um fenômeno que ganhou força após o fracasso da luta armada nos anos 70, que não teve o apoio dos trabalhadores. A esquerda foi buscar seu novo público entre os marginais, aí entendidos como qualquer grupo de insatisfeitos e inconformistas, ainda que sua dissenção contra o sistema nada tenha a ver com luta anti-capitalista. O sintoma mais notável foi a profusão de livros e filmes mostrando bandidos das favelas como heróis populares e defensores de suas comunidades, enquanto a polícia era demonizada e ridicularizada. Houve outras mensagens mais sutis, como o prestígio da cultura marginal das periferias e a idealização de índios e pequenos agricultores como tendo "consciência ecológica". Foi dentro desse contexto que a esquerda aproximou-se daqueles de quem os conservadores não gostam, como os gays.

Os efeitos desse rebaixamento cultural estão à vista, começando pela música, que já foi das melhores do mundo, e hoje reverbera os rap´s das favelas com suas letras louvando a transgressão, manifestação de um suposto "país real" que habita as periferias. O papel do Brasil no cenário internacional é irrelevante. Ninguém sabe citar um intelectual, escritor ou artista brasileiro de prestígio. Não há mais o otimismo nem as utopias que foram tão comuns no passado e que garantiam um futuro luminoso para o país. Predomina um sentimento de frustração e desalento. E que mais acontece quando uma população perde seu chão de valores, do que procurar voltar-se para aqueles valores mais fundamentais, como os religiosos? Quando se perde a esperança no futuro, o que se faz é voltar-se para o passado, ora!

Não sem motivo, o primeiro sinal do desgosto da população para com aquela corrente de contravalores foi o (inesperado) sucesso do filme Tropa de Elite, com a idolatria ao capitão Nascimento sendo o contraponto perfeito à idolatria ao marginal-herói. Acossada pelo crime e pela imoralidade, a população das periferias voltou-se para os pastores evangélicos, posto que não havia mais uma direita política capaz de compreender seus anseios e transformá-los em projetos.

Como superar esse impasse? O sociólogo Reginaldo Prandi confessa-se otimista:

"Acho que esse pessoal que estava fora da política entra agora e se depara com a necessidade de entender o Brasil, vai se civilizando. Vai aprendendo, finalmente, começa a saber o que é ciência. Começa aprendendo o que é vacina (...) Isso acontece porque vai tendo um contato com a realidade que o obriga a aprender"

A meu ver, a "civilização" da direita passa pela reconstrução da direita política em substituição aos religiosos e aos saudosos do regime militar, com lideranças esclarecidas que possam apresentar a seus eleitores uma pauta em dia com a direita dos países desenvolvidos, destacando-se a diminuição do Estado, o equilíbrio das contas públicas e uma legislação mais severa contra o crime. Só podemos chagar a esse estado de coisas por tentativa e erro.

domingo, 28 de março de 2021

O Pêndulo da História

Se ainda não chegamos ao Fim da História, estágio que alguns estudiosos teorizam e alguns práticos gostariam que fosse o momento em que estão vivendo, é confortante ver que o pêndulo da História continua a oscilar, sinalizando que estamos vivos e o rio da História segue seu curso. E no momento, o pêndulo parece que está pendendo novamente para a esquerda e o PT. É bom, é mau? Eu diria que é normal.

O governo Bolsonaro não foi a catástrofe que os opositores previam e alguns temiam. Chega nesse momento difícil com ainda uns repeitáveis 30% de aprovação. Mas é flagrante que praticamente todos os aspectos negativos de seu governo devem-se a posturas errôneas e intransigentes do próprio presidente, e não a fatores externos. Este quadro coloca em risco suas pretensões à continuidade no próximo mandato, e nesse momento ressurge Lula como candidato. No horizonte, desenha-se um confronto entre extremos.

A oportunidade de se estabelecer um bipartidarismo estável, modelo de todos os países capitalistas desenvolvidos, foi desperdiçada em razão do confronto entre o PT e o PSDB na época de Lula. Encasquetaram os petistas de que seu inimigo visceral eram os tucanos, e que poderiam comprar com poucos tostões o apoio do centrão. Deu no que deu, e ao invés de um revezamento entre uma centro-esquerda e uma centro-direita, teremos um revezamento entre uma esquerda rancorosa e uma direita raivosa.

De fato, o ressurgimento de Lula, inocentado por uma polêmica decisão do STF, tem uma aura de revanche. Mas o quadro geral tem mais jeito de farsa do que de tragédia. O Lula possível candidato não é o mesmo Lula que venceu em 2002 em um clima de grande otimismo. A conjuntura internacional agora é outra, e os bons ventos que sopraram no primeiro governo de Lula não voltarão a soprar. Com sua notável capacidade de preservar sua imagem, é provável que ele fique fora da disputa, a fim de que na memória do povo fique somente o Lula bem sucedido da primeira década do século, e agora ele limite-se a emprestar seu apoio a um candidato. Mas seja qual for o novo presidente petista, é improvável que faça um governo de revanche, radicalizando tudo o que o PT não pôde fazer com Dilma Rousseff. O PT saiu bastante enfraquecido da sucessão de escândalos que marcou seu período, e parece estar estéril de novas lideranças, como se o personalismo de Lula houvesse lançado uma sombra sobre todos os demais companheiros.

Já a nova direita que elegeu Bolsonaro também parece esgotada. O próprio Bolsonaro, membro tardio do regime de 1964 já extinto quando iniciou sua carreira política, já surgiu em um contexto de farsa que sucede à tragédia: ninguém acredita que possa reeditar a ditadura que ele tanto admira. Muitos de seus apoiadores parecem viver de um passado idealizado, e ironicamente incompatível com a política do governo atual, pois o nacional-estatismo dos generais tinha mais a ver com o projeto petista da Nova Matriz econômica do que com o alegado liberalismo econômico do presidente.

Fica a esperança de que até o ano que vem surja uma alternativa vinda do centro. Do PMDB? Espero estar errado. Do PSDB? Esse partido parece estar ainda mais esgotado que todos os contentores atuais. Se não surgir ninguém, continuaremos a ter mais do mesmo. O pêndulo da História continuará a oscilar, mas nem sempre anunciando boas notícias.


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Afinal, governo militar é bom?

Essa é uma pergunta que tem pairado no ar desde que Bolsonaro iniciou sua campanha para a presidência, em um clima de desalento no país. A psicologia explica facilmente esse desejo de idealizar um passado para fugir a um presente desastroso. Mas o tempo passa e o presidente não cessa de proclamar sua admiração pelo ciclo de generais ditadores que governaram o país de 1964 a 1985, embora seu governo nada tenha do desenvolvimentismo nacional-estatista que marcou aquele período. Foi de fato uma época de rápido crescimento econômico, mas também caracterizada pelo surgimento e agravamento de problemas que perseguiriam o país por décadas, como a inflação e o endividamento externo, e tudo se esboroou nos anos 80, a década perdida.

Com os tempos do "milagre econômico" já saídos do imaginário popular, a idealização daquele período entre as camadas populares se deve sobretudo à criminalidade menor - segundo se acredita, os militares "davam duro" e os criminosos não se criavam. É preciso examinar essa assertiva com a isenção de quem viveu aqueles anos. A criminalidade era de fato bem menor. Mas vinha em ascensão. De fato, o crime entra na lista dos problemas que se agravaram naquele período para explodir nas décadas seguintes. Os militares "davam duro", mas não contra criminosos comuns. A segurança pública não era considerada questão de segurança nacional, e ficou a cargo das secretarias de segurança estaduais e suas polícias militares - é certo que as polícias militares ficaram sob a égide do exército, mas esse arranjo tinha em mente colocá-las como auxiliares das forças armadas na luta contra os subversivos, e não colocar o exército como auxiliar das polícias militares na luta contra a bandidagem. De resto, o combate ao crime permaneceu uma exclusividade das polícias estaduais, que fizeram-no com aquele primarismo e incompetência típicos dos períodos autoritários, quando oficiais estão isentos de repreensão a seus atos. Não admira que o crime tenha explodido, embora algumas causas só tenham surgido após a saída dos militares do governo.

Mas os governos militares, em perspectiva, foram benéficos, ou ao menos necessários ao país naquele momento histórico?

A resposta deve ser buscada na História. A justificativa à intervenção dos militares na política remete a um suposto "poder moderador" que caberia ao exército exercer em momentos cruciais da vida do país - enquanto os militares estivessem a postos para interferir, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerras civis. A figura de um poder moderador já existiu na primeira constituição do país, exercido pelo monarca, que aliás foi derrubado pelos militares supostamente desejosos de assumir tal atribuição. Nas primeiras décadas da república, na época do tenentismo, os militares ganharam uma aura de vanguardistas dispostos a golpear as estruturas arcaicas do poder das oligarquias, e conduzir o país à modernidade, se necessário pela força. Essa ideia de um "projeto de país" sob o comando de um governo central forte, mais tarde realizada por Getúlio Vargas, fazia parte das aspirações nacionais naquele período marcado pelo poder nas mãos de "coronéis do sertão", figuras emblemáticas do país arcaico que deveria ser superado, que impunham seus interesses provinciais ou meramente pessoais aos interesses do país urbano, comandando estados que eram quase países independentes - deve ser lembrado que a polícia do estado de São Paulo, até os anos 30, dispunha até de força aérea. Evidente que não se tratava de uma polícia de verdade, mas de um exército disfarçado.

Ao exército nacional, então, caberia o papel de colocar ordem no país e fazer valer os genuínos interesses da nação. Tudo a ver com os ideais do positivismo que haviam embalado a formação de mais de uma geração de alunos das escolas militares, os quais propugnavam como governo ideal uma "ditadura republicana" conduzida por homens superiores, genuínos patriotas que exerceriam o poder de forma "racional e científica", sem estarem ligados às demandas de políticos profissionais. Mas os tenentes dispersaram-se em ideologias que variavam do fascismo ao comunismo, e o poder ficou a cargo de um ditador civil, Getúlio Vargas.

Já após a segunda guerra, um novo alento foi dado à ideia de que os militares deveriam interferir na política: a guerra fria e a necessária luta contra a subversão comunista. Essas ideias foram disseminadas sobretudo através da Escola Superior de Guerra, estabelecida naquele período. Mas no modelo ideológico da guerra fria, tratava-se do combate de um mundo "ocidental, democrático e capitalista" contra o totalitarismo soviético, e nesse quadro não se justificava a supressão da democracia. Como compromisso, então, foi estabelecida a teoria: uma vez que o país estava ainda em um estágio primitivo de desenvolvimento, o regime democrático, ou "estado de direito", deveria ser suspenso temporariamente enquanto um governo de plenos poderes tomava as medidas necessárias para derrotar a subversão e conduzir o país ao desenvolvimento econômico e social, que uma vez atingido, permitiria ao país retornar ao regime democrático e igualar-se aos demais do bloco ocidental.

Mais uma vez cabe à História verificar a veracidade da assertiva. Entre os países hoje desenvolvidos do mundo ocidental, não se encontra um único exemplo de algum que tivesse no passado um período de ditadura militar que o tenha trazido ao desenvolvimento econômico e social - ao contrário, a manutenção do regime democrático em momentos de tensão social foi decisiva para garantir um canal aos contentores da política, e assim impedir que passassem ao enfrentamento armado. Do mesmo modo, a manutenção da ortodoxia econômica foi decisiva para o desenvolvimento, bem diverso do dirigismo estatal que caracterizou o período militar por aqui. Exemplos de países hoje desenvolvidos e democráticos que tiveram no passado um período de ditadura militar só são encontráveis no oriente - por exemplo, o Japão dos anos 30. Mas esse período de domínio militar não levou o Japão ao desenvolvimento, mas ao pior desastre de sua história, ao entra na guerra. E deve ser lembrado que no século anterior, quando a Era Meiji conduziu o Japão à modernidade e à revolução industrial, tal só foi possível após a supressão do feudalismo militarizado dos xoguns.

A ideia de uma intervenção militar redentora no país não se sustenta. Talvez porque os militares, no fim das contas, não conseguem governar o país sem o apoio das mesmas elites políticas tradicionais. E foi precisamente esta a principal herança do regime de 1964: para criar uma fachada de legalidade democrática, consoante o modelo da guerra fria de luta da democracia contra o comunismo, o sistema político eleitoral foi falseado para beneficiar chefes políticos do interior em detrimento das capitais e dos estados mais desenvolvidos, produzindo assim uma geração de políticos que pareciam saídos da República Velha - de onde vieram personagens como um José Sarney e um Collor de Melo? A diferença é que a República Velha tinha uma elite política bem mais ilustrada.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O Vício da "Antropologização"

Estou lendo o livro Abuso, a Cultura de Estupro no Brasil, da jornalista Ana Paula Araújo. A autora expõe um detalhado painel das razões jurídicas, sociais e psicológicas que tornam o estupro um crime difícil de punir e até de tipificar, a partir de relatos e entrevistas que fez com vítimas e autores de estupro. As descrições são pesadas de se ler, mas a análise é criteriosa. Um dos casos pesquisados pela autora foi alvo de um artigo meu, Sobre as Quatro Meninas de Castelo do Piauí, e narra um estupro coletivo ocorrido no Piauí em 2015, quando quatro adolescentes subiram um morro onde havia um mirante a fim de tirar fotos para publicar em redes socais, e lá foram abordadas por quatro menores e um adulto, estupradas e ainda jogadas do alto de um penhasco (uma morreu). Ana Paula entrevistou uma das meninas sobreviventes, que chamou de Jéssica. Fiquei sabendo de mais algumas informações sobre esta jovem, que agora está casada e recuperada do trauma. Ela recebeu um telefonema do promotor do caso (que sei chamar-se Cesário Cavalcante) perguntando, em um tom que lhe pareceu malicioso, se as meninas tinham ido ao morro "só para tirar fotos mesmo".

Espero que "Jéssica" esteja bem agora. Mas fiquei sabendo que quando um dos menores autores do crime retornou à cidade após cumprir os três anos de internação estipulados pelo ECA, uma das vítimas teve uma crise de pânico e trancou-se em casa. Deduzi tratar-se da mesma menina entrevistada por Ana Paula Araújo, a única que ainda morava na cidade. Mas ela declarou à jornalista que não sentia ódio do estuprador, e no entanto, ainda estava ressentida do promotor, por conta daquela pergunta infeliz.

Achei os argumentos da autora totalmente pertinentes, sobretudo quanto ao ressentimento das vítimas ser ainda maior em relação àqueles que deveriam defendê-las, mas colocam em dúvida sua idoneidade. Mas quanto à abordagem que ela deu ao tema - Cultura de Estupro - já no artigo que publiquei, deixei claro que não gostava desta expressão, e expliquei o motivo.

De modo algum tenho a intenção de negar que exista uma cultura de estupro no Brasil, assim como existe em outros lugares. Mas eu enxergo nessa abordagem um vício muito comum em intelectuais por aqui, que chamarei o vício da "antropologização". Consiste em dar um viés antropológico a fatos cabais. O elevado número de estupros no Brasil é um fato cabal. Podemos daí concluir que é causado por uma cultura de estupro que existe entre nós? Bem, se é assim, devemos também concluir que temos uma cultura de assaltos a mão armada, uma cultura de explosão de caixas eletrônicos, uma cultura de sequestros-relâmpagos, uma cultura de tráfico de drogas, pois todos esses crimes acontecem aos montes por aqui. Como já havia dito no artigo que publiquei, se somos tão maus assim, então a solução para nós seria o suicídio coletivo.

Mas é preciso analisar de onde vem esse vício de atribuir tudo a uma "cultura". Deriva de uma abordagem rousseauniana do quadro social: os indivíduos supostamente são bons, é a sociedade que os corrompe ao cooptá-los a um ambiente cultural nefasto. A mim, isso parece um afã de dissolver no corpo da sociedade a culpa de indivíduos - quem estuprou as meninas não foram o fulano e o sicrano, mas sim uma abstração, a tal "cultura de estupro". A solução, portanto, não seria penalizar os autores do estupro, mas a sociedade, combatendo a cultura de estupro.

Acredito que uma cultura só pode ser a causa primordial de um crime se seu autor efetivamente assume que não é um criminoso. Uma cultura, definida pela antropologia, é uma crença geral, um sistema de valores adotado e praticado por um grande grupo de pessoas. Uma cultura de estupro só pode ser o agente causal de um estupro se este é visto como uma merecida punição à vítima, conforme a crença do autor. Ora, os bandidos que estupraram as meninas de Castelo do Piauí não o fizeram porque achavam que elas "mereciam ser estupradas". Aliás, as vítimas nem estavam vestindo roupas provocantes. Eles estupraram porque queriam fazê-lo e nada os impedia, além de estarem sob o efeito de drogas. Essa visão de estupro justo punitivo pode existir em outras partes do mundo, onde concepções religiosas penalizam severamente o comportamento feminino, mas não me parece compatível com o Brasil, assim como com o mundo ocidental em geral. Aqui, a visão de uma mulher em trajes sumários pode aguçar o desejo de molestá-la, mas não creio que algum estuprador, no íntimo, acredite estar lhe dando um justo castigo ao invés de estar satisfazendo seu próprio libido. A justificativa é outra: ela provocou o seu desejo até torná-lo incontrolável.

Combater a cultura de estupro ao invés de combater o estuprador só fará o efeito de incutir sentimentos de culpa em milhões de homens que nunca pensaram em estuprar ninguém, enquanto os verdadeiros estupradores continuarão a cometer seus crimes sem sentimento de culpa algum. A cultura de um povo só muda por si só - já dizia Martin Luther King, não se pode legislar sobre moral. Resultados efetivos no combate ao estupro, tal como a todos os crimes, só podem ser obtidos por uma repressão mais severa, aí incluídas penas maiores, o que já vem sendo efeito, embora timidamente. A autora não chega a afirmá-lo textualmente, mas em determinado trecho ela faz uma comparação com as penas para estupro em outros países:

"Por outro lado, a pena estipulada para estupros, mesmo os mais graves, é apenas de seis a dez anos de prisão, estando longe de ser das mais severas. Na Argentina, a sentença pode chegar a vinte anos de reclusão se o estuprador for parente da vítima. Na Índia, a pressão popular após episódios chocantes de estupros coletivos elevou a pena mínima de sete para vinte anos. Nos Estados Unidos, há estados em que há previsão até mesmo de prisão perpétua. França e Rússia também preveem prisão perpétua em alguns eventos, por exemplo, quando o crime é acompanhado de tortura"

Mas aqui, o combate ao estupro fica irremediavelmente comprometido se aqueles que esbravejam contra a cultura de estupro são os mesmos que se opõem histericamente a qualquer endurecimento da legislação penal.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O Fim da Era Trump/Bolsonaro?

 O presidente norte-americano Donald Trump provavelmente nunca ouviu falar de Jair Bolsonaro antes que o mesmo se tornasse presidente do Brasil. Nunca houve nenhum tipo de ligação entre ambos. E no entanto, sinto haver total propriedade no uso da expressão Era Trump/Bolsonaro.

E não apenas porque os mandatos de ambos coincidiram, ou porque têm um posicionamento ideológico semelhante. As condições que os permitiram chegar ao poder foram análogas. Ambos são "pontos fora da curva", sem relação com os clãs políticos tradicionais em seus respectivos países. Ambos se elegeram com aquilo que eu chamo o voto de raiva, vindo de um eleitorado em desalento, que deixa momentaneamente de confiar em suas escolhas usuais e experimenta algo totalmente diferente, mesmo sabidamente imprevisível e perigoso. O voto de raiva surge de uma sensação de perda, de desencanto, de quem se descobre enganado, e quer recuperar o que julga perdido. Mas nos EUA e no Brasil, as motivações foram diferentes.

Nos EUA, Donald Trump valeu-se de uma sensação de declínio, daí seu bordão Faça a América Grande Novamente. Para mim, é surpresa saber que a América havia se tornado pequena, mas esta era a impressão de muitos americanos. De fato, em termos comparativos, a América já foi bem maior. No balanço geral de poder militar, já esteve em uma posição bem mais hegemônica, agora ameaçada por outras potências emergentes. Sua indústria já produziu muitas coisas que hoje são produzidas no leste asiático. O número de pobres é excessivo e os serviços de saúde deixam a desejar para os padrões de um país desenvolvido. E é claro, há a impressão de estar sendo invadida por um incontrolável fluxo de imigrantes.

Mas até que ponto esses fenômenos constituem de fato um declínio? Os americanos já viveram melhor no passado?

A impressão que eu tenho é que essas transições são parte da normalidade em um mundo globalizado, e portanto, a sensação de declínio é em grande parte psicológica. Outras potências estão emergindo, notadamente a China. Os EUA ainda são, com folgas, a primeira potência militar do globo, mas já não têm a mesma vantagem comparativa de outros tempos. O fenômeno da desindustrialização é realmente assustador, produzindo resultados como os bairros abandonados de Detroit, outrora grande centro da indústria automobilística americana, mas também não deixa de se incluir na fenomenologia geral da globalização, mais precisamente a transição da força de trabalho do setor secundário (indústria) para o setor terciário (serviços). Os escritórios estão esvaziando as fábricas, tal como, no passado, as fábricas esvaziaram as fazendas. Hoje em dia não há no mundo país mais industrializado que a China, e nem por isso eu gostaria de ser operário em uma fábrica chinesa. A própria conceituação "país industrializado" como sinônimo de "país rico" está caindo rapidamente em desuso. 

E à medida em que as fábricas são exportadas para os países periféricos, a população desses países é importada para os EUA na forma de imigrantes, outra questão priorizada de forma bombástica na campanha de Trump. Não é necessário repetir que os EUA sempre foram formados por imigrantes, mas o problema da imigração ilegal tem sido considerado crucial pelo governo desde pelo menos duas gerações. Nada de novo, contudo; historicamente, os conflitos dos EUA com seus vizinhos hispânicos têm sido originados por fluxos humanos descontrolados desde o século 19. Mais do mesmo? Sim, mas mutante conforme a época. O atual fluxo migratório sul-norte é mais um produto da globalização, precisamente relacionado à transição demográfica, que faz diminuir a oferta de mão de obra pouco qualificada, tradicionalmente formada por jovens, e abre milhares de vagas para imigrantes. Os americanos podem achar que o atual número de imigrantes é excessivo, mas sua economia não é mais capaz de funcionar sem os imigrantes que já estão lá.

Tantas mudanças na esteira da inexorável globalização, sem dúvida deixam muitos eleitores confusos e irritados. Mas o que importa é responder: afinal, os americanos vivem hoje pior do que viviam 20 ou 30 anos atrás? Não sei dizer. Alguns com certeza pioraram, mas penso que muitos melhoraram.

E no Brasil? Os sentimentos que por aqui motivaram o eleitorado a votar em Bolsonaro têm a ver com um estado de espírito semelhante, mas de origem distinta. Eles surgiram, sobretudo, da decepção da população com o PT, que protagonizou anos de muito otimismo sob Lula, para depois decepcioná-la cruelmente quando ficou claro o imenso esquema de corrupção montado para abastecer a caixa do partido, e a enorme crise econômica que Dilma escondeu. Tudo foi tornado pior pela arrogância manifestada pelos petistas enquanto no poder, sobretudo por seus ataques gratuitos à classe média, que havia sido o esteio do PT em seus primórdios. Cansada da corrupção, do crime, das promessas desfeitas e da desfaçatez dos políticos, a população sentiu que seu futuro era roubado, e voltou-se para um passado idealizado, quando havia segurança, o país progredia e todos trabalhavam. Um passado muito relacionado aos anos do regime militar.

Deve ser lembrado que muitos dos eleitores de Bolsonaro vem de camadas populares, sobretudo habitantes de periferias de grandes cidades. Entende-se: a principal preocupação dessas pessoas é com a segurança, e Bolsonaro foi o único que prometeu algum endurecimento contra o crime. Desesperançado, o povo das periferias refugiou-se em seus valores mais conservadores, frequentando igrejas evangélicas que brotam ali como cogumelos após a chuva, e defendendo quem quer que esteja disposto a baixar o pau na bandidagem. Esse estado de espírito do povo das periferias não vem de hoje, mas os petistas ignoraram-no totalmente. Foi Bolsonaro quem surfou nesta onda.

Mas Bolsonaro é mesmo o restaurador da Era de Ouro do governo dos generais?

Que ele se refere a essa época com orgulho, todos sabemos. Mas ele próprio não participou dela, mesmo porque era muito jovem. A visão que Bolsonaro nutre daqueles tempos é tão idealizada quanto a visão de seus seguidores. A época dos militares teve, sim, pontos positivos - o crescimento econômico e a criminalidade menor são um fato. Mas foi também naquela época que se plantaram as sementes de muitos problemas de hoje. O crime era menor, mas vinha em ascensão, negligenciado pelos militares no poder, esses mais preocupados com umas poucas dezenas de guerrilheiros. A economia crescia, mas foi naquela época que o modelo econômico nacional-estatista iniciado nos anos 30 por Vargas teve seu esgotamento, gerando endividamento, inflação e estagnação. Enfim, a Era dos Generais é apenas um quadro para enfeitar a sala de Bolsonaro, pois na prática ele segue um modelo econômico liberal e privatista que é o exato oposto do estatismo dos militares de 1964.

Mas se parece existir uma "ligação cósmica" entre Trump e Bolsonaro, a despeito da ascensão de ambos ter se devido a agentes causais bem diferentes, é lícito supor que o ocaso da Era Trump nos EUA, agora com novo presidente, sinalize o próximo fim da Era Bolsonaro. Ambos foram pontos fora da curva, corpos estranhos que atiçam os anticorpos do sistema político para rejeitá-los. No Brasil, já tivemos os casos de Jânio Quadros, Paulo Maluf e Fernando Collor, nenhum deles havendo terminado seu mandato, e Maluf não chegou sequer a ser eleito. Mas apesar das apreensões, nem Trump nos EUA, nem Bolsonaro no Brasil chegaram a provocar uma crise generalizada que implicasse sua saída do poder. Trump não sofreu impedimento, e Bolsonaro, ao que parece, também não sofrerá - mais da metade do mandato ele já cumpriu. Bolsonaro não cumpriu todas as suas promessas e a polêmica tem sido constante em seu governo, mas manteve uma base de sustentação razoável e ainda goza de um razoável percentual de aprovação. Nota-se contudo que está perdendo apoio, e parece remota a possibilidade de uma reeleição.

Trump e Bolsonaro foram o produto de um momento de raiva do eleitorado, que agora dá a impressão de haver passado. Os EUA voltarão à bipolaridade Republicano X Democrata (deve ser ressaltado que Trump nunca foi um republicano de raiz). Aqui, ainda é uma incógnita como se recomporão as forças políticas pós-Bolsonaro.