Estou lendo o livro Abuso, a Cultura de Estupro no Brasil, da jornalista Ana Paula Araújo. A autora expõe um detalhado painel das razões jurídicas, sociais e psicológicas que tornam o estupro um crime difícil de punir e até de tipificar, a partir de relatos e entrevistas que fez com vítimas e autores de estupro. As descrições são pesadas de se ler, mas a análise é criteriosa. Um dos casos pesquisados pela autora foi alvo de um artigo meu, Sobre as Quatro Meninas de Castelo do Piauí, e narra um estupro coletivo ocorrido no Piauí em 2015, quando quatro adolescentes subiram um morro onde havia um mirante a fim de tirar fotos para publicar em redes socais, e lá foram abordadas por quatro menores e um adulto, estupradas e ainda jogadas do alto de um penhasco (uma morreu). Ana Paula entrevistou uma das meninas sobreviventes, que chamou de Jéssica. Fiquei sabendo de mais algumas informações sobre esta jovem, que agora está casada e recuperada do trauma. Ela recebeu um telefonema do promotor do caso (que sei chamar-se Cesário Cavalcante) perguntando, em um tom que lhe pareceu malicioso, se as meninas tinham ido ao morro "só para tirar fotos mesmo".
Espero que "Jéssica" esteja bem agora. Mas fiquei sabendo que quando um dos menores autores do crime retornou à cidade após cumprir os três anos de internação estipulados pelo ECA, uma das vítimas teve uma crise de pânico e trancou-se em casa. Deduzi tratar-se da mesma menina entrevistada por Ana Paula Araújo, a única que ainda morava na cidade. Mas ela declarou à jornalista que não sentia ódio do estuprador, e no entanto, ainda estava ressentida do promotor, por conta daquela pergunta infeliz.
Achei os argumentos da autora totalmente pertinentes, sobretudo quanto ao ressentimento das vítimas ser ainda maior em relação àqueles que deveriam defendê-las, mas colocam em dúvida sua idoneidade. Mas quanto à abordagem que ela deu ao tema - Cultura de Estupro - já no artigo que publiquei, deixei claro que não gostava desta expressão, e expliquei o motivo.
De modo algum tenho a intenção de negar que exista uma cultura de estupro no Brasil, assim como existe em outros lugares. Mas eu enxergo nessa abordagem um vício muito comum em intelectuais por aqui, que chamarei o vício da "antropologização". Consiste em dar um viés antropológico a fatos cabais. O elevado número de estupros no Brasil é um fato cabal. Podemos daí concluir que é causado por uma cultura de estupro que existe entre nós? Bem, se é assim, devemos também concluir que temos uma cultura de assaltos a mão armada, uma cultura de explosão de caixas eletrônicos, uma cultura de sequestros-relâmpagos, uma cultura de tráfico de drogas, pois todos esses crimes acontecem aos montes por aqui. Como já havia dito no artigo que publiquei, se somos tão maus assim, então a solução para nós seria o suicídio coletivo.
Mas é preciso analisar de onde vem esse vício de atribuir tudo a uma "cultura". Deriva de uma abordagem rousseauniana do quadro social: os indivíduos supostamente são bons, é a sociedade que os corrompe ao cooptá-los a um ambiente cultural nefasto. A mim, isso parece um afã de dissolver no corpo da sociedade a culpa de indivíduos - quem estuprou as meninas não foram o fulano e o sicrano, mas sim uma abstração, a tal "cultura de estupro". A solução, portanto, não seria penalizar os autores do estupro, mas a sociedade, combatendo a cultura de estupro.
Acredito que uma cultura só pode ser a causa primordial de um crime se seu autor efetivamente assume que não é um criminoso. Uma cultura, definida pela antropologia, é uma crença geral, um sistema de valores adotado e praticado por um grande grupo de pessoas. Uma cultura de estupro só pode ser o agente causal de um estupro se este é visto como uma merecida punição à vítima, conforme a crença do autor. Ora, os bandidos que estupraram as meninas de Castelo do Piauí não o fizeram porque achavam que elas "mereciam ser estupradas". Aliás, as vítimas nem estavam vestindo roupas provocantes. Eles estupraram porque queriam fazê-lo e nada os impedia, além de estarem sob o efeito de drogas. Essa visão de estupro justo punitivo pode existir em outras partes do mundo, onde concepções religiosas penalizam severamente o comportamento feminino, mas não me parece compatível com o Brasil, assim como com o mundo ocidental em geral. Aqui, a visão de uma mulher em trajes sumários pode aguçar o desejo de molestá-la, mas não creio que algum estuprador, no íntimo, acredite estar lhe dando um justo castigo ao invés de estar satisfazendo seu próprio libido. A justificativa é outra: ela provocou o seu desejo até torná-lo incontrolável.
Combater a cultura de estupro ao invés de combater o estuprador só fará o efeito de incutir sentimentos de culpa em milhões de homens que nunca pensaram em estuprar ninguém, enquanto os verdadeiros estupradores continuarão a cometer seus crimes sem sentimento de culpa algum. A cultura de um povo só muda por si só - já dizia Martin Luther King, não se pode legislar sobre moral. Resultados efetivos no combate ao estupro, tal como a todos os crimes, só podem ser obtidos por uma repressão mais severa, aí incluídas penas maiores, o que já vem sendo efeito, embora timidamente. A autora não chega a afirmá-lo textualmente, mas em determinado trecho ela faz uma comparação com as penas para estupro em outros países:
"Por outro lado, a pena estipulada para estupros, mesmo os mais graves, é apenas de seis a dez anos de prisão, estando longe de ser das mais severas. Na Argentina, a sentença pode chegar a vinte anos de reclusão se o estuprador for parente da vítima. Na Índia, a pressão popular após episódios chocantes de estupros coletivos elevou a pena mínima de sete para vinte anos. Nos Estados Unidos, há estados em que há previsão até mesmo de prisão perpétua. França e Rússia também preveem prisão perpétua em alguns eventos, por exemplo, quando o crime é acompanhado de tortura"
Mas aqui, o combate ao estupro fica irremediavelmente comprometido se aqueles que esbravejam contra a cultura de estupro são os mesmos que se opõem histericamente a qualquer endurecimento da legislação penal.
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