domingo, 20 de agosto de 2023

País Refém do Narcotráfico

O assassinato de Fernando Villavicencio, candidato à presidência do Equador, chamou a atenção para este pequeno país da América do Sul. Sabemos, pelo caso da Colômbia, que quando os narcotraficantes começam a matar candidatos a presidente, eles já dispõem de um exorbitante poder dentro do país.

E no entanto, a escalada dos narcotraficantes no Equador já vinha sendo anunciada um ano antes por este artigo do Globo. Embora não seja um produtor, os portos profundos tornam o país um importante ponto de trânsito para drogas rumo aos consumidores nos EUA e Europa. Sua economia dolarizada também o torna um local estratégico para lavagem de dinheiro. E conforme apontado no artigo, a reação ao crescimento da violência tem sido libertar os presos para aliviar a superlotação nas cadeis controladas pelas quadrilhas. Soa familiar?

Por aqui, não falta quem acredite que nosso crime nada deve aos países "reféns do narcotráfico", como o México, e agora, o Equador. Mas é preciso dizer: não, não é a mesma coisa, e quem pensa o contrário nunca esteve em um daqueles países. Nossos narcotraficantes se assemelham aos de nossos vizinhos por sua violência e pelo uso de armas pesadas, mas diferenciam-se destes pelas áreas onde atuam e exercem sua influência. O Brasil não produz drogas, exceto pequena quantidade de maconha de má qualidade (os usuários preferem a paraguaia). Como rota para os principais mercados consumidores, é secundário se comparado aos países do norte do subcontinente. Mas por outro lado, o Brasil é o segundo maior consumidor de drogas do mundo, atrás apenas dos EUA.

Por conseguinte, o perfil do crime relacionado ao narcotráfico, no Brasil, não se assemelha ao de um país como o México, mas ao de um país consumidor, como os EUA; ou seja, está concentrado nos pontos de distribuição e venda. Esses pontos, no Brasil, são as favelas, abandonadas pela polícia e tornadas "zona liberada" desde os anos 80, começando com Brizola. É nas favelas que se encontram as bocas-de-fumo, os estoques e os arsenais dos traficantes, que recrutam ali sua mão-de-obra e constroem suas fortalezas. O domínio que estes exercem sobre as favelas é notório, mas por outro lado, não é concebível no Brasil haverem cidades inteiras e vastas áreas rurais dominadas por quadrilhas de narcotraficantes, como ocorre nos países produtores e roteadores, os quais fornecem mão-de-obra muito mais numerosa, diversificada e geograficamente distribuída, correspondente às numerosas fases de plantio, confecção e transporte das drogas, tudo evidentemente financiado por um influxo muito superior de dólares vindo dos principais mercados consumidores, enquanto os traficantes brasileiros são pagos em reais pelos compradores brasileiros.

Então, no Brasil, os narcotraficantes não dominam o país. Dominam as favelas. Já é uma desgraça, mas ao menos não é comparável a um país onde as quadrilhas possuem conexões com várias setores urbanos e rurais. Tampouco existem aqui estabelecimentos comerciais localizados em áreas "boas" das cidades pagando quantias a máfias, como acontece no sul da Itália; aqui, essa realidade ocorre somente nas favelas disputadas por narcotraficantes e milícias.

Mas temos em comum com o Equador a leniência da legislação criminal, que procura aliviar a superlotação das cadeias soltando os criminosos ao invés de construir mais cadeias, e tolera que elas sejam controladas pelas quadrilhas. Então, podemos não ser reféns do narcotráfico, menos mal. Mas somos reféns de todos os outros tipos de crime.

domingo, 6 de agosto de 2023

'Bukelismo', o futuro?

Chama a atenção o fenômeno Nayib Bukele, atual presidente de El Salvador, que conseguiu o prodígio de pôr fim ao reinado das gangues que aterrorizavam o país com sua política de encarceramento massivo em mega prisões que mandou construir. Como é sabido que o crime descontrolado tem sido o principal tormento da maioria dos países latino-americanos desde pelo menos duas gerações, não espanta que o chamado 'bukelismo' tenda a se espalhar pelos vizinhos, conforme apontado por este artigo da Folha de São Paulo.

Mas a 'bukelização' é o futuro, ou uma moda passageira? Uma resposta definitiva ao desafio da luta contra o crime, ou a nova cara do populismo de direita, na opinião das autoras do artigo?

Antes de prosseguir a análise, é preciso lembrar que Nayib Bukele não é apenas o idealizador de uma nova estratégia de combate às gangues, mas também de um novo estilo de presidente, "descolado", a ponto de ter recebido o duvidoso título de "ditador mais legal do mundo" - algo bem inusitado para quem está acostumado à feição típica do extremista de direita. Certo ou errado, Bukele desfruta de um índice de 90% de aprovação da parte da população, que finalmente vê os índices de criminalidade desabarem. Mas há quem desaprove a arbitrariedade com que milhares estão sendo encarcerados, e suspeita-se de que muitos são inocentes. É o que dizem.

Sem ter mais conhecimento do que se passa em El Salvador, passo direto para a pergunta que interessa: o Brasil também deve se 'bukelizar'?

É fato que o fenômeno da criminalidade, na época atual, não é mais a mesma coisa que havia no tempo em que nosso sistema judiciário foi erigido. Hoje é algo infinitamente mais organizado, armado e disseminado; os métodos antigos não funcionam mais, as prisões não mais neutralizam os criminosos, mas tornam-se quartéis-generais e criadouros de criminosos. Não obstante, um persistente bloqueio mental tem impedido os comentaristas de enxergar o óbvio desta situação, e continua-se a repetir receitas ultrapassadas, como penas alternativas e melhorias na educação. Esse argumento podia fazer sentido 80 anos atrás, quando boa parte dos jovens não tinham acesso à escola, cresciam analfabetos e viravam ladrões de galinha. Hoje a grande maioria dos delinquentes já passou por escolas, mas abandonou-a ao constatar que a carreira criminosa era mais promissora, ou pior ainda, não abandonou-a porque a têm como um espaço dominado, onde podem vender drogas e cooptar seus colegas. Contribui também para este bloqueio mental um cacoete ideológico, a leitura de Luta de Classes do fenômeno da criminalidade, bastante presente no imaginário dos militantes de esquerda, conforme pode ser visto em produções culturais como o filme Bacurau.

E a direita nacional? Aparentemente apóia a solução de Bukele. O ex-presidente Jair Bolsonaro já se manifestou favorável ao encarceramento massivo, e sobre a superlotação dos presídios, comentou: "prisão é que nem coração de mãe, sempre cabe mais um". Sim, caber, cabe. Mas faltou alguém dizer-lhe que prisões superlotadas invariavelmente terminam controladas pelas facções criminosas. Esse comentário mostra que Bolsonaro, na verdade, não é um bukelista, ou se pretende sê-lo, não o entende. O sucesso dos métodos de Bukele em El Salvador está condicionado à construção dos mega presídios, onde os detentos são efetivamente controlados pelos guardas e não se transformam em quartéis-generais das gangues, aqui chamadas de facções. Bolsonaro mostrou que ainda está imbuído da mentalidade do tempo dos militares, do Esquadrão da Morte e do "bandido bom é bandido morto", premissa simplória que ignora a psicologia do delinquente: o bandido em geral não teme a morte, pois a vê desde cedo, sabe que não vai viver muito, e por este motivo procura aproveitar a vida com destemor. O que o bandido de fato teme é a cana dura: ao invés de morrer, ter uma longa vida em um lugar onde não há grana, nem bebida, nem droga, nem mulher, nem nada daquilo que o motivou a enveredar pelo crime. O temor é tanto, que diante da perspectiva de um regime carcerário mais rigoroso, chegam a ter reações suicidas, como aquela ocorrida em 2006, que resultou em centenas de mortes e execuções.

Portanto, vejo isso como uma premissa sine qua non: o aumento da população carcerária é a única solução. Mais bandidos na prisão, menos bandidos nas ruas, simples assim. Apenas a prisão inibe o crime, não só por neutralizar o autor do crime enquanto este permanece encarcerado, mas também, e mais importante, por seu efeito de dissuasão: aquele garoto que estava pensando em entrar para uma quadrilha, ao ver o colega metido na cadeia e lá permanecendo longo tempo, vai pensar duas vezes. Evidentemente, não falta quem seja contra. Ouve-se muito: "o que inibe o crime não é o rigor da pena, mas a certeza da punição". Óbvio sofisma: tanto o rigor da pena quanto a certeza da punição inibem o crime, mas um não exclui o outro. Contudo, se há certeza da punição, mas a pena é branda, o bandido pode simplesmente colocar os pesos na balança, e concluir que cometer o crime compensa no fim das contas.

Desde que nosso Código Penal foi promulgado nos anos quarenta, todas as reformas feitas foram no sentido de torná-lo mais brando, e não mais rigoroso - multiplicaram-se as fórmulas de relaxamento do regime fechado, os benefícios a réus primários e menores de idade, as "saidinhas". Ao mesmo tempo em que esses abrandamentos se sucediam, o crime só fazia aumentar. Conhecendo as condições deploráveis de nossas prisões, não é difícil concluir que a brandura de nossa legislação não tem nenhum propósito humanista, mas é apenas um subterfúgio para aliviar a superlotação das cadeias: construir mais prisão custa dinheiro, abrir as portas da prisão e jogar os bandidos na rua sai de graça. É evidente que a reforma de nosso Código Penal, aumentando as penas, só pode ser feita se forem construídos mega presídios, tal como os de El Salvador. Mas qual político está disposto a subir ao palanque e prometer construir mais cadeia, ao invés de mais postos de saúde? Talvez os níveis da criminalidade aqui precisem subir a um ponto comparável ao de El Salvador.

No entanto, estou convicto de que em algum momento isso terá que acontecer. O risco, sem dúvida, é algum mandatário populista aproveitar-se para incrementar seu poder pessoal, interferindo na autonomia dos demais poderes da república, tal como fez Nayib Bukele. Mas El Salvador tem uma longa tradição caudilhista. Para haver sucesso, a reforma, aqui, terá que ser feita em moldes estritamente técnicos. Um bukelismo sem um Bukele, é o que eu espero.