domingo, 29 de setembro de 2024

O Rei não foi convidado

Recentemente chamou-me a atenção a notícia de que o rei Felipe VI da Espanha não foi convidado para a cerimônia de posse de Claudia Sheinbaum, a nova presidente do México. O motivo alegado foi que o monarca não respondeu a uma carta de López Obrador, o presidente atual, solicitando um pedido oficial de desculpas pelas atrocidades cometidas contra os povos ondígenas durante a colonização.

O pedido é pertinente, ninguém discorda de que as atrocidades foram cometidas. O que não entendo é por que pessoas com os sobrenomes Obrador e Sheinbaum fazem-se de porta-vozes de povos originários. Eles são um produto da colonização, sem ela sequer existiriam hoje, ou estariam em outro lugar. Se cabe um pedido de desculpas, podiam fazê-lo eles mesmos, sem recorrer ao rei.

Não é de hoje que povos sul-americanos sofrem dessa neurose: querem crer que suas nações já existiam antes da chegada dos europeus, que portanto não passariam de invasores estrangeiros que ali vieram saquear e massacrar os indígenas. Há uma óbvia crise de identidade. Embora descendentes dos tais europeus invasores, herdeiros e usufrutários de tudo de bom e de mal que estes deixaram, eles rejeitam essa identificação e identificam-se com povos originárioa, com os quais não têm nenhum parentesco. É também um sintoma depressivo: eles não sentem orgulho do que são, tampouco de sua origem, e querem culpar seus ancestrais pelos problemas atuais de seus países.

No fundo um orgulho pueril, facilmente explicado pela psicologia, mas que urde consequências mais danosas do que se supõe. Rejeitando sua herança, deserdam a si próprios em um contexto civilizacional, e buscam consolo em antigas e gloriosas civilizações dos povos que habitavam o continente - civilizações que até foram notáveis em seu tempo, mas que quase nada têm a ver com o mundo atual, exceto por comunidades isoladas e economicamente pouco relevantes, que praticam língua e costumes herdadas de seus ancestrais. Sem os referenciais da herança européia renegada, não é de espantar que exista nessa parte do mundo uma obsessão por buscar soluções políticas e econômicas exóticas, que só atrasam o desenvolvimento.

Essa ilusão autoimposta é em parte compreensível para povos como o mexicano, que efetivamente tiveram um passado glorioso com civilizações nativas avançadas, das quais ainda restam muitos descendentes. Menos razoável é que brasileiros endossem esse discurso. Nós náo fomos descobertos, fomos invadidos, bradaram muitos quando da comemoração dos 500 anos. Isso procede?

Não. O que havia aqui antes de 1500 não era o Brasil, mas uma região geográfica habitada por tribos seminômades que não falavam a mesma língua, não estavam unidas por uma federação nem tinham fronteiras delimitadas. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil passou a existir após a chegada dos portugueses. Considerar tal chegada uma "invasão" e um "saque" extrapola conceitos do presente para um passado onde estes não existiam: nenhuma fronteira foi violada porque fronteiras não haviam, nem os indígenas foram roubados porque tampouco conheciam a propriedade privada. Tanto não se sentiram invadidos, que o primeiro contato com a frota de Pedro Álvares Cabral foi amistoso. Ah, mas depois houve guerra, certo?

Sim. Mas não foi uma guerra movida por uma coalização de povos nativos contra um suposto invasor. Os indígenas foram ver o que queriam aqueles forasteiros. Descobriram que tinham coisas muito interessantes - objetos de metal - que davam em troca de uma madeira que havia ali, que não tinha valor para os locais. Algumas tribos se aliaram aos portugueses, outras aos franceses, que tinham os mesmos propósitos. As guerras entre índios e portugueses, portanto, foram um desdobramento do conflito destes com os franceses.

Devíamos nos livrar de vez desse discurso autoindulgente. Os portugueses não roubavam o nosso ouro, os portugueses cobravam impostos. Nenhum governo se sustenta sem cobrança de impostos, e olha que não eram tão altos: era o "quinto", ou 20%, sendo que a carga tributária atual já se aproxima dos 40%. Todos nós somos descendentes, em todo ou em parte, desses "invasores", e usufruimos da cultura por eles deixada. Exigir desculpas deles é um teatrinho bobo, e sobretudo hipócrita. Não existiríamos sem eles. Se a colonização européia, como dizem, reduz-se a saques e atrocidades, desses saques e atrocidades não fomos vítimas. Fomos sócios.

domingo, 8 de setembro de 2024

Saudades da Ditadura

Um fenômeno inquietante que eu tenho observado são pessoas que afirmam ter nostalgia dos tempos da ditadura, um período idealizado como de valores corretos, quando lugar de vagabundo era na cadeia e o país crescia. Nada tão estranho, esse fenômeno é conhecido em épocas de desalento da população. Mas um vídeo que descobri me deixou bem estarrecido.

Feito em 1970, mostra um desfile de formatura da Guarda Rural Indígena, milícia constituída por índios de diversas etnias, com a finalidade de ser a polícia nos territórios indígenas, bem de acordo com o espírito da época. Ou talvez de acordo demais. Em meio à parada de índios uniformizados mostrando as técnicas aprendidas na escola da polícia, surge um homem pendurado em um pau-de-arara, conduzido por dois homens, que seguram um de cada lado.

É algo absolutamente inusitado. O regime jamais reconheceu a existência de torturas, e agora aqueles cadetes não só a reconhecem, como a exibem com orgulho diante de um palanque repleto de autoridades, e na presença de repórteres. Quem teve aquela ideia? Quem permitiu aquilo, se é que alguém permitiu? Nunca saberemos, mas a impressão que eu tenho é que o próprio absurdo da imagem deixou as testemunhas sem ação, e ninguém se lembrou de mandar destruir aquela prova da existência da tortura no país, que foi guardada pelo cinegrafista em uma caixa ardilosamente marcada com a sigla "arara". Na aparência referia-se à etnia indígena de mesmo nome, mas o cinegrafista tinha a esperança de que um dia aquele material seria encontrado, e o verdadeiro significado daquele "arara" seria conhecido. O que efetivamente aconteceu.

Mas se em 1970 aquelas pessoas não tiveram escrúpulo de exibir técnicas de tortura, diversos comentaristas do vídeo tampouco tiveram escrúpulo de declarar seu apoio à ditadura.

Época em que bandido e vagabundo realmente se davam mal. E quem andava na linha se dava muito bem, em um país mais próspero e seguro.
Pelo menos tínhamos um governo e um oriente para seguir, hoje não temos rumo nenhum, hoje vivemos com um inimigo chamado governo, com uma máquina pública inchada, altos salários para magistrados, políticos e etc. Para o trabalhador só miséria e resto.
Época boa , só fala mal dessa época quem era contra o governo ou fazia coisas erradas.
Volta logo ditadura ! Eu não sou subversivo e nem comunista.
Só sofria vagabundo cidadão era respeitado

Mas a ditadura teve um saldo positivo, ou ao menos foi necessária na época?

O recentemente falecido ex-ministro Delfim Netto afirmou que sim, em uma entrevista. Signatário do AI-5, declarou ao presidente Costa e Silva:

"Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez"

Penso que o discurso foi mera sabujice, mesmo porque a área de Delfim não era a política, e sim a economia. Mas chama a atenção um pensamento recorrente à época: as mudanças "são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez". Ou seja, a ditadura favorecia o desenvolvimento. Era preciso "fazer o bolo crescer" antes de dividi-lo, conforme se dizia. Concluído o desenvolvimento, poderia-se até implantar a democracia.

Quando João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura, entregou o poder, o país estava em recessão e a inflação disparava. Aparentemente, o AI-5 não incrementou o desenvolvimento. O desastre econômico da "década perdida" pôs fim à crença de que os militares seriam governantes mais competentes que os civis, e até recentemente ninguém clamou a volta dos militares ao poder.

Mas já se passou tempo suficiente para que o período dos militares se incorporasse à lenda.