A recente morte do dançarino do morro do Pavão-Pavãozinho, ao que tudo indica assassinado por policiais, levantou mais uma vez as diatribes contra as UPP´s nas mídias virtuais. Acusam as UPP´s, além de cometerem abusos, de não estarem cumprindo seu suposto papel "social":
"...é que a contrapartida em aumento da oferta de serviços e infraestrutura para as áreas pacificadas não acontece no ritmo necessário, as novas vagas em creches e escolas, as novas unidades de saúde, as obras de saneamento e mobilidade que deveriam acompanhar as UPPs, ainda estão no papel"
" A violência do soldado nas vielas reflete não seu treinamento na corporação, mas o discurso virulento de extrema direita e discriminatório contra pobres e favelados, amplamente difundido na mídia e a política ?higienista? de ?limpeza urbana? para os grandes eventos de nossos governantes, bem como a falta de disposição de negociar dos mesmos com os movimentos sociais e a truculência com que trataram as manifestações populares"
A discussão completa pode ser encontrada no Centro de Mídia Independente:
http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2014/04/530956.shtml
Deixo aqui minha opinião:
UPP´s não são solução mágica, mas também é sandice afirmar que são inúteis. Se fossem, não haveria tanta gente fazendo campanha contra.
O caso é que as UPP´s se tornaram peça de propaganda eleitoral. É nesse ponto que entra um velho equívoco mais uma vez endossado pelo autor do post. É claro que essas obras são necessárias. Só que isso tudo não têm nada a ver com a violência e o crime. Julgar o contrário revela uma insistência, ou obsessão, em ver no crime um ato político: os favelados cometem crimes porque estão descontentes com a falta de creches, de saneamento de transportes; se o governo instalasse manilhas de esgoto e abrisse mais vagas em creches, os favelados supostamente deixariam de assaltar e de traficar drogas...
É nesse contexto que a violência policial se mistura ao espetaculoso: as favelas são servidas por cintilantes teleféricos. Qualquer um aqui sabe que teleféricos são para turismo, e não para transporte de massa; levam poucos passageiros e sua manutenção é cara e complicada. Mas são mais vistosos do que creches, sem dúvida...
Mas o problema, como eu já afirmei, é que as UPP´s se tornaram peça de propaganda eleitoral, então o governo não pode voltar atrás, ou ficaria desmoralizado. Só pode ir adiante. Fazer o que, então? Impingir à força policial um comportamento ético irretocável e um respeito absoluto aos direitos humanos, como sugeriu o autor do post? Todos sabem que nossa polícia não é assim, e uma tal lavagem cerebral de uma hora para outra é coisa do reino da fantasia. Outro equívoco repetido pelo autor do post é afirmar que a polícia age assim porque reflete o discurso de extrema direita discriminatório e higienista de nossa elite dominante. Isso é bobagem. O nosso policial vem do mesmo ambiente pobre povoado pelos marginais que combate, ele não tem nenhum motivo psicológico para se identificar com uma elite rica que nutre preconceitos contra os pobres. Veja o caso recente o dançarino assassinado: está ficando claro que tudo se originou de uma querela pessoal entre a vítima e um policial da UPP, por causa de uma motocicleta. A polícia age dessa forma por motivos pessoais, ela não está a serviço de nenhuma burguesia, e é tão bruta e ignorante quanto a maioria dos favelados.
Se as UPP´s estão brutalizando a população das favelas, isso, grosso modo, quer dizer que a polícia está trabalhando. Ela não sabe trabalhar de outra maneira. E está incomodando, sim, a inocentes, mas também a culpados. Retirar as UPP´s dos morros só fará voltar as favelas ao controle das milícias, que fazem exatamente o que as UPP´s estão fazendo, mas com duas diferenças: violência muito maior e cobertura da mídia muito menor. Antes, só víamos os cadáveres calcinados nos lixões. Agora, pelo menos, os mortos têm nomes.
quarta-feira, 23 de abril de 2014
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Morreu, virou santo
Está sendo muito comentada a morte recente do escritor Gabriel Garcia Marquez, velho ídolo das esquerdas latino-americanas. É sempre assim: morreu, virou santo. Mas esse já era santo em vida. Era prolixo e tinha um estilo hermético, pouco inteligível, para não dizer incrivelmente chato. Mas como era de esquerda, não podemos dizer isso: se não compreendemos o que ele escrevia, então os burros somos nós, e não ele.
Eu me lembro de uma história que era muito contada nos anos sessenta, quando o pessoal engajado se reunia no cinema Paissandu para ver filmes "cabeça". Em determinada sessão de um filme do Godard, o projetista se equivocou e trocou os rolos do filme, fazendo a história ficar toda destrambelhada, com personagens que já tinham morrido reaparecendo, etc. Pois o pessoal não só não reparou, como ainda fez toda uma análise em cima da suposta narrativa não-linear em flashback do mestre...
Eu sempre achei que essa história era uma piada, mas quanto mais conheço os intelectuais esquerdistas, mais me convenço de que é verdade.
Eu me lembro de uma história que era muito contada nos anos sessenta, quando o pessoal engajado se reunia no cinema Paissandu para ver filmes "cabeça". Em determinada sessão de um filme do Godard, o projetista se equivocou e trocou os rolos do filme, fazendo a história ficar toda destrambelhada, com personagens que já tinham morrido reaparecendo, etc. Pois o pessoal não só não reparou, como ainda fez toda uma análise em cima da suposta narrativa não-linear em flashback do mestre...
Eu sempre achei que essa história era uma piada, mas quanto mais conheço os intelectuais esquerdistas, mais me convenço de que é verdade.
domingo, 13 de abril de 2014
O Balanço de 1964
Passada a onda de revisionismo dos cinquenta anos do
movimento de1964, que uns chamam de golpe e outros de revolução, chamou-me a
atenção, além da própria intensidade das discussões, a repetição de um
sem-número de falácias acerca do evento, as quais tenho ouvido desde muito,
tanto da turma dos apoiadores quanto da turma dos detratores. Agora que o
bate-boca finalmente está esfriando, é um bom momento para enumera-las e
decifra-las uma a uma. Vamos lá!
1)
O movimento foi fomentado pelos EUA.
Todos sabem muito bem que nos tempos da guerra fria, tanto
os EUA quanto a ex-URSS e seus satélites intervinham ostensivamente em todos os
lugares onde houvesse um movimento comunista efetivo ou potencial. No Brasil
não foi diferente. É perfeitamente sabido que os EUA injetaram muito dinheiro
nos partidos e organizações anti-Goulart. Mas o que até hoje causa realmente
frisson na galera é a Operação Brother Sam, o envio da 4ª frota americana para
apoiar os revoltosos. Fico impressionado como tantos a denunciam à boca pequena,
como se tratasse de um segredo sujo. Mas eu me lembro muito bem: após 12 anos,
em obediência ao regulamento da CIA, o documento foi desclassificado e
publicado na imprensa. Foi em 1976. E saiu tudo lá: a 4ª frota americana fez um
passeio, e no quinto dia, sem haver sequer chegado perto da costa brasileira,
fez meia-volta e retornou, pois nenhum apoio era mais necessário. Estava
inicialmente autorizada a somente enviar combustível aos revoltosos. O que
aconteceria depois, caso Goulart resistisse? Haveria um desembarque? Bom, isso
já é futurologia.
2)
Os comunistas estavam prestes a tomar o poder.
Não estavam, e isso ficou patente na ausência total de
resistência, quando se dizia que Goulart tinha um formidável “dispositivo
militar”. O poder dos comunistas foi grandemente superestimado, tanto por seus
inimigos, o que era do interesse dos mesmos, mas também pelos próprios
comunistas, o que foi desastroso para eles. Exatamente como já havia sido em
1935. Dizia-se que Goulart estava cercado de comunistas. Na realidade, os
comunistas que cercavam Goulart eram os mesmos que antes cercaram Vargas e
Kubitschek, a diferença foi que Vargas e Kubitschek puseram-se os comunistas a
seu serviço, enquanto Goulart foi posto a serviço dos comunistas.
3)
Não havia guerrilha em 1964, e esta só surgiu
depois do AI-5, como resistência à ditadura.
Muita gente acreditou isso, mas foi o insuspeito Jacob
Gorender quem tratou de desmenti-lo em definitivo, em seu clássico Combate Nas
Trevas: os primeiros grupos das Ligas Camponesas foram enviados para fazer
curso de guerrilha em 1962, dois anos antes do golpe. É curioso afirmar que os
guerrilheiros pós-AI-5 tinham como objetivo restabelecer a democracia, pois
nenhum manifesto lançado por eles exigia a restauração da constituição de 1946
ou a volta do ex-presidente Goulart. Mesmo porque, na retórica dos
guerrilheiros, o regime que havia aqui antes de 1964 não era democrático, mas
tratava-se de uma “democracia burguesa” que devia ser derrubada e substituída
por conselhos populares. Dizer como seria o regime instalado pelos
guerrilheiros caso fossem vitoriosos é futurologia, mas tudo indica que seria
inspirado pelo modelo cubano, que inspirava dez entre dez revolucionários
sul-americanos na época. A esquerda só conformou-se à dita democracia burguesa
após a anistia.
4)
Os revolucionários de 1964 não queriam o poder,
mas apenas a restauração da ordem.
É mentira. Havia uma conspiração articulada desde a época do
suicídio de Vargas, e esse esquema reunia essencialmente políticos udenistas
com militares da ESG. Havia o consenso de que, pela via eleitoral, eles não
chegariam ao poder, então aguardavam uma revolução providencial. Antes já
haviam tentado impedir a posse de Juscelino e do próprio Goulart. Como se sabe,
as coisas não saíram bem como planejado, e a maior parte dos conspiradores da
época foi expurgada no momento em que supunham estar chegando ao poder.
5)
O dito Milagre Brasileiro foi uma época de
extremo sofrimento para os trabalhadores, pois foi conseguido à custa da
concentração de renda.
É uma interpretação maliciosa da realidade econômica e
social da época, que procura passar a ideia de que os mais ricos enriqueceram à
custa de empobrecer os mais pobres, como se estivessem subtraindo a renda
destes. Houve de fato um aumento na concentração de renda. Mas a concentração
de renda é nada mais que uma estatística que informa qual percentual da
população detém qual percentual da renda nacional. A porção mais rica prosperou
mais rápido que a porção mais pobre, daí haver aumentado sua participação na
renda, em termos relativos. Mas em termos absolutos, tanto a renda dos mais
pobres quanto a renda dos mais ricos subiu, e para quem é pobre, evidentemente
o que importa não é o relativo, mas o absoluto. A prova disto foi a notória
ausência de elementos das classes populares nos movimentos guerrilheiros, que
contavam quase que exclusivamente com intelectuais, egressos do movimento
estudantil, ex-militares e religiosos. Por este motivo mesmo os grupos
guerrilheiros foram incipientes, e a própria dispersão das siglas – VPR, PCR,
VAR, COLINA, MR-8, PCO, etc. - é uma evidência disto.
6)
Os governos militares foram entreguistas e
submissos aos EUA
Uns mais, outros menos. De maneira geral, os militares deram
prosseguimento ao modelo do nacional-estatismo que vinha desde os anos trinta,
que preconizava forte presença do Estado na economia. Durante os quatro governos
militares, a aplicação deste modelo oscilou entre sua vertente nacionalista
(Vargas, Geisel) e sua vertente dita entreguista (Kubitschek, Castelo).
7)
O regime militar introduziu a tortura no Brasil
Já havia tortura antes, e continuou a existir depois. Mas
era tortura a presos comuns, marginaizinhos pé-rapados, e esse fato não
despertava comoção. O choque causado pela tortura durante o regime militar
deveu-se sobretudo ao fato desta ser aplicada a jovens da classe média,
indivíduos que, de acordo com a crença geral, não deveriam sofrer este
tratamento.
8)
Havia menos corrupção / Havia mais corrupção na
época
Os defensores do regime de 1964 afirmam que havia menos
corrupção naquele tempo, e os detratores afirmam que havia muito mais, mas a
censura não deixava a população saber. É evidente que havia corrupção naquele
tempo, mas não é razoável supor que algum grande escândalo tenha permanecido
oculto até hoje, tantas décadas após o fim da censura. A verdade é que a
própria estrutura autoritária do regime tornava desnecessário maiores barganhas
e compras de voto de parlamentares.sábado, 5 de abril de 2014
Fascismo à brasileira?
Comentando o texto abaixo postado, que me foi enviado por um correspondente, achei que tinha altos e baixos. O autor tem conhecimento exato de alguns fatos históricos referentes ao fascismo, mas insiste em encaixá-los nos chavões mais recorrentes do momento.
Em primeiro lugar, eu concordo que no momento atual, no Brasil, está havendo uma certa aproximação, fenômeno aliás sem precedentes na história recente, de parte das classes média e alta com ideais semelhantes aos que formaram o caldeirão social do fascismo no início do século 20. Isso é notado no aplauso recebido por certar produções como o Tropa de Elite, e no aplauso recebido por certos episódios da vida real, como a ação dos "vigilantes" contra os pivetes e os comentários da Rachel Sheherazade. Vou retomar este tema mais adiante. Primeiro vou falar das colocações que achei errôneas.
Não concordo que historicamente a adesão inicial ao fascismo tenha sido um fenômeno típico das classes dominantes desesperadas e das classes médias empobrecidas. Isso está inclusive em contradição com outras colocações do autor do texto, pois no momento atual, as classes dominantes NÃO estão desesperadas e as classes médias NÃO estão empobrecidas. Quem conhece a História sabe que o fascismo surgiu nas massas e não nas elites, como um contraponto ao comunismo, tanto o primeiro quanto o segundo derivados do positivismo do século 19, que por sua vez foi a primeira doutrina de engenharia social da História. Fascismo e comunismo disputaram o mesmo público de operários, intelectuais e indivíduos desajustados de toda a ordem, enquanto as classes alta e média conservadoras permaneciam alinhadas ao que sobrara dos partidos liberais. O próprio autor do post reconhece isto sub-repticiamente ao comentar a ascensão do nazismo no início dos anos trinta, quando houve um enorme ganho de votos para o partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Esta virada ocorreu porque os eleitores comunistas começaram a migrar em massa para o partido nazista, desequilibrando a balança e tornando o partido social-democrata minoritário. A adesão das classes alta e média se deu posteriormente, uma vez que esses indivíduos constataram a falência dos partidos liberais, e de fato preferiam o fascismo ao comunismo. Isto porque o fascismo, ao menos, não abolia formalmente a propriedade privada dos meios de produção, embora invertesse a relação antes prevalente entre política e capital: nos antigos regimes liberais, os burgueses comandavam o governo; sob o regime fascista, é o governo que comanda a burguesia (na realidade, o fascismo cria uma burguesia para seu uso, favorecendo os empresários amigos e enriquecendo os seus próceres, ao mesmo tempo em que persegue e expropria os burgueses não cooptados).
Mas concordo com o autor quando ele lembra que a adesão ao fascismo da parte de indivíduos antes não seduzidos por esta doutrina é causada pelo desencanto com a situação presente e a constatação de que os governos em exercício são incapazes de superar as crises. Isso está efetivamente ocorrendo no Brasil. A classe média tinha grandes esperanças no PT, julgando que este partido moralizaria a política brasileira, e experimentou grande desilusão ao ver o PT protagonizar escândalos de corrupção e aliar-se a políticos notoriamente reacionários e corruptos. Decepcionou-se igualmente ao ver que o PT não dava prioridade à educação nem à segurança pública, ao contrário, cortejava ignorantes e marginais, estes apresentados como emblemáticos da autenticidade popular contraposta à elite arrogante supostamente encarnada pela classe média. Sobretudo o problema da segurança é especialmente sensível para a classe média, assustada pelo crime e cansada de ver as ilegalidades cometidas pelos favelados sendo toleradas por governantes e urbanistas. São esta as efetivas causas da aproximação da classe média com ideologias de ruptura, e não o sentimento pueril de "declassément" só porque os pobres agora são vistos circulando em ambientes antes exclusivos aos ricos.
Em primeiro lugar, eu concordo que no momento atual, no Brasil, está havendo uma certa aproximação, fenômeno aliás sem precedentes na história recente, de parte das classes média e alta com ideais semelhantes aos que formaram o caldeirão social do fascismo no início do século 20. Isso é notado no aplauso recebido por certar produções como o Tropa de Elite, e no aplauso recebido por certos episódios da vida real, como a ação dos "vigilantes" contra os pivetes e os comentários da Rachel Sheherazade. Vou retomar este tema mais adiante. Primeiro vou falar das colocações que achei errôneas.
Não concordo que historicamente a adesão inicial ao fascismo tenha sido um fenômeno típico das classes dominantes desesperadas e das classes médias empobrecidas. Isso está inclusive em contradição com outras colocações do autor do texto, pois no momento atual, as classes dominantes NÃO estão desesperadas e as classes médias NÃO estão empobrecidas. Quem conhece a História sabe que o fascismo surgiu nas massas e não nas elites, como um contraponto ao comunismo, tanto o primeiro quanto o segundo derivados do positivismo do século 19, que por sua vez foi a primeira doutrina de engenharia social da História. Fascismo e comunismo disputaram o mesmo público de operários, intelectuais e indivíduos desajustados de toda a ordem, enquanto as classes alta e média conservadoras permaneciam alinhadas ao que sobrara dos partidos liberais. O próprio autor do post reconhece isto sub-repticiamente ao comentar a ascensão do nazismo no início dos anos trinta, quando houve um enorme ganho de votos para o partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Esta virada ocorreu porque os eleitores comunistas começaram a migrar em massa para o partido nazista, desequilibrando a balança e tornando o partido social-democrata minoritário. A adesão das classes alta e média se deu posteriormente, uma vez que esses indivíduos constataram a falência dos partidos liberais, e de fato preferiam o fascismo ao comunismo. Isto porque o fascismo, ao menos, não abolia formalmente a propriedade privada dos meios de produção, embora invertesse a relação antes prevalente entre política e capital: nos antigos regimes liberais, os burgueses comandavam o governo; sob o regime fascista, é o governo que comanda a burguesia (na realidade, o fascismo cria uma burguesia para seu uso, favorecendo os empresários amigos e enriquecendo os seus próceres, ao mesmo tempo em que persegue e expropria os burgueses não cooptados).
Mas concordo com o autor quando ele lembra que a adesão ao fascismo da parte de indivíduos antes não seduzidos por esta doutrina é causada pelo desencanto com a situação presente e a constatação de que os governos em exercício são incapazes de superar as crises. Isso está efetivamente ocorrendo no Brasil. A classe média tinha grandes esperanças no PT, julgando que este partido moralizaria a política brasileira, e experimentou grande desilusão ao ver o PT protagonizar escândalos de corrupção e aliar-se a políticos notoriamente reacionários e corruptos. Decepcionou-se igualmente ao ver que o PT não dava prioridade à educação nem à segurança pública, ao contrário, cortejava ignorantes e marginais, estes apresentados como emblemáticos da autenticidade popular contraposta à elite arrogante supostamente encarnada pela classe média. Sobretudo o problema da segurança é especialmente sensível para a classe média, assustada pelo crime e cansada de ver as ilegalidades cometidas pelos favelados sendo toleradas por governantes e urbanistas. São esta as efetivas causas da aproximação da classe média com ideologias de ruptura, e não o sentimento pueril de "declassément" só porque os pobres agora são vistos circulando em ambientes antes exclusivos aos ricos.
Texto sobre o fascismo
Volta e meia volta a onda de que o Brasil estaria entrando em um processo de "fascistização", seja lá o que for o que isto quer dizer. Um correspondente me enviou o texto abaixo, que reproduzo antes de comentá-lo na postagem acima:
Fascismo à Brasileira
Parece
crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes setores da classe
média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes aos que formaram o
caldeirão social do fascismo
Fascismo à Brasileira
Parece
crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes setores da classe
média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes aos que formaram o
caldeirão social do fascismo
Historicamente
a adesão inicial ao fascismo foi um fenômeno típico das classes dominantes
desesperadas e das classes médias empobrecidas e apenas pontualmente conquistou
os estratos mais baixos da sociedade, ideologicamente dominados pelo
trabalhismo social-democrata ou pelo comunismo. Nos mais diversos cantos do
mundo, dos nazistas na Alemanha e camisas-negras na Itália, aos integralistas
brasileiros e caudilhistas espanhóis seguidores de Franco, as classes médias,
empobrecidas pelas sucessivas crises do pós-guerra (1921 e especialmente 1929),
formaram o núcleo duro dos movimentos fascistas.
Esse
alinhamento ao fascismo teve como fundo principal uma profunda descrença na
política, no jogo de alianças e negociatas da democracia liberal e na sua
incapacidade de solucionar as crises agudas que seguiam ao longo dos anos 1910,
20 e 30. Enquanto as democracias liberais estavam estáveis e em situação
econômica favorável, com certo nível de emprego e renda, os movimentos
fascistas foram minguados e pontuais, muito fracos em termos de adesão se
comparados aos movimentos comunistas da mesma época. Porém, uma vez que a
democracia liberal e sua ortodoxia econômica mostraram uma gritante fraqueza e
falta de decisão diante do aprofundamento da crise econômica nos anos 1920 e 30, a população se
radicalizou e clamou por mudanças e ação.
Lembremos
que, quando os nazistas foram eleitos em 1932, a votação foi
bastante radical se comparada aos pleitos anteriores; 85% dos votos dos
eleitores alemães foram para partidos até então considerados mais radicais, a
saber, Socialistas (social-democracia), Comunistas e Nazistas
(nacional-socialistas), os dois primeiros à esquerda e o último à direita. Os
conservadores ortodoxos, anteriormente no poder, estavam perdidos em seu
continuísmo e indecisão, sem saber o que fazer da economia e às vezes até
piorando a situação, como foi o caso da Áustria até 1938, completamente
estagnada e sem soluções para sair da crise e do desemprego, refém da ortodoxia
de pensadores da escola austríaca, tornando-se terreno fértil para o
radicalismo nazista (que havia fracassado em 1934).
Além
disso, o fascismo se apresentava como profundamente anticomunista, o que, do
ponto de vista das classes dominantes mais abastadas e classes médias mais
estáveis (proprietárias) menos afetadas pelas crises, era uma salvaguarda
ideológica, pois o “Perigo Vermelho”, isto é, o medo de que os comunistas
poderiam de fato tomar o poder, era um temor bastante real que a democracia
liberal parecia incapaz de “resolver” pelos seus tradicionais métodos,
especialmente após a crise de 1929. O fascismo desta maneira se apresentou como
último refúgio dos conservadores (sejam de classe média ou da elite) contra o
socialismo. Os intelectuais que influenciavam os setores sociais menos
simpáticos ao fascismo, o viam como um mal menor “temporário” para proteger a
“boa sociedade” das “barbáries socialistas”, como o guru liberal Ludwig von
Mises colocou, reconhecendo a fraqueza da democracia liberal face ao “problema
comunista”:
Não
pode ser negado que o Fascismo e movimentos similares que miram no
estabelecimento de ditaduras estão cheios das melhores intenções e que suas
intervenções, no momento, salvaram a civilização européia. O mérito que o
Fascismo ganhou por isso viverá eternamente na história. Mas apesar de sua
política ter trazido salvação para o momento, não é do tipo que pode trazer
sucesso contínuo. Fascismo é uma mudança de emergência. Ver como algo mais que
isso, seria um erro fatal. (L. von Mises, Liberalism, 1985[1927], Cap.
1, p. 47)
Além
da descrença na política tradicional e do temor do perigo vermelho num cenário
de crise, houve ainda uma razão fundamental para as classes médias adentrarem
as fileiras do fascismo: o medo do empobrecimento e a perda do status social.
Esse
sentimento – chamado de declassemént ou declassê no
aportuguesado, algo como ”deixar de ser alguém de classe” – remetia ao medo de
se proletarizar e viver a vida miserável que os trabalhadores, maior parte da
população, viviam naquela época. Geralmente associava-se ao receio de que o
prestígio social ou o reconhecimento social por sua posição econômica
esmorecessem, mesmo para pequenos proprietários e profissionais liberais sem
títulos de nobreza (ver Norbet Elias, Os Alemães). Esse medo entra ainda
no contexto de uma evidente rejeição republicana, uma reação conservadora do etos
nobiliárquico que dominava as classes altas e parte das classes médias urbanas
nos países fascistas, à consolidação dos ideais liberais (mais igualitários) na
estrutura social de poder e de privilégios, isto é, na tradição social
aristocrática. Não foi por acaso que o fascismo foi uma força política
exatamente onde os ideais liberais jamais haviam se arraigado, como Itália, Espanha,
Portugal, Alemanha e Brasil.
Por
fim, cumpre lembrar que os fascistas apelam à violência como forma de ação
política. Como disse Mussolini: “Apenas a guerra eleva a energia humana a sua
mais alta tensão e coloca o selo de nobreza nas pessoas que têm a coragem de
fazê-la” (Doutrina do Fascismo, 1932, p. 7). A perseguição sem
julgamento, campos de trabalho e autoritarismo não só vieram na prática muito
antes do genocídio e da guerra, mas também já estavam em suas palavras muito
antes de acontecerem. No discurso e na prática, a sociedade é (ou destina-se)
apenas para aqueles que o fascista identifica como adequados; há um evidente
elitismo e senso de pertencimento “correto” e “verdadeiro”, seja uma concepção
de nação ou de identidade de raça ou grupo. E essa identidade “verdadeira” será
estabelecida à força se preciso.
Mas
porque estamos falando disso?
Parece
crescente e cada vez mais evidente no Brasil que importantes setores da classe
média e classe alta simpatizam com ideais semelhantes aos que formaram o
caldeirão social do fascismo?
Vimos
em texto
recente que a sociedade brasileira, em particular a classe média
tradicional e a elite, carrega fortes sentimentos anti-republicanos (ou
anticonstitucionais), herdados de nossa sucessão de classes dominantes sem
conflito e mudança estrutural, sem qualquer alteração substancial de sua
posição material e política, perpetuando suas crenças e cultura de Antigo
Regime. Privilégios conquistados por herança ou “na amizade”, contatos
pessoais, indicações, nepotismos, fiscalização seletiva e personalista; são
todas marcas tradicionais de nossa cultura política. A lei aqui “não pega”, do
mesmo jeito que para nazistas a palavra pessoal era mais importante que a lei.
Há um paralelo assustador entre a teoria do fuhrerprinzip e a prática
da pequena autoridade coronelista, à revelia da lei escrita, presente no
Brasil.
Talvez
por isso, também tenhamos, como a base social do fascismo de antigamente, uma
profunda descrença na política e nos políticos. Enojada pelo jogo sujo da
política tradicional, das trocas de favores entre empresas e políticos, como o
caso do Trensalão ou entre políticos e políticos, como os casos dos mensalões
nos mais variados partidos, a classe média tradicional brasileira se ilude com
aventuras políticas onde a política parece ausente, como no governo
militar ou na tecnocracia de governos de técnicos administrativos neoliberais.
Ambos altamente políticos, com sua agenda definida, seus interesses de classe e
poder, igualmente corruptos e escusos, mas suficientemente mascarados em
discursos apolíticos e propaganda, seja pelo tecnicismo neoliberal ou pelo
nacionalismo vazio dos protofascistas de 1964, levando incautos e ingênuos a
segui-los como “nova política” messiânica que vai limpar tudo que havia de ruim
anteriormente
Por
sua vez, como terceiro ponto em comum, partes das classes médias tradicionais e
a elite tem um ódio encarnado de “comunistas”, e basta ler os “bastiões
intelectuais” da elite brasileira, como Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino
ou Olavo de Carvalho ou mesmo porta-vozes do soft power do
neoconservadorismo brasileiro, como Lobão e Rachel Sherazade. É curioso que o
mais radical deles, Olavo de Carvalho, enxergue “marxismo cultural” em gente
como George Soros (mega-especulador capitalista), associando-o ao movimento
comunista internacional para subjugar o mundo cristão ocidental. Esse argumento
em essência é basicamente o mesmo de Adolf Hitler: o marxismo e o capital
financeiro internacional estão combinados para destruir a nação alemã (Mein
Kampf, 2001[1925], p. 160, 176 e 181).
A
violência fascista, por sua vez, é apresentada na escalada de repressão
punitivista e repressora do Estado, apesar de – ainda – ser menos brutal que o
culto à guerra dos fascistas dos anos 1920 e 30. Antes restritos apenas aos
programas sensacionalistas de tv sobre violência urbana e aos apologistas da
ditadura como Jair Bolsonaro, o discurso violento proto-fascista “bandido bom é
bandido morto”, que clama por uma escalada de repressão punitiva, sai do campo
tradicionalmente duro da extrema direita e se alinha ao pensamento de
economistas liberais neoconservadores que consideram que “o criminoso faz um
cálculo antes de cometer seu crime, então é o caso de elevar constantemente o
preço do crime (penas intermináveis, assédio, execuções), na esperança de levar
aqueles que sentirem tentados à conclusão de que o crime já não compensa”
(Serge Hamili, 2013). Assim, a apologia repressora se alinha à lógica do
punitivismo mercantil de apologistas do mercado, mimetizando um Chile de
Pinochet onde um duríssimo estado repressor, anticomunista, está alinhado com o
discurso neoliberal mais radical.
Rachel
Sheherazade
E,
ainda, somam-se a isso tudo o classismo e o racismo elitista evidentes de nossa
“alta” sociedade. Da “gente diferenciada” que não pode frequentar Higienópolis,
passando pelo humor rasteiro de um Gentili, ou o explícito e constrangedor
classismo de Rachel
Sherazade, que se assemelha à “pioneira revolta” de Luiz Carlos Prates ao
constatar que “qualquer
miserável pode ter um carro”, culminando com o mais vergonhoso atraso de Rodrigo
Constantino em sua recente coluna, mostrando que nossos liberais estão mais
inspirados por Arthur de Gobineau e Herbert
Spencer do que Adam Smith ou Thomas Jefferson. A elite e a classe média tradicional
(que segue o etos da primeira), não têm mais vergonha de expor sua crença no
direito natural de governar e dominar os pobres, no “mandato histórico” da
aristocracia sobre a patuléia brasileira. O darwinismo social vai deixando o
submundo envergonhado da extrema direita para entrar nos nossos televisores
diariamente.
Assim,
com uma profunda descrença na política tradicional e no parlamento, somada a um
anti-republicanismo dos privilégios de classe e herança, temperados por um
anticomunismo irracional sob auspícios de um darwinismo social histórico e
latente, aliado a uma escalada punitivista alinhada a “ciência” econômica
neoliberal, temos uma receita perigosa para um neofascismo à brasileira. Porém,
antes que corramos para as montanhas, falta um elemento fundamental para que
esse caldeirão social desemboque em prática neofascista real: crise econômica
profunda.
Apesar
do terrorismo midiático, nossa sociedade não está em crise econômica grave que
justifique esta radicalização filo-fascista recente. Pela primeira vez em
décadas, o país vive certo otimismo econômico e, enquanto no final dos anos
1990, um em cada cinco brasileiros estava abaixo da linha da pobreza, hoje este
número é um em cada 11. A
Petrobrás não só não vai quebrar como captou bilhões recentemente. A classe
média nunca viajou, gastou no exterior e comprou tanto quanto hoje, nem mesmo
no auge insano do Real valendo 0,52 centavos de dólar. O otimismo
brasileiro está muito acima da média mundial, mesmo que abaixo das taxas
dos anos anteriores.
No
entanto, apesar de tudo isso, parte das antigas classes médias e elites
continuam se radicalizando à extrema direita, dando seguidos exemplos de
racismo, intolerância, elitismo, suporte ao punitivismo sanguinário das
polícias militares, aplaudindo a repressão a manifestações e indiferentes a
pobres sendo presos por serem pobres e negros em shopping centers. Isso tudo
com aquela saudade da ditadura permeando todo o discurso. Se não há o evidente declassmént,
o empobrecimento econômico, ou mesmo um medo real do mesmo, como explicar esta
radicalização protofascista?
Não
é possível que apenas o tradicional anti-republicanismo, o conservadorismo
anti-esquerdista e o senso de superioridade de nossas elites e classes médias
tradicionais sejam suficientes para esta radicalização, pois estes fatores já
existiam antes e não desencadeavam tamanha excrescência fascistóide pública.
Não.
O
Brasil vive um fenômeno estranho. As classes médias tradicionais e elite estão
gradualmente se radicalizando à extrema direita muito mais por uma sensação de declassmént
do que por uma proletarização de fato, causada por alguma crise econômica. Esta
sensação vem, não do empobrecimento das classes médias tradicionais (longe
disso), mas por uma ascensão econômica das classes historicamente subalternas.
Uma ascensão visível.
Seja
quando pobres compram carros com prestações a perder de vista; frequentam
universidades antes dominadas majoritariamente por ricos brancos; ou jovens
“diferenciados” e barulhentos frequentam shoppings de classe média, mesmo que
seja para olhar a “ostentação”; ou ainda famílias antes excluídas lotando
aeroportos para visitar parentes em toda parte.
Nossa
elite e antiga classe média cultivaram por tanto tempo a sua pretensa
superioridade cultural e evidente superioridade econômica, seu sangue-azul e
posição social histórica; a sua situação material foi por tanto tão sem
paralelo num dos mais desiguais países do mundo, que a mera percepção de
que um anteriormente pobre pode ter hábitos de consumo e culturais similares
aos dela, gera um asco e uma rejeição tremenda. Estes setores tradicionais, tão
conservadores que são, tão elitistas e mal acostumados que são, rejeitam em tal
grau as classes historicamente humilhadas e excluídas, “a gente diferenciada”
que deveria ter como destino
apenas à resignação subalterna (“o seu lugar”), que a ascensão destes
“inferiores” faz aflorar todo o ranço elitista que permanecia oculto ou
disfarçado em anti-esquerdismo ou em valores familiares conservadores. Não há
mais máscara, a elite e a classe média tradicional estão mais e mais fazendo
coro com os históricos setores neofascistas, racistas e pró-ditadura. Elas
temem não o seu empobrecimento de fato, mas a perda de sua posição social
histórica e, talvez no fundo, a antiga classe média teme constatar que sempre
foi pobre em relação à elite que bajula, e enquanto havia miseráveis a perder
de vista, sua impotência política e vazio social, eram ao menos suportáveis.
*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)
Texto
revisado por Carolina Dias
REFERÊNCIAS
GERAIS:
ELIAS,
Norbert. Os Alemães. Rio de Janeiro: Zahar, 1996
HAMILI,
Serge. O laissez faire é libertário?. IN: Le Monde Diplomatique Brasil, número
71, 2013.
HITLER,
Adolf. Mein Kampf. São Paulo: Centauro, 1925
HOBSBAWM,
Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Cia das Letras,1996
MISES, Ludwig von. Liberalism.Irvington.The
Foundation for Economic Education, 1985
MUSSOLINI, Benito. Doctrine of Fascism. Online World
Future Fund. 1932
POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. Porto: Portucalense, 1972
SCHMIT,
Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006
quinta-feira, 3 de abril de 2014
Em referência ao 31 de março...
Nestes 50 anos do golpe (ou revolução) de 1964, com tanto eco na mídia, na mídia e nos forums, tanto bate-boca e tão poucas conclusões, resolvi também dar meu pitaco. Aí ao lado está um novo ensaio, intitulado Golpe Ou Revolução, onde eu procuro sobretudo entender o que aconteceu naquele distante ano de 1964, sem repetir opiniões que já dei. Comentários serão bem-vindos. Grande abraço a todos!
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