Já escrevi aqui análises comparando a evolução dos EUA com a do Brasil, apontando as analogias do ponto de partida - o mesmo roteiro de descoberta, incorporação a um império europeu, povoamento, supressão de povos nativos, independência, escravidão e imigração - tentando explicar como ambos chegaram a um destino tão diferente. Sobre isso, não tenho muito mais a acrescentar. Mas recentemente fiquei surpreso ao ver que o mesmo questionamento foi feito por uma pesquisadora norte-americana, a historiadora Brodwyn Fischer, da Universidade de Chicago, que há mais de dez anos criou um curso batizado com um nome provocativo: Brazil, Another American History.
É citado o tipo de colonização - a portuguesa, implantada no Brasil, e a britânica nos EUA, cada uma imprimindo a suas colônias as características que suas metrópoles já possuíam. Até aqui nenhuma novidade. Mas a autora lança um conceito bem oportuno, que pode explicar porque há tanta dificuldade para visualizar sem isenção o que Brasil e EUA têm de semelhante e diferente. Ela denominou-o hiperrealismo, e definiu-o como a noção de algo que na verdade nunca existiu em lugar nenhum, mas que é aceito pelo senso comum, inclusive de pessoas bem instruídas.
Vejo aqui uma semelhança com o conceito de wishfull thinking, que tampouco possui tradução exata em português, e denota uma coisa que as pessoas "gostam de acreditar". A proliferação de ideias hiper-reais têm disseminado esquematismos pré-concebidos que aparentemente explicam os brasileiros e os americanos em seus atributos mais profundos, mas que não resistem à análise.
Começando pela já citada ideia hiper-real da colonização portuguesa concebida como brutal e malévola, e da colonização britânica como esclarecida e benévola. A História não confirma essa assertiva. Os britânicos também foram brutais com os povos nativos e os escravos. O motivo pela evolução dos dois países haver se desviado tanto não deve, portanto, ser buscado nas origens da escravidão, mas sim no que sucedeu depois: ao contrário dos EUA, a escravidão permaneceu entre nós informalmente, desde o tempo em que o tráfico foi formalmente proibido mas continuou clandestinamente. Desnecessário lembrar como a escravidão marcou todo o nosso futuro. A autora aponta a tendência brasileira de criar "poderes informais", que se sobrepõem à lei escrita, ao passo que nos EUA "fazemos questão de colocar na lei até as nossas brutalidades".
Por trás desses poderes informais, não temos dificuldade para enxergar um conceito que nos é bastante familiar: o famoso jeitinho brasileiro. Mas trata-se de outra notória ideia hiper-real. A autora aponta um aluno brasileiro, que afirma com patética descontração "oh, nós temos o jeitinho, nós somos diferentes" como se essa fosse uma explicação mágica para todas as diferenças entre brasileiros e norte-americanos. Entretanto, afirma a autora, o jeitinho também existe nos EUA, embora não com esse nome. "A diferença é muito mais da auto-percepção".
O caso é que, assumindo erroneamente o jeitinho como uma peculiaridade brasileira, nós nos apegamos a ele. Aí reside o encanto do hiperrealismo - é uma coisa nossa, assim é a nossa alma, rejeitá-lo é rejeitar a nós mesmos. Afastando-me agora da dissertação da professora, posso citar por minha conta mais algumas ideias hiper-reais. Uma bem popular é a noção do brasileiro homem cordial, lançada por Sérgio Buarque de Holanda, que já causou muita polêmica ao ser a cordialidade assumida como sinônimo de afabilidade. Na acepção do autor, referindo-se à origem do termo - cordial deriva de coração - ele quis dizer passionalismo, personalismo, irreverência em face de normas institucionais. Basicamente, o homem cordial age conforme a emoção, e não a razão.
Sérgio Buarque de Holanda vendeu o conceito como sendo a contribuição brasileira para a humanidade, e aí nasceu a ideia hiper-real. Mas qualquer indivíduo razoavelmente nem informado quanto ao mundo que o rodeia pode notar que as características do homem cordial, sobretudo a indistinção entre família e Estado, estão presentes em vários povos, em várias partes do mundo. Não é, de modo algum, uma peculiaridade brasileira. Ocorre em povos de distintas origens e culturas, mas que grosso modo, compartilham o status de serem subdesenvolvidos. A partir desta constatação, não há dificuldade em concluir que a "cordialidade" nada mais é do que o traço de uma organização social primeva, orientada ao clã familiar, ainda não entrada em formas mais complexas e abstratas como a Comunidade, a Corporação ou o Estado, menos ainda entrada no racionalismo científico. Sendo um sinal de atraso e ignorância, não deveria de modo algum ser percebida com carinho e orgulho. Mas assim funciona o hiperrealismo.
A questão racial é outro celeiro de ideias hiper-reais, tanto nutridas por brasileiros como por norte-americanos. São notórias as diferenças entre a percepção da raça e o racismo de lá para cá. Nos EUA, não houve miscigenação, e todo indivíduo com qualquer ancestralidade africana, por mínima que seja, é catalogado como negro. No Brasil houve miscigenação abundante, prova de que não existe o racismo entre nós. Sociólogos como Gilberto Freyre afirmaram a existência de um luso-tropicalismo, supostamente uma característica inata dos portugueses a se misturarem, por já estarem próximos da África e já existirem escravos africanos em Portugal. Para os britânicos e demais europeus do norte, tudo seria apenas produto de uma sensualidade desabrida característica dos povos sulistas - nós somos racistas, mas não somos devassos como eles, certo? No centro de tudo, o mito da terra abaixo do equador, habitada por índias nuas, onde "não existe pecado".
Mas faltou incluir na discussão um dado crucial: desde as primeiras levas de povoadores nos EUA, havia homens e mulheres. Nas primeiras décadas desde a descoberta do Brasil, só houve povoadores homens. Esses colonos tinham que ter esposas e filhos - é fácil entender que qualquer um que se estabelece em uma terra desconhecida e hostil, sente de imediato a necessidade de produzir descendentes, o mais rápido e no maior número possível, sem os quais não terá sequer como sustentar-se quando lhe faltarem forças para o trabalho. Eles escolhiam esposas índias porque não havia ali mulheres europeias, e também porque era necessário estabelecer boas relações com os índios, de quem dependiam para quase tudo. Enquanto isso Portugal, que chegou a ter 10% de sua população afro-descendente no século 16, viu esse percentual reduzir-se a quase zero nos séculos seguintes.
Não, os colonos portugueses não saíam por aqui estuprando índias, ou emprenhando-as e abandonando-as, como muitos imaginam; eles tinham relações estáveis com suas esposas índias, pois só relações estáveis podiam garantir o grande número de descendentes que necessitavam, além de precisarem do bom conceito de seus aliados índios. Pode ser também que a crença do colono português aproveitador e abandonador de filhos derive dos costumes dos índios, pelos quais as crianças só ficavam com os pais até certa idade, e depois eram criadas coletivamente pela tribo. Os colonos portugueses não vinham com o objetivo de satisfazer seu libido, mas de sobreviver.
Contudo, a imagem do Brasil como uma imensa senzala habitada por negras assanhadas e portugueses lúbricos viria a nos perseguir por muitos anos, também disseminada por romancistas e comentaristas. Mas a real matriz dos brasileiros miscigenados não foram os africanos, e sim os índios, que deram origem à massa dos caboclos, também conhecidos como mamelucos. Certamente muitas negras escravas foram estupradas por seus capatazes e senhores, tal como ocorreu em todos os lugares e épocas onde existiram senhores e escravos, mas é bastante primário assumir que todo um grupo étnico, conhecido como mulato, possa ser criado a partir de uma série de estupros. Mesmo porque o propósito do estupro não é produzir descendentes, embora isso possa acontecer. É preciso lembrar que os costumes da época eram tolerantes com o abuso sexual das escravas, mas não eram tolerantes com crianças bastardas e legítimas vivendo sob o mesmo teto. São abundantes os relatos de vinganças cruéis de esposas de fazendeiros contra suas amantes escravas. Ao que me parece, a maioria das crianças geradas pelo senhor eram abortadas, vendidas para outra fazenda ou feitas desaparecer de outra maneira.
Portanto, é outra ideia hiper-real essa de que havia grande miscigenação entre brancos e negros no Brasil colonial - a miscigenação que houve foi entre brancos e índias, no primeiro século de nossa história. O que aconteceu de fato foi que após a abolição, houve uma tendência dos escravos recém-libertos se unirem à massa de caboclos, que tinham uma condição social semelhante à deles. Por conseguinte, a maioria dos indivíduos apresentados hoje como mulatos não são uma pura mistura de brancos com negros, mas uma mistura de caboclos com negros - ou seja, há componentes brancos, índios e negros. Isso explica também porque os negros brasileiros são fisionomicamente tão diferentes dos negros norte-americanos, embora descendam das mesmas etnias.
Com essas informações rigorosamente históricas e verdadeiras, cai por terra o hiperrealismo do contraste entre o colono britânico puritano, que não abusava das negras mas era racista, e o colono português devasso, que abusava das negras mas não era racista. Mesmo porque a moral sexual católica não era mais liberal que a moral sexual protestante. Na esteira, caem também outras ideias hiper-reais, como a já arcaica noção da Democracia Racial, que chegou a ser bastante popular poucas décadas atrás, e que muitos atribuíam a Gilberto Freyre, embora essa palavra não constasse em nenhum escrito do autor. Hoje se sabe muito bem que o racismo sempre existiu no Brasil. Outra ideia hiper-real, essa mais moderna, é a que afirma que o racismo brasileiro seria igual ao racismo norte-americano, e que a maioria da população brasileira seria negra.
Trata-se do produto da influência de militantes do movimento negro norte-americano, nesse mundo cada vez mais globalizado e tendente a padronizar os discursos. A maioria da população brasileira só pode ser considerada negra se for chamado de negro qualquer indivíduo de pele mais ou menos escura, mesmo sem nenhuma ancestralidade africana. Nesse contexto, a própria noção de raça tem perdido o seu sentido original de característica genotípica, e ganha uma acepção ideológica: é negro todo aquele que não se considera branco e se considera discriminado em razão de sua raça.
Os norte-americanos, por sua vez, também são aferrados a antigas ideias hiper-reais. A principal delas, a meu ver, é a crença em seu exclusivismo. O histórico de fundação e colonização dos EUA seria único porque foi revestido de um significado místico: os peregrinos que ali vieram, fizeram-no movidos por uma crença religiosa. Isso pode ter sido verdade para os primeiros povoadores, mas até onde eu sei, a prosperidade dos EUA foi construída por imigrantes que, em sua maioria, não tinham um credo. O exclusivismo norte-americano também se refere à raça: as categorias "branco" e "negro" seriam exclusivas dos americanos natos. Por este motivo o conceito de "latino", que originalmente se referia a povos europeus que falam uma língua derivada do latim, foi recriado para adquirir uma conotação racial e referir-se unicamente a sul-americanos: um indivíduo originado da América Latina pode ter a raça que for, mas nunca é catalogado como branco ou negro, sempre como "latino".
Após remover o entulho das ideias hiper-reais, poderemos enfim chegar a conclusões mais precisas e menos imaginosas para explicar porque Brasil e EUA se tornaram tão diferentes. Por ora, o que todo o mundo sabe é o óbvio: que somos muito diferentes. O que não fica claro é que somos bem menos diferentes do que muitos sabem ou querem saber.