domingo, 27 de maio de 2018

O PT deu um tiro no pé?

Os historiadores do futuro terão dificuldades para explicar como um partido que 10 anos atrás tinha o apoio da grande maioria dos brasileiros, alianças com os partidos conservadores e governava em um cenário de paz política e desenvolvimento foi apeado do poder de forma tão inglória e com tão pouca resistência. Onde foi que o PT errou? Com uma queda tão fragorosa diante de inimigos tão pouco poderosos, não dá para evitar a suspeita de que o PT tenha dado um tiro no próprio pé. Vou tentar explicar, recapitulando os acontecimentos desde a primeira eleição de Lula em 2002.

Primeiro, é preciso separar o aparente do verdadeiro. Quem teve o apoio da grande maioria dos brasileiros não foi exatamente o PT, mas o presidente Lula durante seus mandatos. A bancada do PT no congresso sempre foi pequena, o que significa que o PT só poderia governar após hábil exercício de política. O que, conhecendo o Brasil com seus partidos fracos e políticos venais, não é tão difícil assim de fazer. Já dizia FHC, governar o Brasil é "fácil". Lula não teve problemas neste quesito.

Entretanto, o DNA do PT nunca foi a política, mas a revolução. É certo que esta veia revolucionária foi abandonada, mas o que está no DNA sempre aparece. E acredito que desde o início faltou ao PT aquilo que Lula teve de sobra: pragmatismo. Conforme eu já havia comentado no meu artigo O Bipartidarismo Abortado, parecia que o país ia entrar numa etapa de estabilidade política com um bipartidarismo PT e PSDB. Mas o alicerce necessário a todo bipartidarismo são aqueles protocolos mais ou menos ocultos entre os dois partidos que fingem digladiar-se, mas se acertam nos bastidores. O PT, ao contrário, sempre tratou o PSDB como inimigo figadal, esquecida a óbvia afinidade ideológica, e preferiu fazer acordos com os partidos mais conservadores do país, esquecido a óbvia falta de afinidade ideológica. Foi o primeiro erro.

Outra coisa que sempre notei, desde o início dos "bons anos petistas", foi uma arrogância que parecia destoar do idealismo original deste partido. O ponto de inflexão desta mudança foi aquele discurso da intelectual petista Marilena Chauí, eu odeio a classe média, assistido por um Lula constrangido. Tendo conquistado o eleitorado dos estratos sociais mais baixos e numerosos do país, o PT deliberou voltar-se ostensivamente contra a classe média, uma óbvia contradição em um momento em que o presidente Lula jactava-se de haver incluído milhões de cidadãos na classe média. E no entanto, o suporte original do PT em seu surgimento foi a classe média politizada, em uma época em que o eleitorado pobre ainda estava preso a antigos caciques da política. Esse eleitorado pobre é por essência não politizado, e dá o voto a quem esteja no poder, e portanto tenha a chave do cofre. Se o PT contava com o apoio destes quando se viu acossado por seus inimigos, frustrou-se, e as passeatas contra Dilma foram engrossadas por membros de uma classe média que devolveu o desprezo que o PT passou a lhe dedicar.

Em suma, o PT agiu como se tivesse um poder que na verdade não tinha, e isso ficou evidente com Dilma Rousseff. O autoritarismo e os acessos de raiva da presidente no trato com seus assessores incorporaram-se ao folclore, não sei o quanto é verdade, mas é notório que ela não tinha a articulação política de Lula, e na verdade dispensava qualquer articulação, como se não precisasse do apoio de outros para governar. Meu diagnóstico é o seguinte: o DNA revolucionário do PT acabou por prevalecer sobre o pragmatismo de Lula. Isso ficou evidente na pessoa de Dilma Rousseff, cuja formação não foi a de um político, mas a de um revolucionário. Ora, os grupos revolucionários são organizados militarmente, com líderes que comandam e subordinados que obedecem, e uma vez conquistado o poder, o modo de ação de seus próceres não é o de um negociador no parlamento, mas o de um burocrata em seu gabinete. Foi assim que Dilma conduziu-se, com os resultados que conhecemos.

O PT desperdiçou a chance que teve ao agir com destemor ignorando a fragilidade das bases que o sustinham, praticou a corrupção certo de uma impunidade que não se concretizou, hostilizou a classe média certo de que os pobres viriam em seu apoio, o que não aconteceu. Resta saber se no futuro este DNA revolucionário continuará a ser dominante, ou se virá uma nova geração de líderes capazes de agir politicamente.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Ditadura ou Ditabranda?

Pode parecer paradoxal, mas a História recente é mais difícil de escrever do que a História antiga. Isso porque as opiniões não são isentas, já que os interlocutores estão de uma maneira ou outra envolvidos na trama que desejam levantar. A verdadeira dimensão dos fatos históricos só pode ser avaliada com o devido distanciamento no tempo. Diz a sabedoria popular, não se pode observar uma catedral estando dentro dela. Quem quiser realmente saber seu tamanho e suas formas, tem que observa-la de uma conveniente distância.

É o caso do recente período do governo militar, entre 1964 e 1984. Ultimamente vinha se fortalecendo o senso comum de que teria havido uma "ditabranda", posto que a violência do regime não se compara ao que aconteceu nas ditaduras de nossos vizinhos. Mas a recente divulgação de relatórios da CIA reabriu a questão, ao confirmar que os ex-presidentes Geisel e Figueiredo não apenas sabiam das execuções extra-judiciais do período, como as autorizaram explicitamente.

Não foi propriamente uma surpresa. A coletânea de Elio Gaspari sobre a ditadura já vinha trazendo revelações sobre a anuência de Geisel quanto às execuções. Afinal, a ditadura foi assim tão violenta? Devemos rever o conceito estabelecido a respeito de Geisel, tido como o mentor da abertura política que deteve os setores radicais?

Em números, a ditadura brasileira não se compara à de nossos vizinhos. Em vinte anos, duas centenas de mortos e outros tantos de desaparecidos. Na Argentina, em apenas oito anos, quinze mil entre mortos e desaparecidos. Colocados os valores per capita, a discrepância é maior ainda. Mas é preciso chamar a atenção para um aspecto: a diferença foi quantitativa, e não qualitativa. Todos os métodos empregados por nossos vizinhos - tortura, sequestro, desaparecimento - foram empregados aqui. Há quem afirme que essa metodologia foi gestada no Brasil e posteriormente ensinada a nossos vizinhos. Esse tópico é controverso.

Mas independente do julgamento que se faça dessas atrocidades, o essencial é entender o contexto em que elas foram perpetradas, levantar as semelhanças e diferenças entre o que se passou aqui e o que se passou alhures. E o contexto da época era o da guerra fria, que se apresentava como uma luta do mundo livre contra o totalitarismo comunista. Portanto, os regimes militares sul-americanos que se propunham enfrentar a subversão comunista tinham que, de alguma maneira, afirmar que lutavam pela liberdade de seus povos. Por conseguinte, não podiam assumir-se como ditaduras, mas como estados de sítio prolongados que, em tese, visavam restabelecer o regime constitucional após o cumprimento de umas tantas metas, e suas atrocidades tinham que ser escondidas.

Esse foi o traço comum das ditaduras que pululavam por todo o continente nos anos 60 e 70. A diferença entre o grau de violência da ditadura brasileira e a de nosso vizinhos é para ser explicada pelo grau de desafio da subversão. Aqui, a eclosão dos grupos guerrilheiros coincidiu com um período de grande expansão da economia e pleno emprego - o chamado Milagre Brasileiro. Em consequência, houve reduzido apoio popular à guerrilha, e a própria dispersão dos grupos - uma salada de siglas que hoje poucos sabem de cor, cada uma contendo no máximo uma centena de militantes - atesta bem sua debilidade. De fato, a grande maioria dos guerrilheiros brasileiros era constituída por estudantes, intelectuais, padres, sindicalistas, ex-militares, quase não se via trabalhador. Algo totalmente diferente do que ocorreu, por exemplo, na Colômbia, onde as FARC´s foram constituídas em meio ao campesinato, ao invés da classe média urbana, tiveram milhares de combatentes e estão ativas até hoje. A experiência guerrilheira no Brasil foi, em muitos casos, caricata. A maior delas - a guerrilha do Araguaia, do PCdoB - conseguiu produzir apenas duas baixas no exército brasileiro. Mas considerados os métodos empregados, resta pouca dúvida de que, se a subversão fosse mais tenaz, teria havido o mesmo número de mortes e desaparecimentos que ocorreram em nossos vizinhos.

O regime militar brasileiro teve outras peculiaridades. Curiosamente, a violência máxima ocorreu sob a presidência de Garrastazu Médici, que não se gabava da violência, mas das obras. As imagens do período estão invariavelmente ligadas às pontes, às estradas e à propaganda ufanista que fez o país viver um período de euforia cujo ápice foi o tricampeonato mundial. Data desta época a nefasta noção de que a ditadura, mais do que uma necessidade para enfrentar a subversão, seria também essencial para fomentar o desenvolvimento do país, e a democracia, se tanto, seria um luxo a que o Brasil poderia permitir-se após atingir um patamar de desenvolvimento que garantisse razoável paz social. E curiosamente também, os presidentes identificados com a abertura política - Geisel e Figueiredo - são os que estão sendo acusados agora de promover execuções.

Devemos, então, reformular totalmente o conceito que fazemos sobre Médici, Geisel, Figueiredo e o regime militar como um todo? Na verdade, não. O regime militar brasileiro, em termos qualitativos, não foi menos violento que os demais, e esteve de todo inserido no contexto da época. O perfil de Médici nunca foi o de um líder político, mas de um burocrata autoritário - ele legou ao país obras, e não sucessores. Geisel e Figueiredo nunca foram pacifistas, mas tampouco é mentira que eles tenham enfrentado os radicais, que tencionavam derruba-los por acharem que eles não eram violentos o suficiente.

O que importa realmente, agora, é que a ditadura acabou. É passado. E diz a sabedoria popular, se o passado fosse bom, seria presente. Diz também a sabedoria popular, aqueles que não se lembram do passado, estão condenados a repeti-lo.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

O bipartidarismo abortado

Houve um momento em que se pensou que o país ia entrar em uma era de bipartidarismo na política. O PSDB havia governado por dois mandatos consecutivos, sem maiores percalços. Em seguida o PT, assumindo a mesma linha social-democrata mais à esquerda, governou por mais dois mandatos consecutivos, mantendo o legado macroeconômico da gestão anterior e obtendo consistente aprovação popular. Parecia que finalmente tínhamos dois partidos capazes de se alternar no poder sem grandes solavancos. Mas a partir da gestão de Dilma Rousseff, a velha instabilidade retornou. O PT foi apeado do poder, e o PSDB permaneceu fora.

Pelos exemplos que a História fornece, o bipartidarismo é um bom negócio. Característico de democracias antigas e consolidadas, podem ser citados os partidos conservador e trabalhista na Inglaterra, e os partidos democrata e republicano nos EUA. Aqui no Brasil, tivemos os partidos liberal e conservador no tempo do império, e a dupla PRP e PRM da república café-com-leite. Muitos consideram o bipartidarismo uma forma de democracia limitada e viciada, e isso faz um certo sentido, mas a verdade é que, observando-se os lugares onde o bipartidarismo não se estabeleceu, ao invés de uma democracia pujante o que se vê em geral é a bagunça de uma mixórdia de partidos fracos, onde se destacam líderes personalistas e aventureiros. Vejo com pesar o lançamento fracassado do bipartidarismo no Brasil, mas é preciso antes de tudo recuar no tempo e entender porque chegamos a isto.

O último período bipartidário do país, conforme apontado, data da República Velha. Após a constituição de 1946, o que surgiu de fato foi um sistema tripartite: à esquerda o PTB, à direita a UDN, e no centro o PSD fazendo alianças e vendendo o seu apoio sem grande pudor. Ao redor, uma constelação de partidecos pequenos demais para almejar o poder, mas numerosos o suficiente para se imiscuir e produzir resultados inesperados, bem como servir de legenda a líderes personalistas que queriam governar acima dos partidos - a eleição de Jânio Quadros foi o melhor exemplo. A queda do regime em 1964 enfatizou a debilidade do sistema tripartite. Seguiu-se uma etapa de bipartidarismo nominal - a Arena e o MDB. Mas não passou de um simulacro. O regime de 1964 não era regido de dentro dos partidos, mas de dentro dos gabinetes. Arena e MDB não eram estritamente partidos políticos, mas valas comuns onde foram atirados os destroços do sistema político estilhaçado pelos militares que assumiram o poder em 1964. Tão logo o regime deu sinais de fraqueza, ambos fragmentaram-se.

O que veio a seguir foi um período de instabilidade, onde as forças políticas implodidas acomodavam-se em novas legendas. Por breve período no tempo de Sarney, o PMDB chegou a ser hegemônico, mas após a morte de Ulysses Guimarães, revelou-se um partido sem líderes nacionais, apto apenas a vender o seu apoio, como o antigo PSD. A proliferação de legendas nanicas e aventureiros como Collor enfatizava a extrema decomposição do quadro partidário. Foi quando o PSDB começou a dar sinais de possuir uma linha política coerente, e o PT substituiu sua linha revolucionária pelo pragmatismo. Enfim, dois partidos socialdemocratas capazes de se alternar no poder sem uma ruptura política.

Por que falhou? Posse tecer alguns comentários. Desde o início, eu estranhei a extrema hostilidade entre o PT e o PSDB, apesar da óbvia semelhança da linha ideológica de ambos. Bem como estranhei a timidez do PSDB, que preferiu renegar seu legado de responsabilidade econômica fundado no Plano Real, estigmatizado como "neoliberalismo", e procurar retornar tardiamente à social-democracia das origens. Mas o espectro social-democrata já estava ocupado pelo PT, ex-revolucionário. O resultado foi que perdeu todas as eleições: quem vai querer a cópia se pode ter o original? Hoje o PT é um partido batido, e o PSDB um partido desmoralizado. No vão aberto pelo bipartidarismo abortado, imiscuem-se aventureiros e arrivistas. Nunca o futuro político do país foi tão incerto.