sábado, 27 de abril de 2019

Em Busca do Jesus Histórico

É uma discussão antiga: quem foi o "verdadeiro" Jesus? Um místico? Um revolucionário incompreendido? Um iniciado essênio? Mero personagem fabricado? Não é fácil de responder, pois são escassas as fontes primárias. O próprio não deixou nada escrito, e ao que tudo indica, era analfabeto. Os primeiros evangelhos só começaram a surgir cem anos depois. Em seu tempo, nenhum cronista o mencionou, embora outros personagens dos evangelhos tenham sido citados. O grande historiador judeu Flavius Josephus não fala de Jesus, embora mencione João Batista.
Com certeza muito ainda será discutido, e não falta espaço para fantasias várias. Mas toda época de páscoa vemos encenada na televisão um enredo mal contado: Jesus chega em Jerusalém montado em um burro e é recebido como rei. Depois expulsa os mercadores do templo, mas quando questionado sobre se é válido pagar impostos a Roma, responde que a César o que é de César. Em seguida é traído por um discípulo e entregue aos romanos, mas as autoridades do lugar não querem condená-lo. Pressionado pelo sumo sacerdote, o procurador romano Pôncio Pilatos enfim concorda em condenar Jesus à morte.

Digo um enredo mal contado porque destoa da imagem que é exposta nos evangelhos até este momento, e muitos personagens agem de forma contraditória, deixando perguntas em aberto. Por exemplo:

- Por que Jesus, que nunca pretendeu ser um líder político, deixou-se homenagear como rei no Domingo de Ramos?

- Por que Jesus agiu com violência contra os mercadores do templo, se em todas as demais passagens dos evangelhos ele se mostra pacífico?

- Qual a motivação de Judas Iscariotis ao trair Jesus?

- Por que Pilatus, reconhecido como um prócer violento e opressivo, não quis condenar Jesus?

- Por que tampouco Herodes quis condenar Jesus, embora ele fosse acusado de querer proclamar-se rei em seu lugar?

- Qual a motivação do sumo sacerdote Caifás ao insistir na condenação de Jesus?

Juntando trechos do evangelho com o conhecimento histórico da época, é possível formular algumas hipóteses para responder a essas perguntas. Começo com o personagem mais contraditório de todos: Judas Iscariotis. Por que, de um momento para o outro, ele resolveu trair seu mestre? Os evangelhos dizem que ele recebeu 30 denários pelo serviço. Terá sido o dinheiro a motivação? Quanto valeriam na época 30 denários?

Segundo os evangelhos, Judas depois se arrependeu e quis devolver o pagamento, mas este não pôde ser recolocado no tesouro sagrado, pois era "dinheiro de sangue". Os sacerdotes, então, usaram a importância para comprar um terreno onde foi criado um cemitério para estrangeiros. Deve ser lembrado: conforme o Pentateuco, cadáveres eram impuros, bem como os gentios (estrangeiros não judeus). Então, um terreno destinado a ser um cemitério para estrangeiros por certo não ficaria em uma área valorizada. Ou seja, Judas não só vendeu Jesus, mas vendeu-o barato. Claramente, sua motivação não foi o dinheiro.

É no próprio evangelho que encontramos a resposta para o procedimento de Judas. Em outra passagem, quando uma pecadora arrependida banha os pés de Jesus com um perfume caríssimo, Judas fica indignado e argumenta que melhor fariam vendendo o perfume e distribuindo o dinheiro aos pobres, ao que Jesus replica, incisivo, que "pobres sempre o tereis convosco, a mim nem sempre o tereis". Fica patente que o discípulo traidor não é um asceta, mas um revolucionário social. Interessa-o as condições materiais em que vive a população sob o domínio romano. O possível engajamento de Jesus em questões políticas e sociais já havia sido previamente descartado na passagem em que ele vai para o deserto para ser tentado. Satanás incita-o a transformar as pedras em pães, a fim de matar a fome, e promete-lhe o poder sobre todos os reinos da terra, mas Jesus recusa. Iscariotis, portanto, pode ser definido como um aluno que falhou neste teste e cedeu à tentação de Satanás, preferindo transformar pedras em pães (para alimentar o povo, mas também a si próprio, pois ninguém é de ferro) e ser investido do poder sobre os reinos (para libertar o povo, mas também para locupletar-se, presumo). De certa forma, ele é o patrono dos seguidores da moderna "Teologia da Libertação".

Naquela páscoa, quando Jesus foi recebido com ramos pela população de Jerusalém, grandes eram as esperanças depositadas nele. Mas ao invés de proclamar-se rei, Jesus ataca os mercadores do templo. Deve ser notado que a presença de mercadores no templo, na época, não consistia nenhuma transgressão. Eles não ocupavam as áreas sagradas, e sua função era necessária, pois vendiam os animais usados nos sacrifícios e faziam o intercâmbio de moedas para os peregrinos que vinham de países estrangeiros. Portanto, naquele dia Jesus não agiu nem como líder político, nem religioso, mas meramente como desordeiro. O desencanto é completo quando logo em seguida, indagado se é justo pagar impostos a Roma, Jesus manda dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus - uma resposta repleta de ironia, sendo apontada a incoerência de não querer pagar impostos e ao mesmo tempo usar o dinheiro romano, lastreado com seus impostos.

Não é difícil imaginar Judas naquele instante levando as mãos à cabeça. Sua decepção com Jesus é total. Pensa ele, da forma como age, aquele Jesus é um louco, está pedindo para ser trucidado, e trucidados também serão os imprudentes que forem encontrados junto dele. Urge eliminá-lo o quanto antes! Por isso Judas toma a decisão de entregar Jesus. Entretanto, seu arrependimento e posterior suicídio sugerem que as coisas não se passaram bem como ele previa. Talvez tivesse a esperança de que, com Jesus preso, seus seguidores se levantariam em rebelião. Isso não aconteceu.

Outro personagem mal explicado é o procônsul romano na Judéia, Pôncio Pilatus. As fontes históricas apontam-no como um governante violento, que nutre grande desprezo pelos judeus. Entretanto, os evangelhos afirmam que Pilatus procurou salvar Jesus, e concentram a culpa sobre Caifás, que exigia sua condenação. Qual dos Pilatus é o verdadeiro?

Na verdade, ambos, mas para fazer a ponte entre o primeiro e o segundo, é preciso transportar-se para o contexto da época. Roma, uma mera cidade-estado, controlava aqueles vastos domínios habitados por populações tão diversas mediante um delicado exercício de política e diplomacia denominado a Paz Romana. Os governantes das províncias procuravam o mais possível conciliar os interesses de Roma com os interesses das elites locais, bem como respeitar os costumes locais desde que não constituíssem afronta ao domínio romano. Com esta fórmula, uma certa dose de segurança e prosperidade era garantida aos habitantes, o suficiente para dissuadir rebeliões. Um compromisso tácito era conhecido: os governadores romanos tinham carta branca para aplicar todas as medidas repressivas que achassem necessário, mas se da aplicação dessas medidas resultasse o rompimento da Paz Romana, eles caíam em desgraça. Por isso, tinham que agir com cautela.

Podemos imaginar Pilatus furioso por haver sido tirado da cama para atender a uma questão interna daqueles bárbaros, mas ele está ciente de que sua posição é delicada. Uma rebelião pode eclodir na Judéia romana de um momento para o outro, e esta pode ser desencadeada tanto pelos seguidores de Jesus quanto pelos sacerdotes. Resolve, então, agir de forma estritamente política. Ele não deseja condenar Jesus, pois sabe que Jesus não se opõe a Roma, e seu desentendimento é apenas com os fariseus e sacerdotes, gente com quem Pilatus tampouco simpatiza. Mas um governante romano deve em primeiro lugar preservar a Paz Romana. Então resolve averiguar qual partido é o mais forte. Manda tirar do cárcere um outro preso tido como herói popular, chamado Barrabás, e conclama o povo a escolher quem será libertado: Barrabás ou Jesus? A escolha por Barrabás parece indicar que parte do populacho, tal como Judas, estava igualmente desapontada com as atitudes tomadas por Jesus nos últimos dias.

Outro personagem ambíguo é o rei Herodes Antipas, para cuja presença Jesus foi levado. Se Jesus é acusado de querer proclamar-se rei em seu lugar, então Herodes deveria ser mais que todos interessado em sua condenação. Mas o encontro de Jesus com Herodes é marcado pela galhofa. Herodes incita Jesus a praticar milagres, a fim de dar prova de que é capaz de fazê-lo, mas Jesus se recusa, então Herodes ri dele e o dispensa, desapontado. Fica patente que, em sua opinião, Jesus não passa de um fanfarrão. A hipótese do Jesus Revolucionário não foi levada a sério pelos dois homens mais poderosos da Judéia - para Pilatus, apenas um desordeiro, para Herodes, apenas um fanfarrão. Fica difícil, portanto, sustentar essa hipótese nos dias de hoje, embora muitos simpatizem com ela.

O papel de grande vilão do dia, segundo os evangelhos, ficou para Caifás. Mas sua posição deve ser examinada. Acreditaria ele em um Jesus revolucionário capaz de livrar os judeus do jugo romano? Ou temeria um Jesus reformador, capaz de provocar um cisma religioso? Em sua posição de sumo sacerdote, deveria levar em conta esta segunda hipótese. Um Jesus revolucionário poderia ser até potencial aliado, embora Caifás não pudesse dizê-lo abertamente. Mas levaria ele a sério um profeta tão anticonvencional e destoante dos demais profetas hebreus? A hipótese mais provável, a meu ver, é que Caifás, tanto quanto Pilatus, queria apenas preservar a Paz Romana, e não via em Jesus nem um líder político nem religioso, mas um perigoso agitador, capaz de atrair a repressão violenta da parte dos romanos.

Falta o personagem principal, o próprio Jesus. A forma como agiu naquela semana foi destoante de tudo o que fizera até então. Como explicar aquele Jesus agressivo, que expulsa a chicotadas os mercadores do templo, depois desilude os patriotas mandando-os pagar impostos a Roma, e por fim facilita a própria prisão? Como explicar aquele Jesus que antes tão altivo, recusa-se a defender-se quando diante de Pilatus e Herodes?

A única explicação lógica é que Jesus fez tudo deliberadamente, provocando o próprio martírio, ciente de que a comoção despertada por sua paixão, morte e suposta ressurreição seria suficiente para lançar o marco de uma nova religião, o que não aconteceria se ele tivesse uma morte natural, quando acabaria esquecido como tantos profetas populares de seu tempo. Neste caso, temos que admitir que Judas não foi de fato um traidor, mas um discípulo que apenas cumpriu as determinações do mestre.

Esta é minha modesta contribuição para o resgate do Jesus histórico.

sábado, 13 de abril de 2019

Paulo Freire e o fracasso da educação

Os resultados da educação no país são reconhecidamente ruins, e numerosas causas têm sido apontadas desde muito. Mas recentemente uma nova causa foi levantada e chamou a atenção: o principal responsável pelo malogro da educação nacional seria a influência de Paulo Freire, que ironicamente foi consagrado como o patrono da educação brasileira.

“Se temos uma filosofia de educação tão boa, [e] Paulo Freire é uma unanimidade, por que temos resultados tão ruins?”


São palavras do Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Se a polêmica já chegou na esfera governamental, então deve ser discutida. Será Paulo Freire o culpado pelos sucessivos fracassos do país nas avaliações internacionais do desempenho dos alunos?

Na minha opinião, isso é um exagero. As avaliações internacionais colocam-nos juntos a países em sua maioria do Primeiro Mundo, com os quais saímos necessariamente perdendo em qualquer comparação. É óbvio que a causa principal é a precariedade material de nossas escolas e da própria estrutura familiar de boa parte dos alunos. Não estamos na Finlândia. E independente disto, Paulo Freire a priori não pode ser considerado o culpado, simplesmente porque ele nunca foi um educador, e sim um filósofo. O método a ele atribuído destina-se à alfabetização de adultos, portanto, não é de uso geral. Nossas escolas não podem afirmar que aplicam o método Paulo Freire, exceto em um sentido muito subjetivo. Sua obra mater, Pedagogia do Oprimido, não trata de didática, mas é de fato um apanhado de aforismos em prol da educação como veículo de transformação social em um mundo necessariamente dividido entre opressores e oprimidos. Esse discurso atraiu muitos admiradores que desejam uma educação libertária, tanto que seu livro é o terceiro mais citado do mundo em trabalhos acadêmicos na área de humanidades, fato frequentemente invocado como prova da excelência do suposto educador.

Mas os que citam Paulo Freire são em geral também filósofos que compartilham seus pontos de vista políticos. Não há nada de prático em sua obra no terreno da pedagogia, da didática, daquilo que pode efetivamente melhorar o desempenho dos alunos. Paulo Freire só é bom para dar nome a institutos, ser representado em estátuas e servir de referência a teses de doutorado muito complicadas. Mesmo no terreno da alfabetização de adultos, alvo original de seu método, os resultados são questionáveis. Paulo Freire já retornou do exílio há muitas décadas e exerceu diversos cargos públicos até sua morte, mas o Brasil continua um dos campeões em analfabetos adultos. Os mais ingênuos afirmam que o ideário de Paulo Freire é bom, o problema seria o uso político que se faz dele, como se não fosse este o objetivo de Freire.

De minha parte, acredito que a parcela de culpa de Paulo Freire quanto ao fracasso de nossa educação não vem de sua atuação como educador, coisa que ele nunca foi, mas sim, efetivamente, de sua atuação como filósofo. O discurso de Freire criou um ambiente ideal para a desvalorização do ensino e da própria figura do professor, ao colocar a conscientização social como foco principal, e invalidar a hierarquia que deve existir entre educador e educando. Assim, pode-se sempre argumentar que o ensino está ruim, mas isso não é grave porque a "verdadeira missão" do mestre não é ensinar as matérias, mas sim "formar cidadãos" - expressão de sentido vago que cada um pode interpretar como quiser. Ao nivelar professor e aluno (a educação deve ser dialógica, esquecido que o diálogo pressupõe equivalência de conhecimento entre interlocutores) e aluno bom e aluno ruim (não existe bom nem ruim, só diferentes) Freire também abre caminho para métodos inovadores de avaliação que excluem provas, e portanto camuflam as deficiências do ensino, aprovando automaticamente todos os alunos - algo sem dúvida do agrado de políticos que querem exibir boas estatísticas ao Ministério da Educação.

Mas Freire vai além. Destrói o próprio conceito de honra ao mérito, origem do esforço de auto superação que deve necessariamente existir para todo aquele que pretende distinguir-se pela educação. Na visão binária de Freire, onde só há oprimidos e opressores, e onde quem não é oprimido é opressor, o aluno que procura superar seu colega é um vil membro da classe dos opressores, inimigo da igualdade, e o professor que procura melhorar o desempenho de sua turma mediante avaliações rigorosas é um autoritário que recusa o diálogo. A tendência inevitável de quem aceita esse ideário será conformar-se a uma vala comum de mediocridade. Falta alguém perguntar: se eu não sou opressor nem oprimido, onde eu entro aí? Posso ser melhor que meu colega? Posso cobrar mais de meus alunos?

Se Paulo Freire quis promover uma revolução com seu método, sem dúvida que fracassou. Mas antes de morrer, talvez o mestre tenha aprendido uma lição. Sem disciplina não se faz nada. Nem revolução.