É um fenômeno palpável: o povo brasileiro está cada vez mais se voltando para a religião. A bancada evangélica cresce em número e em influência. Eu próprio, no dia-a-dia das redes sociais, noto cada vez mais mensagens de cunho religioso, que me deixam pensando: sempre foi assim, e eu nunca reparei? Quando foi que isso tudo começou?
Ainda sem ter uma resposta satisfatória a essas perguntas, topei com uma questão instigante. O surgimento do protestantismo no século 16, coincidindo com o fim da Idade Média e o surgimento do capitalismo mercantil, marcou também o início do ciclo de prosperidade dos países da Europa Central, que deixaram para trás os países católicos do sul. É bem conhecida a tese de Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que explica essa diferença econômica como produto de determinados princípios da religião protestante que favoreceram o desenvolvimento do capitalismo que se iniciava então. Desde então o senso comum tem associado, com justiça ou não, o protestantismo à riqueza e o catolicismo à pobreza. Particularmente, nós no Brasil somos pobres porque devemos a nossa formação a um colonizador católico e obscurantista. Ponto. E eis que nesse início de século 21, uma tardia reforma protestante parece iniciar-se entre nós...
Ironias à parte, deve-se examinar até que ponto há uma correspondência entre o fenômeno atual e o fenômeno do século 16. Religioso, o povo brasileiro sempre foi, mas majoritariamente católico. A diferença agora é a corrida para as igrejas neo-pentecostais, a todo dia sendo abertas por um pastor qualquer nas periferias. Essas igrejas prometem a prosperidade a seus seguidores, daí sua pregação haver sido rotulada de "teologia da prosperidade". Será que vamos ficar mais ricos por causa disto? Dada a cupidez de certos pastores, alguns fiéis estão ficando é mais pobres. Mas ao menos filosoficamente, essas igrejas exaltam a prosperidade, vista como prêmio ao bom fiel. Essa postura contrasta com a devoção católica à pobreza e ao conformismo. No século 16, o catolicismo condenava a cobrança de juros, considerada usura, que era permitido pelo protestantismo. Fica para trás, também, a "opção preferencial pelos pobres" da Teologia da Libertação que fez sucesso no tempo da ditadura. Os pentecostais defendem ostensivamente o capitalismo.
Comparando os dogmas lançados pelo luteranismo e pelo calvinismo no século 16, com os dogmas católicos até hoje vigentes, vejo uma discussão de todo inserida no âmbito da teologia. Não vale a pena reproduzi-la aqui, pois não tem interesse fora da religião. O que se pode afirmar, com certeza, é que os reformadores protestantes não tinham em mente a prosperidade material, e se esta ocorria para seus fiéis, seria se tanto um subproduto dos costumes e valores que praticavam. Até onde haveria uma relação entre esta ética protestante diluída nas populações e o progresso verificado nos países protestantes? Há muito o que se discutir, mas de minha parte, tenho dúvidas de que o mesmo possa ocorrer no Brasil do século 21 que adere ao protestantismo dos pastores das periferias. O progresso dos países protestantes a partir do século 16 é para ser explicado considerando o contexto específico da época, quando o capitalismo, então no nascedouro, era endossado pelas crenças dos protestantes e visto com reservas pelos católicos, ainda ligados ao imobilismo social característico do feudalismo. Mas no século 21, o Brasil é um passageiro retardatário do trem do capitalismo.
Outro aspecto polêmico desta virada para a religião que se verifica no Brasil atual, é o ostensivo envolvimento dos pastores com a política. A bancada evangélica no congresso, inicialmente referida como anedota, agora é uma poderosa realidade, e os pastores já se imiscuem também no executivo. O país, então, vai e transformar em uma teocracia, e seremos governados por pastores que ditarão ao povo suas crenças obscurantistas e desviarão o dinheiro dos impostos para suas igrejas?
O senso comum diz que sempre que a religião se mistura à política, esta se corrompe. Os líderes religiosos tornam-se tirânicos e materialistas, o terreno sucede ao espiritual. É um temor que vem de eras pregressas, quando a religião não se reduzia a crenças íntimas, noção que hoje temos do religioso, mas era todo um sistema de ideias destinado a moldar vários aspectos da vida privada, social, legal e política dos fiéis. É evidente que não se pode obrigar milhões de pessoas a viver de uma determinada maneira se não forem usados poderosos instrumentos de coerção. A igreja católica, particularmente, está manchada pelo passado do tribunal da inquisição, embora esta possa ser perfeitamente compreendida no contexto de sua época.
Isto pode repetir-se na época atual? O senso comum repele tal hipótese como bizarra, mas um temor fica. É preciso convir, contudo, que se no passado as pessoas permitiam que a religião controlasse diversos aspectos de suas vidas, era porque a religião dava resposta a demandas que igualmente surgiam de vários aspectos de suas vidas: além de não haver quem lhes desse conforto espiritual, tampouco havia quem lhes proporcionasse justiça, estabilidade, amparo, normas de conduta, explicação para o que não entendiam. Hoje essas demandas são bem ou mal satisfeitas por associações e instituições surgidas na sociedade civil, a ciência fornece respostas a quase todas as perguntas, e a religião está confinada ao terreno do misticismo e das crenças íntimas. Mas se o povo elege tantos pastores, é um sinal de que ainda busca um "algo mais" para satisfazer demandas que não estão sendo satisfeitas devidamente pela sociedade civil.
Não sei até onde nos levará essa virada para a religião, mas vejo-a como um necessário momento de reflexão diante de uma crise que não é apenas política e econômica, mas também moral. É como voltar às origens e perguntar: onde foi que erramos?