domingo, 31 de março de 2019

Rememorando 1964

Em 1946, ninguém lembrava do golpe de 1889. Em 1986, ninguém lembrava da revolução de 1930. Mas hoje, o golpe de 1964 continua alvo de agitadas polêmicas, a começar pela própria definição, se tratou-se de um golpe, de um contragolpe ou de uma revolução. Se o passado recusa-se a ficar quieto nos livros de História, é porque não é passado, e sim presente.

É visível o embaraço que a instrução do presidente Bolsonaro de comemorar o golpe de 1964 causou aos chefes militares. Mas primeiro de tudo, deve-se esclarecer o que isto significa para o próprio Bolsonaro. Nem ele, nem qualquer integrante de seu governo tiveram qualquer participação nos governos instituídos a partir do golpe de 1964, e o protagonismo de Bolsonaro só começa no governo Sarney. Ele é apenas um admirador daquele período. E de resto, seu governo tido como neoliberal nada tem a ver com o desenvolvimentismo nacional-estatista seguido pelos presidentes do período militar.

Passando ao largo da questão de comemorar ou não a data, enaltecer ou criticar o regime, deve-se entender o que de fato aconteceu na época. Havia uma forte rejeição ao governo Goulart e um genuíno temor a uma revolução ou guerra civil. Isto fica patente nas manifestações de massa contrárias ao presidente, até então as mais numerosas do país. Mas logo mostrou-se ingênuo o propósito de retomar de imediato a normalidade após a saída do presidente, como se a normalidade constitucional, este delicado pacto, pudesse ser desligada e religada como quem aciona um interruptor. Quem assumiu o poder não foi a cúpula da UDN e a ESG, ambos logo alijados do comando por uma série de "golpes dentro do golpe" entre 1964 e 1969. Castelo Branco assumiu a presidência com plenos poderes, mas era uma mandatário já esvaziado de poderes quando passou a presidência a Costa e Silva, com cuja candidatura não concordava. Costa e Silva assinou o AI-5, mas terminou seu governo como mero fantoche, imobilizado por uma trombose. O poder foi de fato assumido por um estamento burocrático que vinha sendo gestado desde os anos 50, quando Juscelino iniciou a prática de comprar o apoio dos militares dando-lhes cargos na administração e nas empresas estatais.

É emblemática a figura de Garrastazu Médici, que presidiu o país no período mais violento, mas que não costumava vociferar bravatas em seus discursos, e apreciava a ditadura porque ela lhe dava poderes para levar seu projeto desenvolvimentista sem empecilhos. Neste aspecto, não se pode considerar o regime de 1964 como uma singularidade: foi a continuação do projeto varguista dos anos 30, do desenvolvimento induzido pelo Estado autoritário. De fato, foi durante o período militar que o nacional-estatismo foi levado ao auge, nos anos setenta, e ao esgotamento nos anos oitenta. E deve ser lembrado que o nacional-estatismo vicejou muito mais tempo sob regimes ditatoriais do que democráticos, desde o Estado Novo de Vargas, o que é coerente com sua premissa básica: o desenvolvimento deve ser conduzido pelo Estado, e não pelos cidadãos.

Mas o próprio nacional-estatismo autoritário teve suas raízes em tempos mais antigos. É uma herança do positivismo de Comte, muito apreciado pelas elites intelectuais e militares da segunda metade do século 19. Comte repudiava a democracia parlamentar e propugnava em seu lugar uma "ditatura republicana, racional e científica", conduzida por homens superiores e imbuídos do propósito único de conduzir o país ao progresso. A descrença nas formas representativas de governo empurrou gerações de jovens militares ao radicalismo no começo do século 20, dividindo-se entre o fascismo e o comunismo. Embora o regime de 1964 fosse visceralmente anticomunista, deve ser lembrado que o comunismo, no Brasil, surgiu com o tenentismo dos anos 20, e entre Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e Lamarca, numerosos comunistas históricos foram oriundos das fileiras do exército.

Contudo, o regime de 1964 de certa forma implantou aquele projeto dos positivistas do século anterior. Era uma "ditadura republicana" no sentido em que os presidentes tinham plenos poderes, mas seus mandatos eram fixos, preservando o formato republicano do regime. Era "racional e científico" no sentido em que a administração era conduzida por tecnocratas, um conjunto de superministros cuja atuação ultrapassava o escopo original de suas pastas. Esses tecnocratas supostamente exerceriam a administração de acordo com critérios puramente técnicos, em substituição aos interesses pessoais dos políticos. Como se sabe, o regime produziu alguns resultados na economia, mas esgotou-se sem nunca deixar de ser violento.

Enquanto o golpe de 1964 não passar definitivamente aos livros de História, o país permanecerá preso ao contexto que o gerou. Bolsonaro podia começar por deixar de lado a sua admiração pueril pela ditadura, assumir que a fase histórica é outra, e que as propostas de seu governo são opostas ao desenvolvimento tutelado pelo Estado, que se acreditava na época.

quarta-feira, 20 de março de 2019

Respondendo à pergunta: para que serve, afinal, o ensino de História?

Da boa coleção de revistas de História que tínhamos poucos anos atrás nas bancas, parece que sobrou somente a Leituras da História. Da Revista de História da Biblioteca Nacional, eu me abasteço e um bom sebo que tem todos os números antigos. Mas nas bancas, tenho que me virar mesmo com o Leituras da História. Que entretanto melhorou um pouco de qualidade, talvez alguns colaboradores das revistas descontinuadas tenham se mudado para ela. O último número fechou com um artigo instigante: Para que serve, afinal, o ensino de História?

O artigo enumera certos sofismas antigos que, infelizmente, os professores de História continuam a repetir a seus alunos. Até aqui sem novidade. Um pequeno passo atrás em uma revista que vem dando passos à frente.
 
"Entender porque tivemos habitantes nesse território há milhares de anos, e só termos sido 'descobertos' em 1500... Entender porque é comum falar em Descobrimento do Brasil, se não havia um Brasil... Entender porque Pedro I era português e nobre, e trouxe a 'independência' ao Brasil... Entender porque Pedro II manteve a escravidão por 48 dos 49 anos que governou, e mesmo assim é conhecido por um sábio... Porque Getúlio Vargas é lembrado e homenageado mesmo tendo sido um ditador sombrio a maior parte de seu governo..."


Mas não ficou claro se o autor endossa essas afirmações, ou se lança o debate. Por isso vale a pena respondê-las uma por uma.

"Entender porque tivemos habitantes nesse território há milhares de anos, e só termos sido 'descobertos' em 1500"


O sofisma é: se o território já era habitado em 1500, então o Brasil já havia sido descoberto por seus primitivos habitantes. Só que o que havia antes não era o Brasil, mas a região geográfica habitada por diversos povos que não tinham qualquer ideia de que faziam parte de uma nação. Bom ou mau, feio o bonito, o Brasil como o entendemos é uma criação do colonizador e passa a existir a partir de 1500.

"Entender porque é comum falar em Descobrimento do Brasil, se não havia um Brasil"


De fato, seria melhor falar da fundação do Brasil, ao invés da descoberta.

"Entender porque havia milhões de habitantes nas primeiras décadas após o 'descobrimento', e depois disso ficaram restrito a poucos milhares"


A ideia que se quer vender é que ocorreu aqui um genocídio, e os milhões de índios que existiam em 1500 foram massacrados até se tornarem os poucos milhares que existem hoje. É um antigo sofisma. Não se pode colocar em um mesmo recenseamento indivíduos que viveram em séculos diferentes. É óbvio que todos os índios que viviam aqui em 1500 já morreram, seja de velhice, doença ou até combate com os colonos. Foram sucedidos por outras gerações. Só que a cada geração, mais e mais índios abandonavam a vida tribal e se integravam de bom ou mau grado na sociedade do colonizador. Ou seja, os índios "morreram" no sentido antropológico, não no sentido biológico. Se houve aqui um genocídio, como se explica que tantos brasileiros da atualidade tenham genes dos antigos habitantes da terra?

"Entender porque Pedro I era português e nobre, e trouxe a 'independência' ao Brasil"


De fato, Dom Pedro I poderia ter acatado a ordem de retornar a Lisboa, e ali levar sossegadamente a vida dissoluta que tantos fidalgos portugueses já tiveram antes dele. Mas preferiu arriscar o pescoço e fazer a nossa independência, grafada entre aspas porque não corresponde ao que o autor desejaria que fosse. Poucos personagens históricos são alvo de tanta tentativa de desmoralização por parte dos professores de História, que o pintam como um pândego, e até um semi-analfabeto.

"Entender porque Pedro II manteve a escravidão por 48 dos 49 anos que governou, e mesmo assim é conhecido por um sábio"


Essa é até desonestidade intelectual. Dom Pedro II não era monarca absoluto, portanto não podia abolir a escravidão sem a aprovação de um parlamento integrado por donos de escravos.
 
"Porque Getúlio Vargas é lembrado e homenageado mesmo tendo sido um ditador sombrio a maior parte de seu governo"


Os personagens históricos são relevantes pelo que influenciaram no rumo dos acontecimentos, e não pelo julgamento moral que é feito deles. Sendo eles homens públicos, tanto o bem quanto o mal que fizeram não podem ser creditados unicamente à sua pessoa, mas divide-se coletivamente entre todos aqueles que o apoiaram e possibilitaram que fizesse aquele bem e aquele mal. Getúlio Vargas foi um ditador sombrio a maior parte de seu governo, mas pelo que realizou, é indubitavelmente o personagem brasileiro mais importante do século 20.

Esses são os sofismas. As outras questões levantadas são menos óbvias.

"Entender porque na primeira experiência democrática brasileira, entre cinco presidentes, um se matou, outro renunciou e outro foi derrubado"


Os políticos de então eram menos democráticos que o regime. Sempre havia alguém clamando por um golpe, e prevalecia a crença de que as forças armadas deveriam intervir como "poder moderador".

"Entender porque Castelo Branco assumiu prometendo uma transição rápida, e os militares ficaram 21 anos no poder"


Quem efetivamente assumiu o poder não foi a cúpula udenista nem o pessoal da ESG, do qual Castelo fazia parte. Esses deram o golpe, mas sucessivos "golpes dentro do golpe" vieram a afastá-los e colocaram em seu lugar um time de burocratas desenvolvimentistas, que acreditavam que a democracia só deveria ser restabelecida após o país se tornar desenvolvido.

"Entender porque os planos econômicos de Sarney e Collor não deram certo, e ninguém foi responsabilizado"


Na verdade eles fizeram aquilo que o pessoal de então sonhava: resolver os problemas econômicos por passe de mágica. Sarney, então, por irônico que pareça, foi responsável pela primeira experiência socialista do país: ele seguiu todo o receituário que a esquerda pregava desde os anos 60, do congelamento de preços à moratória da dívida externa. Mas parou após a vitória do MDB nas eleições.

"Entender porque o PT prometeu um governo ético e caiu na vala comum das transações mesquinhas"


O combate à corrupção sempre foi uma bandeira da direita, pois a proibição de roubar deriva do tabu da inviolabilidade da propriedade privada. O PT roubava para o bem do povo, ou assim acreditava.

Já com o fecho do artigo, eu concordo plenamente:

"Ela é esse resgate, e ao mesmo tempo esse roteiro. Entender o que se passou para compreender a bagunça do presente e balizar as ações"