quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

2020, o ano que não começou

 Tentando escrever qualquer coisa sobre o ano que ora se encerra, não encontro nada. Se há anos que, diz a expressão, "não terminaram", denotando a continuidade dos contextos políticos, sociais e culturais que os marcaram, também há anos que simplesmente não começaram, porque foram abortados por um evento súbito - no caso, a pandemia do coronavirus.

No entanto, estarei mentindo se afirmar que o ano de 2020 não representou um ponto de inflexão marcante. A pandemia vai acabar, mas as coisas não voltarão a ser como antes, nunca mais. As implicações da pandemia, com a necessidade de isolamento, aceleraram um fenômeno que eu já vinha observando há tempos, com inquietação - a morte do deslocamento ao trabalho. Na era da internet, diversas atividades que antes tinham que ser feitas em um escritório podem ser feitas em casa, e depois transmitidas a um escritório que pode muito bem comportar apenas um computador e nenhum funcionário. Por conseguinte, ninguém mais precisará se deslocar para um local de trabalho.

Esta previsão de um futuro onde as pessoas trabalharão em suas casas não é nova. Um dos visionários foi o escritor Monteiro Lobato, que publicou nos anos vinte do século passado um polêmico e pouco conhecido romance, O Presidente Negro, passado no futuro. Nele Lobato antevê as ruas das cidades se tornando "mansas de tráfego, como as antigas cidades do interior", já que quase ninguém mais necessitará se deslocar ao trabalho, pois pode trabalhar em casa e "irradiar" o trabalho ao escritório.

Mas trabalhar sentado em casa é uma coisa boa?

Tenho minhas dúvidas. A começar pelo aumento do nível de sedentarismo, já alto nas cidades. E tenho reparos sentimentais também. Sinto saudades do ar das ruas, das paisagens se deslocando na janela, ou simplesmente de passear pelas calçadas. Mas a consequência mais aziaga é a aceleração de outro fenômeno que já vinha observando há tempos: a morte do centro das cidades.

Hoje em dia o centro das grandes cidades, à noite, é um lugar sem graça, sujo e perigoso. Não era assim antigamente, quando os centros eram locais de hotéis, bares, restaurantes, salas de exposição. É o abandono das atividades culturais e de lazer, em detrimento do trabalho somente, que causa o esvaziamento dos centros: escritórios só são povoados durante o dia. E agora nem durante o dia eles serão povoados.

O fenômeno é mais agudo em algumas metrópoles do que em outras. Eu resido no Rio de Janeiro, e sou testemunha do declínio do centro da cidade, produto de crises financeiras e sucessivas administrações desastrosas, desde muito antes do coronavirus. O centro comercial e financeiro do Rio de Janeiro ainda corresponde, geograficamente, ao centro histórico, graças às reformas de Pereira Passos no início do século 20, o chamado bota-abaixo, hoje muito criticado por sua proposta "higienista" e por supostamente haver expulsado os pobres do centro. Mas não houvesse ocorrido essa reforma, o espaço hoje ocupado pelo centro seria uma vasta área degradada, e o verdadeiro centro comercial e financeiro da cidade teria se deslocado para outro bairro (a Tijuca?) à semelhança do que já aconteceu em outras metrópoles, como São Paulo, onde o antigo centro histórico foi abandonado e migrou para a avenida Paulista, antes uma área residencial elegante.

Algumas previsões utópicas afirmam que no futuro as pessoas deixarão as grandes cidades e voltarão a viver no campo, em contato com a natureza. Já desde o século passado uma piada dizia: nas fábricas do futuro, haverá somente um homem e um cachorro. A função do homem será alimentar o cachorro. E a função do cachorro será não deixar que o homem chegue perto das máquinas. Se o futuro será assim, que venha logo. Mas enquanto não vem, caminho pelo centro testemunhando sua lenta agonia.


sábado, 28 de novembro de 2020

De Novo o Racismo

O recente episódio de um homem negro morto após ser agredido por seguranças de um supermercado reacendeu um debate que já estava quente: o racismo entre nós. Quem é da minha geração não deixa de encarar este tema com certa perplexidade. Então nós somos racistas? No meu tempo, racismo era um assunto meio fora de lugar. Dizia-se que era um problema dos EUA; nosso problema aqui era a desigualdade social. Ponto. Mas agora afirma-se em alto e bom tom que somos tão racistas quanto s norte-americanos, sendo a principal prova disso a distância social entre negros e brancos, maior que a verificada nos EUA.

Pelo que verifico, o racismo tem sido escancarado entre nós porque os grupos militantes negros têm expandido a própria definição do termo, agora conceituado como todo e qualquer fator histórico, social ou econômico que implique uma desvantagem para os não-brancos. Assim, apresentam estatísticas que mostram que os negros ganham muito menos que os brancos, e são muito mais sujeitos a assassinatos do que os brancos. Esses números são corretos e parecem ser uma prova cabal. Mas comparações só fazem sentido se são comparadas categorias equivalentes - ou como diz o vulgo, não faz sentido comparar laranja com banana. Contrapor a massa salarial de pretos e brancos não diz grande coisa, se uns têm empregos pouco qualificados e outros têm empregos mais qualificados. A comparação seria conclusiva se fossem comparados salários de brancos e pretos que executam estritamente a mesma função. Aí com certeza os salários dos negros continuariam a ser menores, mas não em um percentual tão alto quanto o obtido comparando-se a massa salarial de todas as ocupações juntas; todavia, teria-se nesse número a medida exata do racismo. O mesmo ocorre com o número total de assassinatos: a comparação não é conclusiva se não se entra no mérito do motivo do assassinato. Quantos podem ser atribuídos ao racismo? Quantos são apenas o reflexo de comunidades de alta criminalidade habitadas majoritariamente por negros?

É óbvio que existe o racismo por aqui - é tolice negar. Mas quem compara o racismo brasileiro com o racismo norte-americano não sabe o que está dizendo. A começar pela feição histórica do racismo norte-americano, que sempre foi institucional - as famigeradas leis Jim Crow - enquanto o nosso racismo sempre foi ex-forma. Uma diferença tão fundamental denota um desvio de origem. O racismo norte-americano surgiu como uma reação à possibilidade dos negros libertos da escravidão fazerem concorrência aos brancos, e assim ameaçarem sua preponderância política e econômica. Por este motivo, procurou-se sobretudo vedar o ingresso dos negros na política, por negar seu direito a voto, bem como o ingresso dos negros no mercado de trabalho qualificado, a fim de preservar o padrão de vida dos trabalhadores brancos, e isso foi feito mediante a segregação escolar.

O mesmo não se aplica ao Brasil do século 19, época da abolição da escravatura. Tínhamos, é certo, uma elite política e econômica que tampouco desejava perder sua posição de comando, mas o pretexto invocado para justificar a posição de comando desta elite nunca foi a supremacia racial, nem faria sentido se o fizesse, mesmo porque esta elite não era racialmente pura - desde os primórdios da colonização houve uniões com mulheres índias a fim de estabelecer alianças com as tribos. O país só "embranqueceu" efetivamente com a chegada de imigrantes europeus, a maioria após o fim da escravidão. O próprio caráter mestiço da população em geral, dificultando assim uma identificação clara de brancos e negros, já tornava o racismo, no mínimo, mais difuso.

E tampouco houve receio da concorrência dos negros libertos com uma classe trabalhadora branca, porque a própria falta de capilaridade social característica de nossa economia limitava tal possibilidade. Ao contrário do que acontecia nos EUA, onde o dinamismo muito maior da economia colocava negros e imigrantes europeus concorrendo pelos mesmos empregos, no Brasil a maioria dos ex-escravos libertos permanecia no campo, enquanto os operários da fábricas eram sobretudo imigrantes italianos. Em suma, aquela massa de ex-escravos despossuídos, que juntou-se aos igualmente despossuídos caipiras e caboclos, nunca foi uma classe perigosa a ser combatida pela elite de fazendeiros, mas sim uma massa de manobra a serviço destes, formando seus contingentes de eleitores de cabresto, trabalhadores e jagunços. Não por acaso, até hoje nos EUA o racismo é mais vicioso entre as classes trabalhadoras, enquanto que no Brasil o racismo sempre foi mais pronunciado entre os ricos, sendo atenuado ou quase inexistente entre os mais pobres.

Mas nada disso importa se além do conceito de racismo, o próprio conceito de negritude tem sido reformulado pelos militantes do movimento negro, deixando de ser um fato natural para adquirir uma acepção política: negros, agora, são todos os indivíduos que consideram-se não brancos e desprivilegiados em razão de sua raça. Com esta redefinição, pode-se até afirmar que o Brasil é um país de maioria negra. Para evitar dúvidas quando a esta classificação, o termo mulato tem sido desqualificado, acusado de ser ofensivo por se tratar de comparação com um animal de carga, a mula. Mas em suas origens no século 15, o termo não era ofensivo: tratava-se de mera metáfora para indicar hibridismo (a mula é um híbrido de cavalo e asno). Chamava-se "mulato" a tudo o que era híbrido de coisas diferentes, não apenas pessoas.

Quanto a mim, vejo o efeito deste arrazoado com uma cortina de fumaça que impede ver o real motivo da diferença social entre negros e brancos. Com certeza há racismo nos processos seletivos para empregos, privilegiando-se candidatos brancos. Mas na grande maioria dos processos seletivos para cargos de bom nível, só há candidatos brandos. Isso porque a maioria dos negros cursou escolas públicas ruins. Nesse ponto, culpar o racismo é uma desculpa providencial para quem não quer melhorar o ensino público com mais investimentos.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

O Refluxo da Religião

 A derrota do bispo Crivella nas eleições para prefeito no Rio de Janeiro parece sinalizar que um fenômeno que tomou conta do país começa seu refluxo. Refiro-me à virada para a religião, que fez (e ainda faz) pipocar uma igreja evangélica em cada esquina de cada comunidade, e elegeu dezenas de candidatos pastores.

A virada para a religião não é um fenômeno alvissareiro. Denota um desalento com a situação geral. Nos termos da doutrina hindu das quatro castas, mencionada em um artigo que publiquei, representa um retorno ao governo brâmane, com a suposta restauração dos valores abandonados. Por aqui observamos, de fato, uma corrida rumo ao conservadorismo, que não deixa de passar um sentimento de derrota: se voltamos atrás, é porque estávamos em um caminho errado.

Assim, se o fenômeno começa de fato a refluir, é sinal de que o otimismo em geral começa a voltar. Mas cabe aqui uma reflexão. Por que a religião continua a exercer um fascínio tão grande sobre as populações, fascínio esse que se transforma em poder? Como uma mensagem escrita para povos de séculos atrás continua tão atual?

Refiro-me, é claro, às religiões monoteístas (ou abraâmicas) - cristianismo, judaísmo e islamismo. A primeira delas a surgir, o judaísmo, trazia uma novidade inédita para o mundo de então: um deus que não se limitava a conceder graças em troca de oferendas, mas também exigia um comportamento ético da parte de seus seguidores. No caso do Brasil, deve ser destacado o cristianismo que emergiu na matriz do mundo ocidental, a civilização greco-romana de dois mil anos atrás. Os deuses então disponíveis para adoração não preenchiam todos os anseios da população. De fato, portavam-se, e inclusive pareciam-se fisicamente, com qualquer patrono do qual uma pessoa comum do povo pudesse se tornar cliente, apenas acrescidos de poderes sobrenaturais, mas de resto mantendo todas a fraquezas e falhas de caráter dos patronos de carne e osso.

Não espanta que tais deuses tivesse um aspecto por vezes caricato e não fossem levados muito a sério, exceto na esfera do folclore e das crendices populares. Os romanos e gregos cultos preferiam a filosofia à religião. E de fato a filosofia proporcionava muito mais respostas a seus anseios cognitivos e angústias espirituais, na forma de explicações lógicas. Mas havia um problema. A instrução era acessível somente aos ricos, as massas ficavam alheias ao saber.

Nesse contexto surgiu uma religião que tinha uma mensagem profética e doutrinária que era acessível tanto aos cultos quanto aos incultos - não precisava entender, bastava crer. O que leva milhões de indivíduos a crer em uma mensagem que lhes é fornecida sem discussão? A resposta é: o atendimento a seus anseios. Os deuses antigos, tal como os patronos dos quais eram clientes, eram tão inconstantes e temíveis quanto estes patronos, podendo como estes ser ora aliados, ora inimigos, ora benfeitores, ora malfeitores. O deus dos cristãos tinha um compromisso com seus seguidores, e sua lealdade era assegurada desde que suas diretivas fossem cumpridas. Acenava com uma melhoria das condições sociais da maioria da população, tanto que os primeiros cristão foram sobretudo escravos e mulheres. Aos escravos, afirmava que o reino dos céus pertencia aos humildes, e que os ricos e egoístas seriam punidos. Às mulheres, acenava com a proibição da poligamia e do divórcio, algo interessante para um tempo em que a maioria das sociedades permitia aos homens terem mais de uma esposa, bem como delas se divorciar sem lhes dar nada. Por isso o cristianismo triunfou sobre os antigos deuses.

Mas tais promessas não seriam coisa datada, que só faziam sentido no mundo de dois mil anos atrás? Com certeza. Se fosse baseado apenas em agrados à população pobre e oprimida, o cristianismo teria sido somente uma moda passageira, tal como o discurso dos políticos populistas da época atual. O que dá substância ao cristianismo, e lhe tem permitido estar presente século após século, é justamente algo que, em princípio, ele teria tornado desnecessário: uma filosofia, que é complexa, e portanto acessível somente aos estudiosos, mas cujo desconhecimento não impede que indivíduos incultos sigam os preceitos cristão, desde que assessorados por sacerdotes, padres ou pastores. Ao longo dos séculos o cristianismo tem agregado uma refinada elite intelectual, e esta elite forma a espinha dorsal, sustentáculo da doutrina, inclusive capaz de atualizá-la conforme a época, passando por vezes ao protagonismo na cena política, fenômeno observado recentemente no país, outras vezes voltando às sombras, mas sempre influente na cena intelectual. Este é o"pulo do gato" do cristianismo.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O Futuro Era Assim?

Não sei se foi uma época de otimismo em alta, ou eu que era novo e deslumbrado, mas tenho a impressão de que lá pelo anos 60 havia uma sólida e otimista expectativa quando ao futuro. Talvez puxada pelas viagens espaciais, a fascinante novidade de então, esperava-se que ali pelo ano 2000 teríamos um futuro a la Jetsons, com carros voadores, robôs e casas arejadas no alto de torres.

Mas se gosto tanto de pesquisar a História, é porque o futuro teima em repetir o passado. Até mesmo nos Jetsons, produto de entretenimento inteiramente moldado às ideias dos roteiristas, temos um robô empregada doméstica. Quer dizer que as hierarquias sociais do presente continuarão a existir no futuro, apenas substituindo a pessoa pela máquina, mas mantendo íntegro todo o simbolismo inerente -  a empregada-robô está estritamente paramentada como tal.

E no fim, o futuro chegou, pois o futuro, bom ou ruim, sempre chega. Mas tenho dúvidas se o mundo realmente melhorou. A impressão que fica é que houve melhoras, mas não no essencial. Muitas coisas previstas mostraram-se fantasiosas, como os carros voadores. Bem, o carro voador já existe, chama-se helicóptero, mas ninguém imagina um congestionamento de helicópteros, seria desastre certo. Hoje em dia, se você é rico o suficiente, pode ir de helicóptero da casa para o trabalho, mas nem o homem mais rico do mundo é capaz de ir voando ao cinema ou a seu restaurante preferido, como previam os futurólogos de mais de cem anos atrás. Santos Dumont gostava de ir voando em seus balões até os cafés que frequentava, foi o primeiro homem a fazer isso. E o último também.
 
Por outro lado, certos inventos não previstos nem mesmo pelos mais fantasistas surgiram efetivamente. Lembro-me de uma cena do filme 2001, Uma Odisseia No Espaço, feito em 1968, onde os astronautas percorrem a nave ultra-tecnológica conferindo os equipamentos, mas trazem nas mãos pranchetas e caneta, nada de palm-top. Lembro também do desenho de Speed Racer, com aquele automóvel cheio de funcionalidades que contrariavam as leis da física, todas acionadas por um botão no volante. Na minha opinião, a mais absurda de todas era acionada pelo botão G, bem no centro: uma portinhola se abria e saía uma pomba-robô voando com suas asas de metal, para levar mensagens e buscar socorro. Essa nem eu na época engolia. E foi a única que se materializou no futuro: chama-se drone. A única diferença é que voa com hélices, e não com asas de metal.
 
Outra previsão que se concretizou foi o trabalho remoto. O escritor Monteiro Lobato, lá pelos anos vinte do século passado, no livro O Presidente Negro, já previa um mundo de ruas vazias, manso de tráfego, pois a maioria das pessoas ficava em casa e transmitia por ondas de rádio seu trabalho ao escritório. Mas ironicamente, para que essa realidade se concretizasse, foi preciso a quarentena em consequência da pandemia do coronavírus. O que mostra que não era uma necessidade assim tão 
premente, afinal. Descobri que posso perfeitamente trabalhar em casa e transmitir meu trabalho pela internet, mas meu rendimento não melhorou por causa disto. E pergunto-me se a falta de exercício de quem fica em casa dias seguidos não vai causar um aumento das doenças inerentes ao sedentarismo.
 
Mas de modo geral, a impressão que tenho é que as grandes conquistas tecnológicas do futuro que chegou são amaldiçoadas pela palavra virtual. Não têm consistência material, se puxar a tomada, 
desaparecem. No visor do GPS, tudo está limpo e claro (e olha que eu nem previa GPS 30 anos atrás). Mas da janela do carro, vejo ruas esburacadas me conduzindo a favelas, e por este motivo que raramente uso o GPS. A eletrônica digital, tecnologia que de longe foi a que mais evoluiu, é 90% voltada para o entretenimento, e não tenho paciência para jogar videogame. Os 10% restantes foram voltados para aumentar a conectividade  e encurtar distâncias, originando o atual mundo globalizado. Mas quanto a casas, roupas, comida, segurança, meio ambiente, trânsito, infra-estrutura urbana, enfim, essas coisas palpáveis e essenciais à qualidade da vida, reais e não virtuais, melhoraram?
 
Acho que não.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Social Democracia e Fascismo

 Um dos obstáculos para o bom entendimento do momento político e econômico brasileiro é o emprego de terminologias importadas de outros contextos, que não se aplicam aqui como se aplicaram alhures. Na verdade, as palavras trocam de sentido ao mudar de latitude e de época. Se a chave para a compreensão do presente continua sendo o passado - ou seja, a História - não é possível apreciar a História apartada de seu contexto histórico, e aqui temos uma redundância. Aquelas definições que fizeram sentido naqueles países e naquelas épocas, podem ganhar um sentido diferente no país da época atual.

Uma dessas definições é o conceito de Social Democracia, hoje uma bandeira comum dos partidos de esquerda, ou que se dizem de esquerda. Mas em suas origens, a social democracia surgiu no quarto final do século 19 urdida por um governo conservador, aquele do chanceler Bismark no então segundo império alemão. Tinha como objetivo combater os movimentos socialistas ao contrapor reformas que atraíssem o apoio dos trabalhadores. E assim foi exportada para outros países. Lenin, vitorioso na primeira revolução socialista da História, definia a social-democracia como a tropa de choque da burguesia, que vinha combater os socialistas em seu próprio meio e disputando seu próprio público, maliciosamente transformando os trabalhadores em pretensos pequeno-burgueses.

Passadas muitas décadas e transplantada para essas terras, a Social Democracia adquiriu acepções diferentes. Primeiro compôs o nome de partidos sem ideologia definida, que eram social-democratas pro forma. O primeiro partido brasileiro que se propôs social-democrata de raiz foi o PSDB. Mas no poder, fez o oposto do que pregava, e paradoxalmente teve sucesso, com a vitória do Plano Real. Já o PT, em seus primórdios, coerente com o discurso de Lenin, condenava a Social Democracia, mas no poder fez um arquetípico governo social-democrata. Tudo fruto da conjuntura política e econômica que molda a ação dos políticos: o PSDB foi um partido social-democrata que por força das circunstâncias tornou-se liberal. E o PT foi um partido revolucionário que por força das circunstâncias tornou-se social-democrata, e hoje louva o legado varguista.

Um desdobramento desta mutação de conceitos foi a mutação de mais um conceito, o de neoliberalismo, termo muito repetido nos anos 80. Relatado na época à Inglaterra de Thatcher e aos EUA de Reagan, desde os anos 90 tem grudado como uma cola ao PSDB e suas ações de diminuição do Estado e privatizações de estatais. Já em desuso no resto do mundo, entre nós virou quase um palavrão. Em seu contexto original, o neoliberalismo foi uma reação aos excessos do chamado Estado de Bem-Estar Social, cujo alto custo limitava o poder de investimento do Estado e causava a estagnação da economia. Daí a revalorização de princípios clássicos do liberalismo econômico, severamente criticados por outros. Mas entre nós, tal como em nosso entorno latino-americano, jamais existiu um Estado de Bem-Estar Social, e o que se chama de neoliberalismo em geral refere-se aos cortes que qualquer governo se vê obrigado a fazer quando as despesas superam as receitas. Até presidentes de esquerda podem se tornar "neoliberais" se as circunstâncias o exigem, como foi o caso de Menem na Argentina.

Outro conceito desvirtuado, também transformado em xingamento e atirado sobretudo contra o governo Bolsonaro, é aquele grito: fascista! Fascista! Tudo que parece truculento ou reacionário é "fascismo". Mas o que foi o fascismo em seu contexto original?

Foi um regime totalitário, antiliberal, ultra-nacionalista e belicista, surgido na Europa do início do século 20, propondo a superação da democracia liberal, vista como ineficaz, e ao mesmo tempo um apresentando-se como um substitutivo ao socialismo revolucionário. Com esta finalidade, o fascismo substituía o internacionalismo operário pelo nacionalismo étnico e racial, e a expropriação pelo Estado dos meios de produção pela colocação do Estado como mediador entre o capital e o trabalho. O legado da Social-Democracia foi encampado e ampliado pelos regimes fascistas, não sendo de admirar que a nossa Consolidação das Leis do Trabalho tenha sido de todo inspirado pela Carta Del Lavoro de Mussolini.

Mas então, o fascismo é de esquerda? Essa colocação maliciosa revolta muitos comentaristas viciados na dicotomia Direita X Esquerda. Certamente que fascismo e socialismo não são a mesma coisa. Mas o fascismo nasceu do mesmo tronco que o socialismo, ambos fruto da revolução industrial no velho continente, que trouxe o acirramento do antagonismo entre patrões e trabalhadores, bem como do antagonismo entre as potências industriais. Fora deste contexto, o fascismo foi imitado em várias partes do mundo, inclusive aqui.

As características do fascismo são o culto à personalidade do Líder Supremo, o Partido Único, organizações de massa, símbolos e rituais, um certo exoterismo, militarismo, dirigismo da economia pelo Estado, apresentação de um inimigo externo real ou imaginário para catalisar a mobilização popular a este alvo e desviá-la da crítica ao governo, a presença de milícias controladas pelo Partido, e não pelo Estado. O regime atual, próximo de nós, que mais abarca essas características, é justamente o bolivarianismo venezuelano, sobretudo no que se refere ao culto à personalidade do líder vivo, culto místico à personalidade do líder morto Simon Bolivar (que nunca foi socialista) e a presença das milícias bolivarianas, controladas pelo partido, tal como as organizações de massa. Para quem tem conhecimento da História latino-americana, isso não surpreende: o bolivarianismo venezuelano do século 21 é um sucessor do peronismo argentino dos anos 40, lembrando que Perón era um admirador declarado de Mussolini.

Portanto, não se pode concluir que o fascismo seja o antípoda do socialismo. O verdadeiro antípoda do socialismo é a democracia liberal com seus parlamentos, que Marx afirmava serem o balcão de negócios da burguesia. O fascismo inverte esta relação entre burguesia e Estado: se nas democracias liberais (ou democracias burguesas) a burguesia comanda o Estado, sob o fascismo é o Estado que comanda a burguesia (na realidade os regimes fascistas criam uma burguesia para seu uso, seja favorecendo empresários aliados ou enriquecendo seus próprios acólitos, ao mesmo tempo em que perseguem e expropriam os burgueses não cooptados, fenômeno bem encarnado pela chamada boliburguesia).

Essa deturpação de conceitos contribui decisivamente para o não entendimento de quem somos, aonde estamos e para onde vamos. Sem dúvida que estamos presos aos trilhos de nossa própria História, distinta daquela de quem nos emprestou os conceitos que deturpamos, mas é angustioso não ter discernimento da própria História.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Revendo Nosso "Melting Pot"

 Um dos mais conhecidos mitos fundadores de nosso país diz respeito à miscigenação: o Brasil seria peculiar em razão da mistura de portugueses, índios e negros. Alguns apresentam essa característica nacional em tons melífluos, afirmando ser ela a origem do (suposto) caráter cordial e da ausência de sentimentos racistas em nossa população. Outros veem essa assertiva como uma mal disfarçada tentativa de conciliação de classes, e afirmam que nossa miscigenação nada mais seria que o reflexo do caráter predatório do dominador português, que chegava aqui emprenhando índias e escravas para depois abandoná-las. Outros ainda introjetam o antigo olhar estrangeiro sobre a terra abaixo do equador onde "não existe pecado", e devolvem pela via da academia, da literatura e do cinema o retrato do Brasil como uma imensa senzala habitada por mulatas assanhadas e portugueses lúbricos.

No meio dessa discussão, é oportuno citar um alvará régio de 1755, incentivando a união legal entre portugueses(as) e índios(as) e protegendo seus descendentes:

(Marquês de Pombal) – Eu, El Rei. Faço saber aos que este meu Alvará de lei virem, que considerando o quanto convém que os meus reais domínios da America se povoem, e que para este fim pode concorrer muito a comunicação com os Índios, por meio de casamentos: sou servido declarar que os meus vassalos deste reino e da America, que casarem com as Índias dela, não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos da minha real atenção; e que nas terras, em que se estabelecerem, serão preferidos para aqueles lugares e ocupações que couberem na graduação das suas pessoas, e que seus filhos e descendentes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra, ou dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças, em que serão também compreendidas as que já se acharem feitas antes desta minha declaração: E outro sim proibido que os ditos meus vassalos casados com Índias, ou seus descendentes, sejam tratados com o nome de Caboucolos, ou outro semelhante, que possa ser injurioso; (...) O mesmo se praticara a respeito das Portuguesas que casarem com Índios: e a seus filhos e descendentes, e a todos concedo a mesma preferência para os ofícios, que houver nas terras em que viverem; e quando suceda que os filhos ou descendentes destes matrimônios tenham algum requerimento perante mim, me farão saber esta qualidade, para em razão dela mais particularmente os atender. E ordeno que esta minha real resolução se observe geralmente em todos os meus domínios da America. Pelo que mando ao vice-rei e capitão general de mar e terra do estado do Maranhão e Pará, e mais conquistas do Brasil, capitães mores delas, chanceleres, e desembargadores das Relações da Bahia e Rio de Janeiro, ouvidores gerais das Comarcas, juízes de fora e ordinários, e mais justiças dos referidos estados, cumpram e guardem o presente alvará de ley, e o façam cumprir e guardar na forma que nele se contém; o qual valerá como carta, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, e se publicará nas ditas comarcas, e em minha chancelaria mor da corte, e reino, onde se registrará, como também nas mais partes, em que semelhantes alvarás se costumam registrar; e o próprio se lançará na Torre do Tombo. Lisboa, quatro de abril de mil setecentos e cinquenta e cinco. – Rey

Então, nossa miscigenação não é exatamente produto do "Estupro Fundamental", como muitos denominam a chegada aqui dos portugueses. Mesmo porque o propósito do estupro não é produzir descendentes, embora isso possa acontecer. Nenhum historiador sério acredita que o atual povo francês seja o produto de mulheres gaulesas estupradas por invasores romanos, nem que o atual povo escocês é o produto de mulheres celtas estupradas por vikings, mas muitos acreditam que nossa vasta população morena tenha sido gerada por uma série de estupros de portugueses sobre índias e escravas. Tem a ver com os mitos fundadores que fazem o gosto das pré-suposições: os colonos da América do Norte eram puritanos que chegavam com suas famílias, dispostos a construir um novo país, enquanto os portugueses, povo meridional possuído pela sensualidade tropical, fizeram uma farra doida com as mulheres locais, originando assim dois países: um ordenado, porém racista; outro bagunçado, porém isento de racismo. Assim teriam surgido os EUA e o Brasil. Ponto.

Mas os cultores desta teoria omitem um dado histórico fundamental: ao contrário do que sucedeu nos EUA, as primeiras levas de colonos que aportaram aqui só traziam homens. Esses colonos não tinham outra alternativa senão desposar mulheres índias, mesmo porque eram só um punhado e não podiam sobreviver sem aliança com as tribos. É fácil de conceber que um colono que chega em uma terra desconhecida e despovoada, da qual não pode esperar qualquer proteção, sente a necessidade imperiosa de produzir descendentes o mais rápido e na maior quantidade possível, mesmo porque, sem os quais, não terá sequer como sustentar-se quando lhe faltarem forças para o trabalho.

Descendentes em grande quantidade e leais ao patriarca só podem ser concebidos via uniões estáveis. Conclui-se, portanto, que os colonos não saíam por aí emprenhando índias, mas ao invés disso se casavam com elas respeitando as convenções locais. Mesmo porque não teriam o favor das tribos se desrespeitassem suas mulheres. Outro fator que pode ter contribuído para a lenda do colono cafajeste que abandonava os filhos seria uma interpretação equivocada dos costumes dos índios, que aceitavam a poligamia, e cujos filhos só permaneciam na companhia dos pais até uns 8 anos, sendo criados coletivamente pela tribo após esta idade.

Foi assim nos primórdios da colonização. Depois começaram a chegar mulheres europeias nos navios, e já não havia necessidade de se casar com mulheres locais. Estando os colonos bem estabelecidos e com poder, diminuía a necessidade de alianças com as tribos. A partir de então os esporádicos enlaces entre colonos e mulheres índias assumiriam o caráter do que hoje chamamos de sexo casual, ou mesmo estupro, mas é duvidoso que um grande contingente populacional tenha sido formado por esta via, mesmo porque a maioria das tribos aceitava o infanticídio e não permitia o nascimento de nenhuma criança indesejada. Ademais, a massa de mestiços, chamados caboclos, já havia sido gerada nos primórdios da colonização, e reproduzia-se vegetativamente.

Outra lenda que precisa ser revista é aquela que afirma que a população de mulatos teria sido gerada exclusivamente pelo estupro de escravas. Estupros com certeza ocorreram, mas é preciso lembrar que os costumes da época podiam ser tolerantes com o abuso sexual das escravas, mas não eram tolerantes com crianças legítimas e bastardas convivendo sob o mesmo teto. Penso que maioria das crianças filhas das visitas do sinhôzinho à senzala era abortada, vendida para outra fazenda ou feita desaparecer por algum outro meio. Após o fim da escravidão, os negros recém-libertados começaram a se casar em número crescente com os antigos caboclos, que tinham uma condição social semelhante à deles, sendo essa a origem da maioria dos atuais mulatos (que a bem dizer, seriam cafuzos, descendentes de brancos, índios e negros). Uniões entre brancos puros e negros puros, possivelmente, eram tão raras naqueles tempos quanto hoje em dia.

Às vezes a História se constrói mais pela remoção de falsas suposições do que pelo adendo de novas descobertas.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Nosso Passado Não Resolvido

Quando penso no futuro, não esqueço do passado, diz a letra da música. Quem estuda a História sob uma perspectiva neutra, pensa no passado, e não no futuro. Mas quando o afã de pensar no futuro nos leva invariavelmente ao passado, temos aí o sintoma de um passado não resolvido. Recentemente descobri esse artigo instigante do jornalista e historiador Marcos Guterman, intitulado O País Enfrenta Superabundância de Passado Não Resolvido.
Como toda tentativa de repetição da História, há na aventura bolsonarista, nostálgica do regime militar, um tanto de farsa. O próprio presidente Jair Bolsonaro não foi exatamente um exemplo de bom militar e seria preciso um grande esforço para vê-lo como líder de uma retomada dos ideais que moveram os generais que governaram o Brasil entre 1964 e 1985
Qualquer um que tenha acompanhado a trajetória de Bolsonaro sabe que ele não foi um personagem do regime de 1964, mesmo porque não tinha idade para ter sido. E o modo como agiu destoa, aliás, dos ditames daquele regime. O então capitão foi preso por indisciplina ao reclamar dos baixos soldos da tropa, e entrou na carreira política como uma espécie de líder sindical portando as reivindicações dos oficiais de baixa patente, uma posição que pode ser classificada como de esquerda, e não de direita. Tornado presidente, sua política econômica liberal e privatista nada tem a ver com o nacional-estatismo do regime dos generais.
 
Diante destas constatações, o autor do artigo deduz que o ponto não resolvido do passado, ao contrário do que se supõe, não se localiza em 1964, mas em 1985, marco inicial da "Nova República".
 
De fato, o regime iniciado em 1964 e encerrado em 1985 não possui mais conexões com o presente. Subversivos armados são personagens extintos, como extinto está o modelo econômico desenvolvimentista de substituição de importações, iniciado por Vargas nos anos 30, levado pelos militares ao auge nos anos 70, e ao esgotamento nos anos 80. O malogro econômico do regime pôs fim ao mito de que os militares seriam governantes mais competentes que os civis, e desde então não se ouviram mais clamores pela volta dos militares ao poder, exceto em época recente, mas já em indisfarçável tom de saudosismo. Todos sabem que o regime de 1964 é incompatível com o tempo histórico atual, começando pelos militares que ora fazem parte do governo.
 
Mas não foi apenas o sonho desenvolvimentista autoritário dos generais que se esboroou naquele ano de 1985. A utopia socialista dos opositores do regime também já vinha em adiantada decomposição, o que foi confirmado ao final da década pela queda dos regimes socialistas do leste. Bem observou o autor do artigo, não foram apenas os bolsonaristas os inconformados em 1985. Naquele mesmo ano o PT proibiu seus oito parlamentares de participar do processo de escolha do presidente no colégio eleitoral e chegou a afastar os três que contrariaram a ordem e votaram em Tancredo Neves. Depois seus deputados negaram-se a assinar a constituição de 1988, deixando claro que não a reconheciam por considerá-la uma farsa da democracia burguesa. Ao mesmo tempo em que participavam de eleições e embrenhavam-se cada vez mais nos meandros da democracia burguesa que diziam não reconhecer, os petistas conservavam o discurso sectário, presos a um passado não resolvido que prometiam obsessivamente retomar em algum momento no futuro. A corda se esticou, e se rompeu em 2016, sinalizando a ruptura entre a prisão no passado e o futuro que não conseguiam alcançar. Conclui o autor do artigo:
É nesse ponto que o petismo e o bolsonarismo se encontram: no desconforto sobre o desfecho do regime militar. Para os bolsonaristas, a Nova República serviu para franquear a máquina estatal a parasitas do dinheiro público e a minorias moralmente abjetas, alimentando saudades da ditadura, supostamente incorruptível e a salvo da perversão comunista. Para os petistas, a Nova República foi o modo que as elites encontraram para proteger seu modelo hegemônico das demandas crescentes de inclusão social e participação política desde os estertores da ditadura
A sensação que fica é a de quem pegou um atalho errado, e deparando-se como fim da trilha, quer voltar ao ponto de partida. O clima é de saudosismo, farsa e desalento. O país do futuro perdeu seu norte em 1985. E agora vive do passado. Até quando?

domingo, 9 de agosto de 2020

Que Fim Levou o Socialismo?

Nesses tempos de desalento, fica a impressão de que a utopia morreu. Se morreu, cumpre entender sua causa mortis. Refiro-me à utopia socialista, que embalou os sonhos de múltiplas gerações, e até quem não acreditava nela, achava-a bonita. Alguém ainda acredita nela? Há renitentes defensores, que mantém a fé sustentada por argumentos por toda a vida. Eu achei interessante essa entrevista do sociólogo Antônio Cândido, uma das últimas que ele concedeu antes de morrer. 
 
 "Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial (...) Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado"
 
Quando um aluno contrapôs que o capitalismo também tinha uma face humana, ele replicou:
 
"O capitalismo não tem face humana nenhuma (...) O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia"
 
A última afirmação de Antônio Cândido provocou curiosidade no entrevistador, pela aparente contradição. Ele explicou:
 
"[Porque] virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder"
 
Penso que o sociólogo encontrou a resposta, meio que sem querer. O socialismo só dá certo quando não é implantado, e permanece como utopia, eventualmente arrancando concessões do capitalismo. De fato, os únicos regimes socialistas que restaram no mundo foram aqueles que se abriram ao capitalismo, mesmo que em apenas algumas localidades restritas - o melhor exemplo é a China. Cuba vai pelo mesmo caminho: toda a liberdade ao capital, nenhuma ao indivíduo. Já a Coréia do Norte, por certo Antônio Cândido ficaria embaraçado se lhe pedissem apontar onde está a face humana ali, mas a Coréia do Norte é ponto fora da curva.
 
Mas afinal, como um regime pautado por tão nobres ideais, que reconhecidamente obteve grandes conquistas para os trabalhadores, pôde fracassar tão fragorosamente?
 
Isso o sociólogo não disse, mas minha convicção é que o capitalismo triunfou sobre o socialismo precisamente em razão daquilo que Antônio Cândido afirmou que ele não possuía - o rosto humano. Não me refiro ao rosto humano no sentido de bondade, mas de compatibilidade com a natureza humana, que é individualista. Ao contrário do socialismo, o capitalismo não foi uma criação de filósofos, mas surgiu da necessidade e da materialidade, espontaneamente. Algumas práticas capitalistas são tão antigas que existem a milênios, e outras são tão elementares que sobreviveram mesmo dentro dos regimes comunistas mais fechados. O capitalismo está sempre renascendo, como os tufos de relva que surgem pelas frestas das calçadas quebradas.
 
Enfim, é isso: o benefício não é tão bom quanto o salário, a igualdade não é tão boa quanto a liberdade, a segurança não é tão boa quanto a oportunidade. O mundo real é duro, mas como disse Andy Wharrol, ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife. E a utopia? Precisa existir, porque sonhar também faz parte da natureza humana. Mas convém não esquecer aquele ditado safado: nunca deseje demais uma coisa, você se arrisca a obter o que deseja...

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Da Distopia à Utopia

Cansados da "bad trip" por que passa o país, que passou da utopia à distopia, conforme mencionei em meu último artigo, alguns observadores estão ansiosos pelo momento em que o país finalmente passará da distopia à utopia. O jornalista Zuenir Ventura escreveu um artigo com este título nos últimos dias.

O veterano Zuenir fez uma comparação ingênua entre o momento atual do Coronavirus e os tempos da peste negra do século XIV, esta igualmente originada da China, que devastou a Europa, mas no dizer do jornalista, "Mesmo esse horror foi capaz de incubar um dos mais ricos movimentos culturais, o Renascimento, que produziu gênios como Leonardo Da Vinci, Michelangelo e Rafael, para só citar os principais. Uma tese tenta explicar o divino mistério desse período: a devastação de Florença pela peste provocou uma tal mudança de mentalidade e de visão que, paradoxalmente, teria levado ao Renascimento"

É fato que a súbita retirada de milhões da população trouxe algumas consequências benéficas para a economia na época, como a maior oferta de terras e de casas vazias. Mas nem usando muita imaginação eu consigo vislumbrar como isso possa ter de algum modo alterado a mentalidade das pessoas e provocado o Renascimento. Penso que este movimento já vinha sendo incubado desde o final da Idade Média, e foi acelerado pela migração de inúmeros letrados do antigo Império Bizantino para a Itália após a queda de Constantinopla, que aconteceu pouco antes. Mas Zuenir tem imaginação suficiente para chegar a esta conclusão. Não me surpreende que ele anseie pela utopia: foi um dos grande utópicos dos anos 60, sobre os quais escreveu o emblemático 1968, O Ano que Não Terminou. E pelas décadas seguintes fez o que pôde para permanecer otimista. Eu particularmente me lembro da entrevista que fez com o traficante Flávio Negão para o livro Cidade Partida, na qual destacou, enternecido, a afirmação do entrevistado de que nunca assaltara um ônibus porque "lá só tem trabalhador". Magnífica demonstração de consciência social da parte do bandido. A meu ver, magnífico "wishful thinking" da parte do autor. Zuenir não quis considerar a hipótese de que Flávio Negão não assaltava ônibus porque não compensava roubar trabalhadores sem vintém.

A última utopia dessa turma foi, de fato, transformar marginais das favelas em heróis populares defensores de suas comunidades. Nem essa cola mais nos dias de hoje. Mas compreende-se: nos anos 60, a utopia estava indelevelmente ligada à ideia de uma revolução a ser feita. Até mesmo os militares chamavam sua tomada do poder de "revolução". Eu particularmente não gosto da ideia, pois além das desgraças que provocam, revoluções muitas vezes mudam o ruim para pior, e na melhor das hipóteses, fazem com violência o que podia ter sido feito pela negociação, sem prisão nem fuzilamento. Mas como estudioso da História, eu sou obrigado a reconhecer que bem ou mal, o mundo em que hoje vivemos é o produto de uma série de revoluções.

De quem não gosta de mudanças bruscas e violências, diz-se que é um sujeito contemplativo. Eu de fato gosto de contemplar paisagens. A psicologia explica porque é reconfortante ficar olhando longamente uma paisagem natural: é que elas oferecem a nossos olhos o contraponto à paisagem urbana das cidades, esta sempre em mutação. Mas os morros, vales e rios, esses podemos ter a tranquila certeza de que permanecerão  para sempre iguais a como eram em nossa juventude, certo? Só que não é bem assim. A paisagem natural muda, também, e não só por ação humana, mas por ação da própria natureza: a chuva, os ventos, a erosão. A cena bucólica que contemplamos foi moldada por um passado de eventos catastróficos como enchentes, terremotos, erupções vulcânicas, encostas que desabam. E do mesmo modo, a imagem plácida dos países ordeiros onde as leis prevalecem, os partidos se alternam no poder e os cidadãos têm garantias, esconde um passado de eventos brutais como guerras, revoluções, migração, colonialismo e escravidão. Mas tanto em um quanto em outro, tudo isso acontece tão lentamente que a ilusão da imobilidade satisfaz as expectativas de quem gosta de ordem.

Quanto a mim, no momento, prefiro ficar olhando a paisagem. Não há muito de alvissareiro para comentar no país atual.

domingo, 21 de junho de 2020

Brasil da Utopia à Distopia

Quem é da minha geração deve se lembrar de um tempo de otimismo algo ingênuo quanto aos destinos do país. Não sei se tudo começou com a obra Porque Me Ufano de Meu País, publicada em 1900, que lançou o termo ufanismo, mas no meu tempo era bem perceptível. Pelo senso comum, o Brasil era pobre (ou subdesenvolvido), mas tinha um futuro promissor. Havia a utopia do país moderno, da construção de Brasília e dos 50 anos em 5 de Kubitschek. Os guerrilheiros que pegaram em armas contra o regime militar tinham a utopia de uma sociedade socialista. Os próprios militares tinham a utopia do "milagre brasileiro".

Hoje isso acabou. Não há mais otimismo ingênuo no ar, que parece carregado de eletricidade. Escreveu um estudioso francês. O Brasil passou do sonho à distopia. Entende-se por distopia um cenário de governos totalitários ou ideologias que criam condições de vida insuportáveis à sociedade. O oposto da utopia.

"Estrada defende que o tripé "democracia/crescimento/previsibilidade" que fazia o Brasil ser visto há dez anos como "o campeão dos emergentes" ruiu e que o "inaceitável passou a se tornar aquilo que é normal" no governo do presidente Jair Bolsonaro"


"O consenso democrático pós-1988 no Brasil já caiu por terra. A democracia brasileira já está sob tutela, ressalta Estrada"


O atual presidente, que poucos anos atrás ninguém cogitava pudesse tornar-se presidente, chegou ao poder graças a um descontentamento difuso que corroeu a confiança nas lideranças tradicionais. Houve de fato um excesso de promessas e decepções nos últimos anos. O voto em Bolsonaro foi um voto de impaciência e raiva. Ou de desalento. Os alarmistas clamam que o presidente é fascista e que planeja implantar uma ditadura. Mas quem ainda consegue raciocinar sem paixão vê que não é bem assim, como nesse artigo intitulado "Bolsonaro Talvez Nunca Seja o Fascista que Gostaria de Ser".

"Bolsonaro 'mente como um fascista, elogia ditaduras e ditadores como um fascista, glorifica a violência', afirma Finchelstein. Porém faltam os elementos na sociedade necessários para sustentar um regime fascista, como a supressão da imprensa e a submissão do Judiciário. No mundo, seu comportamento está próximo ao dos primeiros-ministros Narendra Modi, na Índia, e Viktor Orbán, na Hungria"


Inexistem, de fato, as condições políticas e sociais para que se possa implantar um regime ditatorial fascista no país na época atual. O presidente é um populista de direita, não um fascista. Provavelmente chegará ao final do mandato, mas não fará seu sucessor, e será mais uma das singularidades de nossa história política, daquelas que surgem de tanto em tanto em momentos de descrédito e desejo ansioso por mudanças. O que virá depois, não sei. Tudo depende de por quanto tempo permanecerá sobre o país essa nuvem de desalento que dá origem às distopias, e do surgimento ou não de novas lideranças.

Essas novas lideranças vão criar novas utopias? Espero que não. Entre utopia e distopia não vai uma distância grande, depende só da imaginação, há sonhos bons e sonhos maus. E certas utopias têm o poder de imobilizar e prender ao passado, em busca de um futuro que não será alcançado - ou com perdão pela autocontradição, em busca por um futuro que já passou. É assim que ficamos andando em círculos enquanto lá fora o mundo avança sem nós. Como escreveu Jabor certa vez, alguns países se constroem por soma, outros por subtração. Penso que, quando eliminarmos todas as falsas expectativas e utopias requentadas, o que sobrar será o Brasil

domingo, 17 de maio de 2020

Nem Isabel, Nem Zumbi

Todo ano, a cada 13 de maio, é retomada a discussão acerca do real significado desta data. Já foi inconteste que se tratou da abolição da escravatura no país, um acontecimento a ser festejado. Mas os militantes dos movimentos negros não gostam dela. Dizem que a abolição pouco significou, pois os negros continuaram em posição desfavorável e vítimas de racismo, o que não deixa de ser verdade. Mas parece-me claro que o principal motivo da anátema dos movimentos negros contra o 13 de maio foi haver erigido como heroína do dia a princesa Isabel, que assinou a lei.

Então os escravos devem sua liberdade à magnanimidade de uma princesa de olhar bondoso? Não foi o que de fato aconteceu, mas é a impressão passada. Obviamente indigna para os militantes, que veem as lutas pregressas dos escravos serem ignoradas. Eles preferem ter como herói um guerreiro, alguém que arranca suas conquistas com a força, como Zumbi dos Palmares. Para eles, a data a ser comemorada é o dia da Consciência Negra em novembro, dia de Zumbi.

Sabemos que a imagem dos heróis do passado é retocada para servir ao presente, devendo representar aquilo que se quer representar. Mas quem se interessa pela História deve desejar conhecer quem realmente foram aqueles personagens, e qual o papel que efetivamente desempenharam para um dado evento histórico, no caso, o fim da escravidão. Quem foi Isabel? Quem foi Zumbi?

O posicionamento de Isabel face ao movimento abolicionista é controverso. Alguns autores, como Mary Del Priore, afirmam que ela era desinteressada do tema, bem como da política em geral. Outros afirmam que Isabel tinha ligação com quilombolas e lhes dava apoio. O que se sabe com certeza é que seu papel na assinatura da lei foi meramente protocolar. A luta foi para convencer deputados e senadores, e não os monarcas; Isabel já estava ciente de que a grave crise provocada pela persistência da escravidão punha em perigo o regime. Uma lenda renitente afirma que foi por causa da abolição que a monarquia foi suprimida, o que fortalece a aura mística que se formou em torno da princesa: para libertar os escravos, ela sacrificou o próprio trono. Como toda lenda, esta tem um fundo de verdade. Independente do real alcance de seu papel no movimento abolicionista, é consenso que Isabel teve um papel decisivo na queda do gabinete do Barão de Cotegipe, o último ministério escravagista, e na ascensão do gabinete de João Alfredo, que fez a abolição. A partir de então, os ex-proprietário de escravos, ressentidos, passaram a abandonar crescentemente o apoio à monarquia e aderir ao movimento republicano, até então pequeno e quase insignificante. Esta adesão dos elementos mais conservadores do país ao republicanismo foi crucial para a proclamação da república, mas também responsável pelo caráter conservador e dominado pelos fazendeiros que o novo regime viria a ter.

A consequência não planejada daqueles eventos, porém, foi ligar a figura da princesa Isabel indelevelmente à causa abolicionista, gerando a lenda da princesa como "redentora". Isso sem dúvida serviu aos propósitos dos que desejavam exibir uma imagem edulcorada do episódio da abolição, vista como concedida pelo auto-sacrifício de uma princesa magnânima. Na realidade, quem deveria ter assinado a lei era o pai da princesa, o imperador Pedro II, a quem sucedeu estar doente na ocasião. E ironicamente, os maiores responsáveis pelo crescimento do mito foram os próprios ex-escravos, que passaram a cultuar a princesa quase como uma santa popular. Ignorantes dos meandros da política e imersos em uma sociedade patriarcal, era assim que compreendiam os acontecimentos.

O verdadeiro herói da abolição da escravidão seria, então, Zumbi dos Palmares, líder do quilombo fundado no século 17 por escravos que se rebelaram contra seus senhores. Faz sentido: Zumbi não recebeu sua libertação por bondade de outrem, mas lutou para conquistá-la e mantê-la. Mas Zumbi teria lutado pela libertação dos escravos como um todo?

A resposta é não. Havia escravos em Palmares, e afirma-se que o próprio Zumbi teria sido proprietário de escravos. Não há provas disto, mas é de se supor, dada sua alta posição no quilombo. Os dados a respeito de Zumbi são sumários e envoltos em lendas. Uns afirmam que foi criado por um padre, e posteriormente fugiu para o quilombo; outros afirmam que já nasceu no quilombo. Sua figura permaneceu obscura por muito tempo, até ser resgatada juntamente com a figura dos bandeirantes do século 17. Interessados em criar mitos fundadores da nacionalidade brasileira, historiadores do século 19 exaltaram os bandeirantes como desbravadores responsáveis pela conquista do atual território nacional, e neste processo a figura de Zumbi também foi mitificada, mas para o papel de um antagonista: o fundador de um anti-Brasil, africano ao invés de português, guerreiro valoroso que devia ser derrotado para o estabelecimento do país tal como se conhece hoje. Em época recente, a figura de Zumbi foi novamente resgatada, desta vez por militantes do movimento negro, que criaram o mito de Palmares como uma comunidade livre e igualitária em meio à opressão escravista da sociedade colonial.

Tampouco há grande conhecimento de como era por dentro o Quilombo de Palmares, mas as informações disponíveis são sucintas: só eram livres os que chegavam a Palmares por seus próprios meios. Aqueles que os palmarinos capturavam em suas incursões às fazendas, ou adquiriam pelo comércio, permaneciam escravos, e só se tornavam livres se participassem de uma expedição para capturar mais escravos. Isso está conforme aos costumes das tribos guerreiras africanas, que procediam da mesma maneira.

E a fuga de Palmares era punida com a pena de morte. Como não é de se crer que esses fugitivos ambicionavam retornar à servidão, provavelmente fugiam de perseguições políticas ou de obrigações contraídas com os líderes do quilombo, o que mostra que Palmares estava longe de ser uma idílica comunidade livre e igualitária. Decerto reproduziam-se ali as hierarquias sociais da África da época, inclusive a escravidão. Mas não é surpreendente, nem deveria ser decepcionante que Zumbi dos Palmares não tivesse propósitos de abolir a escravidão. Independente do que é lenda ou verdade a seu respeito, não há dúvida de que Zumbi era um homem do século 17, e um homem do século 17 não acreditava em uma sociedade sem escravos. Essa ideia só tomou corpo no movimento iluminista do século seguinte.

Nem Isabel, nem Zumbi, a abolição da escravatura no Brasil foi produto de um processo gradual, que aos poucos tornou economicamente inviável o velho sistema, incompatível que era com o capitalismo industrial, e urdiu pressões internacionais e revoltas internas. Mas é difícil entender a História sem heróis.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Não Subestimem Bolsonaro

Bolsonaro quer ser ditador. O problema é que a única afinidade que ele tem com a ditadura é uma admiração pueril por um defunto regime militar, no qual, no presente momento, nem os militares acreditam mais.

Desde a aparição do fenômeno Bolsonaro, eu venho dizendo: seu governo só terá chances de sucesso se Bolsonaro deixar seus assessores governar. Se quiser mandar sozinho, o país será lançado em um rumo incerto, que pode terminar naquele conhecido roteiro, pelo qual o país expele corpos estranhos que de tanto em tanto se imiscuem em seu organismo político: refiro-me a Jânio Quadros em 1960, Collor de Mello em 1990, e no meio do caminho, Paulo Maluf em 1984, este expelido antes mesmo de se tornar presidente. Em comum, todos tiveram uma trajetória meteórica de ascensão e queda, tendo chegado ao centro do poder com um discurso anticonvencional, e desligados dos partidos políticos dominantes no momento. Bolsonaro será o próximo? Muitos apostam que sim.

Jair Bolsonaro teve raízes obscuras. De deputado do baixo clero, mais conhecido por seus bate-bocas de baixo calão, tornou-se presidente, mas não mudou de estilo: continua afeito a polêmicas estéreis, agora com seus assessores. Essas polêmicas quase sempre resultam em condenação no país e no exterior. Entre os que votaram nele, fica a sensação de que seu presidente faria melhor ficando de boca calada, e seus adversários ficam em júbilo pelo desgaste que ele próprio causa a sua figura.

Mas Bolsonaro não é para ser subestimado. É o que diz este artigo, escrito pelo brasilianista Anthony Pereira nos EUA (nos momentos de violenta polarização interna, o olhar vindo de fora é sempre oportuno).

"Não quero subestimar Bolsonaro como fenômeno político. O bolsonarismo é uma força orgânica no país"


Bolsonaro pode estar desgastado, mas ainda conta com respeitável percentual de aprovação, e o mais importante, seus apoiadores são fiéis. Sua ruptura com Moro foi o lance final da disputa entre o bolsonarismo e o lavajatismo, duas correntes que muitos julgavam parte da mesma linha política, mas que na verdade sempre foram distintas e independentes: o bolsonarismo mais preocupado com questões culturais e ideológicas, o lavajatismo querendo a continuação das investigações contra a corrupção.

É arriscado prever como essas duas correntes vão se comportar agora. O governo Bolsonaro terá, sem dúvida, um estremecimento, mas não é sabido se Moro ficará nas sombras, ou se emergirá como candidato à sucessão. Com o país imobilizado pela pandemia do Coronavírus, em compasso de espera, o melhor a fazer é esperar antes de fazer previsões. Em todo caso, a História está aí para servir de referência.

domingo, 19 de abril de 2020

O Neoliberalismo de Bolsonaro

Há pelo menos 30 anos, um rótulo nos persegue: o neoliberalismo. Tão repetido que já ninguém sabe defini-lo: seu significado é auferido do contexto. Foi dito que FHC introduziu o neoliberalismo no país, então o neoliberalismo tem a ver com cortes, privatizações, diminuição do Estado. Atualmente é ponto pacífico que o governo Bolsonaro conduz um modelo econômico neoliberal, embora nenhuma grande privatização tenha sido anunciada até agora.

Mas quando se tenta proceder a uma análise que contrapõe versão e fatos, as contradições aparecem. Esse artigo levanta uma série que questionamentos:

"O Bolsonarismo é anti-globalista, anti-multilateralista, anti-ambientalista. Então como pode ter na politica econômica uma plataforma que depende da percepção positiva do conjunto dos países centrais que tem como linha de ação geopolítica o anti-populismo de direita e ter um comando Neoliberal Globalista na economia?"


"A combinação Bolsonarismo com Neoliberalismo é impossível sob o ponto de vista conceitual, é um coquetel explosivo e impalatável"


"O Bolsonarismo é um conjunto de ideias populistas de ultra-direita, um sistema incompatível com o Neoliberalismo, que é globalista e pelo Estado mínimo, uma mistura indigesta, incompatível com a lógica politica e econômica"


Pois a meu ver, a explicação para tanta contradição é simples e até óbvia: o neoliberalismo não pode coexistir com a política do governo Bolsonaro porque de fato nunca foi adotado por este. Em linguagem simples, chama-se procurar chifre em cabeça de cavalo.

Na realidade, o neoliberalismo nunca existiu no Brasil. Foi coisa dos EUA de Reagan e da Inglaterra de Thatcher, e tratou-se de uma reação contra os excessos do Estado de Bem-Estar Social, cujos gastos excessivos estavam provocando estagnação econômica e desemprego. Mas no Brasil, nunca houve um Estado de Bem-Estar Social. O Estado brasileiro quebrou por seus gastos excessivos para sustentar a si próprio, e não aos cidadãos. Os anos 80 presenciaram o colapso do modelo de Estado Forte que foi a regra no país e em seus vizinhos desde meados do século passado, aqui passando pelo varguismo até chegar aos militares e seu nacional-desenvolvimentismo, que teve o auge nos anos setenta e o esgotamento na década seguinte. Sobrecarregado por seus gastos, o Estado brasileiro passou de indutor do desenvolvimento a peso morto que brecava o desenvolvimento. O que se chamou então de neoliberalismo na Era FHC nada mais foi do que a sequência de cortes e privatizações que todo o governo tem que fazer quando gasta mais do que arrecada. O termo, inclusive, já se encontra em desuso no resto do mundo, e só é repetido aqui, onde se tornou sinônimo de tudo o que há de ruim.

Mas o rótulo nos persegue, e volta e meia lá estamos nós de novo procurando chifre em cabeça de cavalo. Na prática, até governos nacionalistas de esquerda podem ser "neoliberais" quando a necessidade aperta, como foram o peronista Menem na Argentina e Dilma Rousseff em seu segundo mandato. Talvez esta fixação em malhar o judas neoliberal seja um sintoma de nostalgia do antigo Estado Forte, que criava um poderoso ethos nacional, resgatando valores nacionais, fomentando a cultura nacional e o patriotismo. Quanto a mim, não tenho saudades.

domingo, 29 de março de 2020

1964, Mais uma Rodada

Não tem jeito. Todo ano, aproxima-se o dia 31 de março, vem mais uma revoada de artigos comentando o movimento de 1964, que surge assim como um fulcro em nossa História, uma esfinge indecifrada, um episódio não digerido e ainda menos compreendido, e por isso mesmo não se pode dizer que pertence à História, já que ainda é presente. Os mesmos questionamentos se sucedem ano após ano: foi golpe ou revolução? Foi nacionalista ou entreguista? Os comunistas estavam mesmo prestes a tomar o poder? Se não tivesse havido essa ditadura, teríamos caído em uma ditadura de esquerda pior?

Antes que venha o falatório de todo ano, resolvi me antecipar e publicar aqui minha análise, procurando não repetir os argumentos de sempre. Serei original. Começo afirmando que a causa principal da não compreensão exata do significado do movimento de 1964 é a insistência (desculpável) de abordá-lo restrito ao contexto da guerra fria dos anos 60 e da luta de classes marxista do século 19. Na realidade, suas raízes são mais antigas. Remontam, de fato, ao positivismo de Auguste Comte que seduziu as mentes de militares brasileiros desde o final do império, e que teve longo histórico de influência na política nacional, sobretudo entre os gaúchos.

Conhecendo essas origens antigas do militarismo no Brasil, certas aparentes contradições do regime de 1964 podem ser explicadas. Como pôde o regime implementar um desenvolvimentismo tão análogo ao nacional-estatismo de Vargas, se formalmente o movimento se opunha ao varguismo e havia derrubado o presidente que se proclamava herdeiro de Vargas? Na realidade, tanto o getulismo quanto a doutrina propagada pela Escola Superior de Guerra, que embasava o regime, têm raízes no positivismo do início do século 20. Vargas foi um herdeiro direto do positivismo gaúcho de Borges de Medeiros. O militarismo brasileiro originou-se do movimento tenentista dos anos 20, herdeiro dos militares positivistas que derrubaram o imperador. Tais personagens podiam se desentender e optar por ideologias distintas, mas suas ideias políticas vinham do mesmo tronco, embora as raízes do dito tronco não fossem mais visíveis.

Conhecendo-se a doutrina propugnada por Auguste Comte, faz todo o sentido. Ele considerava a forma parlamentar de governo superada, e acreditava em uma "ditadura republicana, racional e científica". Um governo exercido por homens superiores e compenetrados, que supostamente fariam uma administração visando o progresso e o bem comum, seguindo critérios puramente técnicos, acima dos interesses oligárquicos, corporativos ou meramente pessoais dos políticos profissionais. Bastante utópico, sem dúvida, e discurso semelhante já foi reproduzido por muitos governantes autoritários considerados "progressistas", no Brasil e nas vizinhanças, até pelo ditador mexicano Porfírio Diaz, que tinha como divisa "pouca política, muita administração".

Um ponto que ninguém discorda é que o regime militar brasileiro foi bastante peculiar, fugindo ao arquétipo da ditadura militar sul-americana. Examinado de perto, contudo, corresponde à perfeição ao positivismo proposto por Comte cem anos antes. Nota-se:

Os generais-presidentes tinham plenos poderes mas não eram caudilhos, isso é, não eram personalistas nem se eternizavam no poder, invariavelmente deixando o cargo ao término estipulado de seus mandatos. Ou seja, o regime era totalitário, mas preservava o formato republicano, com alternância no poder e mandatos fixos. Esse modelo corresponde à "ditadura republicana" desejada por Comte.

A administração se caracterizava pelo protagonismo de superministros, cuja influência superava o escopo de suas pastas, com amplas atribuições de planejamento centralizado. Delfim Neto e Mário Simonsen foram os mais notáveis. Esses superministros e suas equipes eram chamados de tecnocratas. Verifica-se a correspondência com o ideal comtiano de uma ditadura "científica", supostamente guiada apenas pelo parecer técnico.

Os discursos e as propagandas da época caracterizavam-se pela repetição de slogans patrióticos e não de slogans partidários, exaltando o progresso e o amor à pátria. Criava-se desta forma a impressão de que os governantes eram altruístas e visavam o bem comum, em substituição à incompetência e à corrupção dos políticos. Tudo a ver com o ideal comtiano do "amor por princípio, ordem por base e progresso por fim".

É irônico que os positivistas que derrubaram o imperador tenham chegado ao poder cem anos depois, quando não se falava mais em positivismo. Em sua época eles tentaram alçar o poder através do governo ditatorial de Floriano Peixoto, mas o "marechal de ferro" não ligava muito para textos de filósofos, e em seu governo havia mais militares na cadeia do que no poder. Os jornais positivistas, contudo, escreviam sem receio que a forma ideal de governo era a ditadura militar. Foram banidos durante o governo Prudente de Morais, mas as ideias positivistas, internalizadas nos hábitos mentais da caserna, passaram de geração em geração, e muitos continuavam a ver os militares como reserva moral da nação e investidos do Poder Moderador formalmente extinto com o fim da monarquia - enquanto os militares exercessem esse Poder Moderador, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerras civis.

O protagonismo militar na política ressurgiu com o movimento tenentista nos anos 20, e pelo século adentro o dito poder moderador foi exercido em muitas ocasiões, até ser transformado em poder executivo após 1964. No primeiro momento, o poder foi tomado por um conluio entre a liderança udenista e oficiais imbuídos da Doutrina de Segurança Nacional propagada pela ESG, mas o verdadeiro estamento burocrático do novo regime era o núcleo de militares-executivos colocados na direção de companhias estatais, criação de Juscelino Kubitschek na década anterior, que assim pretendia fabricar um grupo de apoiadores. Esse estamento burocrático ocupou gradualmente o cerne do poder nos anos seguintes ao golpe. Castelo Branco assumiu a presidência com plenos poderes, mas ao passar a faixa para Costa e Silva, com cuja candidatura não concordava, era já um mandatário esvaziado de todo o poder. Costa e Silva promulgou o AI-5 e tornou-se efetivamente um ditador, mas antes de ser imobilizado por uma trombose, estava já totalmente imobilizado pelo núcleo de oficiais conhecidos como a linha dura. A escolha de Emílio Médici representou a plenitude do novo regime.

O mote inicial do regime era o combate à subversão e à corrupção, mas logo ficou claro que para além desses objetivos, havia um projeto desenvolvimentista. Esse projeto, surpreendentemente, não se desviou do nacional-estatismo de Vargas e Kubitschek, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e "entreguista" (Kubitschek, Castelo). De fato, foi no período do governo dos militares que esse modelo chegou ao auge, com o "milagre" dos anos 70, bem como ao estertor, com o esgotamento nos anos 80. O regime, entretanto, não se perpetuou. Seu líder máximo, o presidente Médici, não se revelou um líder político, mas um gestor autoritário, concentrado em obras, e não em projetos políticos. Embora seu governo tenha sido o apogeu do regime, juntando o máximo rendimento econômico com o máximo poder sustentado pela máquina da repressão, Médici não fez um sucessor à sua semelhança e permitiu a volta do moderado grupo castelista, na figura de Ernesto Geisel. Esse grupo urdiu a abertura política, àquela altura essencial em razão do declínio do modelo econômico, e o governo militar brasileiro foi o único regime militar sul-americano a deixar o poder sem ser derrubado por um golpe, com a escolha de Tancredo Neves dentro do arcabouço constitucional herdado do próprio regime.

Mas a marca ficou. Uma herança do período de governo dos generais foi, ironicamente, a destruição da direita nacional. A vanguarda civil udenista, com Carlos Lacerda à frente, queria assumir o poder e foi prontamente liquidada pelos militares. A UDN foi desfibrada, tendo seus líderes cassados e os demais atirados na vala comum dos dois partidos mantidos pro forma. Nunca mais surgiria no país uma direita ativa e intelectualmente destacada como nos tempos de Carlos Lacerda. A classe política que emergiu após o fim do regime era provinciana e medíocre, personificada em tipos como José Sarney, que antes de 1964 nunca se cogitaria estar um dia no centro do poder. De fato, a classe política brasileira até hoje não se recuperou, e não se pode dizer que sua destruição foi um acidente: o regime de 1964 agiu fiel aos princípios de Auguste Comte, que via na política parlamentar um atraso. Consoante com esses princípios, todas as reformas constitucionais pós 1964 foram no sentido de prestigiar o eleitorado dos rincões do interior em detrimento ao eleitorado das grandes capitais. Não mudou muito de lá para cá. Por outro lado, o regime ditatorial foi pouco repressivo se comparado a nossos vizinhos: duas centenas e meia de mortos e outros tantos desaparecidos em vinte anos de ditadura, comparado aos mais de quinze mil mortos na Argentina, de população bem menor e em um período bem mais curto.

A crise econômica que se seguiu ao fim do regime abalou o mito dos militares como governantes superiores aos civis, e nos anos seguintes, até recentemente, não se registraram mais clamores por uma volta dos militares ao poder. Neste século 21, as ideias positivistas que embasaram a ditadura parecem mortas. A própria ditadura sempre clamou ser provisória, justificada pelo perigo da subversão comunista, e manteve sempre uma fachada democrática, posto que o discurso da época da guerra fria afirmava que o conflito existente opunha o totalitarismo comunista ao "mundo livre" democrático.

Mas a memória do regime dos generais continua a perturbar, agora mitificada. Teria sido uma época em que não havia corrupção, com segurança pública, patriotismo e empregos abundantes. O atual presidente não esconde sua admiração pelo período, mas o governo que conduz nada tem em comum com o nacional-estatismo dos militares de 1964 - a política econômica da equipe de Bolsonaro é liberal e desestatizante. A meu ver, não há compatibilidade nenhuma entre o período e a época atual, sendo a única explicação para a perturbação que ainda causa o recalque. A frustração daqueles que lamentam a derrota, e daqueles que lamentam não haver tomado parte do período.

terça-feira, 17 de março de 2020

Revendo Cidade de Deus

Outro dia assisti pela primeira vez o filme Cidade de Deus. Tinha já ouvido tanto falar que nem julgava mais necessário assisti-lo, mas resolvi dar uma conferida. Pode parecer estranho que eu queira fazer uma resenha quase vinte anos após o lançamento, mas é útil. Se quando foi lançado, o filme mostrava uma evolução histórica com um ponto de inflexão, agora ele próprio é parte da História e igualmente mostra um ponto de inflexão, mais precisamente aquele que separa a era do banditismo romântico da era do capitão Nascimento.

Artisticamente, o filme é muito bom e sem dúvida que mereceu os aplausos internacionais. O frenesi de tomadas com cortes no tempo prende efetivamente a atenção do espectador, e diversas cenas ficaram marcadas na memória coletiva. O real e a ficção são mesclados com competência, a ponto de não se saber distingui-los. Mas o filme é um marco, sobretudo, por romper com a narrativa do bandido-vítima que vinha predominando em nossa cinematografia desde os anos 60, começando no Assalto ao Trem Pagador até Pixote a Lei do Mais Fraco, Lúcio Flávio o Passageiro da Agonia e 400 Contra Um, passando por outros filmes baba-bandido mais esquecíveis. Cidade de Deus começa com uma referência a esta época, os inocentes anos 60 quando a favela foi criada, mostrando bandidos robinhoodianos que assaltam um caminhão de gás e distribuem o produto do roubo aos moradores. Mas nos anos setenta, com o advento do tráfico de drogas e do crime organizado, os bandidos nada mais têm de bonzinhos. Aterrorizam os moradores, saqueiam modestos estabelecimentos comerciais da favela e se matam mutuamente na disputa por bocas de fumos.

A inocência, se um dia existiu, foi perdida. Mas se os bandidos não mais são mostrados como heróis, persiste uma glamourização em torno da bandidagem. Os marginais são audazes e suas ações são espetaculares, enquanto os policiais são sempre paspalhos e incompetentes - e neste aspecto Cidade de Deus marca um ponto equidistante entre Lúcio Flávio e Tropa de Elite. Na verdade, os marginais do filme ainda são mostrados como heróis - porém, não no sentido atual do termo, de indivíduo destemido e abnegado, mas no sentido original da palavra surgida na Grécia antiga, denotando indivíduo de força e coragem sobre-humanas, que triunfa sobre seus inimigos gloriosamente.

Como se sabe, a ideia fixa de apresentar o marginal como um herói revolucionário surgiu da militância intelectual de esquerda, que tem sido proeminente em nossa cinematografia deste os tempos do Cinema Novo de Glauber Rocha, que foi pioneiro ao reciclar a figura do cangaceiro como um justiceiro social. Na realidade, essa tendência está ligada à evolução dos acontecimentos entre os anos 60 e 70, com a derrota da guerrilha revolucionária, a qual não teve o apoio dos trabalhadores, e reflete um esforço de substituição simbólica da figura do trabalhador pela figura do marginal, o lumpen-proletariado segundo Marx, como o público revolucionário por excelência, segundo o entendimento dos intelectuais militantes. Não deu certo, e o sucesso de Tropa de Elite vem encerrar este capítulo. O povo das periferias não se identifica com os marginais, mas com o capitão Nascimento, para desgosto dos cineastas.

A admiração dos intelectuais de esquerda pelos marginais das favelas deixa entrever um sentimento de frustração pelo malogro da luta armada. Afinal, ao contrário dos guerrilheiros, essas quadrilhas bem armadas conseguiram efetivamente desafiar as forças da segurança. O problema é que esses quadrilheiros nada têm de revolucionários sociais, como sonhavam Glauber Rocha e outros. Ao contrário, a organização de seus negócios insere-se em um arcabouço de todo capitalista, inclusive imitando suas hierarquias e funções: as bocas têm um "proprietário", um "gerente" e uma multidão de "assalariados", de vigias a "soldados". Marx já no século 19 não hesitava em apontar os lumpens como imprestáveis como revolucionários - eles podem ser aguerridos, mas em razão de seu caráter venal, são facilmente cooptados pela burguesia dominante. E de fato, através da História, os burgueses sempre têm comprado os lumpens por poucos tostões, inclusive para jogá-los contra os trabalhadores.

Então, Cidade de Deus fica como um longínquo divisor de águas entre os tempos do banditismo romântico e a época atual que prega o endurecimento das penas. Também contribuiu para reforçar o senso comum estrangeiro de que a favela é o habitat padrão do brasileiro. Não é de hoje que existe um esforço dos produtores culturais do país para apresentar a favela como ícone nacional - acredito que em mais nenhum lugar do mundo chefes de estado estrangeiros são levados para visitar favelas. Resta saber se esse esforço redunda em algum benefício para a imagem e a autoestima dos habitantes locais. Segundo o wikipedia, o filme favoreceu uma onda de preconceito e discriminação contra os moradores da Cidade de Deus.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Paulo Freire, segundo os educadores

Uma polêmica que não quer calar diz respeito ao real valor do educador pernambucano Paulo Freire, nomeado patrono de nossa educação por lei aprovada pelo congresso, ultimamente acusado por muitos de ser um vigarista, e até de responsável pelos péssimos resultados da educação no Brasil. Quando parecia que a discussão havia cessado, ele é o homenageado de uma escola de samba neste carnaval.

Já apontei antes aqui como discutível o significado antropológico do carnaval, e não acredito que o público tenha desperdiçado algum minuto da folia para discutir se o homenageado merece de fato a homenagem. Mas de qualquer maneira o assunto foi trazido de volta à baila, e descobri um interessante artigo que meio sem querer, dá a chave para decifrar o enigma. Uma jornalista entrevistou os dez melhores educadores de 2019 pela premiação Educador Nota 10, criada em 1998 pela Fundação Victor Civita. Tendo esses profissionais desenvolvido trabalhos inovadores que geraram bons resultados nas escolas onde atuam, são supostamente autoridades credenciadas para emitir uma opinião definitiva sobre o patrono de nossa educação, e todos eles desfiaram elogios a Paulo Freire. Mas nenhum soube explicar porque, apesar da presumida excelência do patrono, nossa educação é tão ruim. Contudo, as explicações que se arriscaram a dar fornecem, ainda que sub-repticiamente, uma boa pista para localizar onde está o engodo.

Disse o professor de educação física Luiz Gustavo Ruino:

"Enquanto caminhava pela biblioteca da Universidade de Montreal, localizada no Canadá, onde cursou parte do doutorado em 2017, Luiz avistou um único autor brasileiro entre os títulos de obras escritas por estrangeiros. Lá estava, em letras pretas na capa vermelha chamativa da versão em inglês do livro 'Pedagogia do Oprimido', o nome do educador pernambucano Paulo Freire (...) De acordo com o projeto Open Syllabus, o mesmo título é também o único brasileiro a configurar a lista de 100 livros mais pedidos por universidades estrangeiras"
 "No Brasil, porém, apesar de ser homenageado por escola de samba e de ser, desde 2012 o patrono da educação brasileira declarado pelo Congresso Nacional, a situação muda um pouco. Formalmente, os ensinamentos nunca estiveram presentes na grade curricular de escolas brasileiras. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) (...) não cita em momento algum o nome do educador pernambucano. Por isso, o nome de Paulo Freire não estava presente nas salas de aula do curso de geografia da USP (Universidade de São Paulo) quando Mariana Martins Lemes, 29, se graduou em 2013. Também não contou com os ensinamentos freireanos quando voltou para realizar mestrado de geografia humana de 2014 até 2017 na mesma universidade"


A contradição é evidente. Se Freire é tão prezado no exterior, por que o patrono de nossa educação não é sequer citado nos cursos de nossas próprias faculdades?

Minha teoria: Paulo Freire não é citado em cursos regulares, não por falta de vontade de nossos professores que o idolatram, mas simplesmente porque não há o que citar. Ele não é um educador, e nada do que escreveu tem qualquer utilidade didática. Em sua obra magna Pedagogia do Oprimido ele tampouco cita um único pedagogo, mas apenas líderes políticos e revolucionários como Mao Tsé-Tung e Fidel Castro. O próprio Freire não pode ser considerado um pedagogo completo, posto que não deixou nenhum método de uso geral - o método a ele atribuído destinava-se à alfabetização de adultos. Freire é, de fato, um filósofo, e sua obra é uma coleção de aforismos em prol da educação "dialógica e libertadora" em um mundo onde só há opressores e oprimidos. Fácil de achar bonito. Afinal, quem é a favor da educação escravizadora? Quem é contrário ao diálogo? Quem é a favor do opressor e contra o oprimido?

Os demais entrevistados repetem os elogios, mas também conformam a minha tese, ainda que com outras palavras. Mariana Martins Leme, professora de geografia, escreveu:

"Infelizmente, porém, muitos profissionais nas escolas têm um conhecimento ainda superficial do autor, e não sabem como repensar a sua prática a partir de seus ensinamentos. Assim, fica parecendo que Paulo Freire está presente na prática dos professores brasileiros, mas não é bem assim"


Exato, Mariana, não é bem assim. Mas por que os profissionais têm um conhecimento tão superficial do autor? Porque não há o que aprender dele, conforme eu apontei, visto que ele não é um educador.

Rodrigo Seixas, professor de sociologia, escreveu:

"Aqueles que condenam os princípios de Freire e querem o extirpar da educação brasileira, assim o fazem por dois motivos possíveis: ou por ignorância (no sentido de não compreender o educador e suas contribuições) ou por interesse"


Interesse alguns têm, com certeza. Mas por que a ignorância? Simples: não compreendem o educador e suas contribuições porque não há mensagem dele a ser compreendida no terreno estrito da pedagogia.

Arabelle Calciorali, professora de língua inglesa, escreveu:

"Se o governo prestasse atenção realmente no que está acontecendo na educação, eles veriam que o problema não é o Paulo Freire. O problema é o não Paulo Freire. É o não aplicar os ensinamentos dele na prática. O problema é que se fala de Paulo Freire, muitos acham lindo que Paulo Freire falou e fez, mas na hora de dar aula, vão para uma metodologia totalmente tradicional"


Vamos ver se entendi. Se a educação brasileira estivesse "bombando", o mérito seria de Paulo Freire. Se a educação brasileira é péssima, a culpa de não é de Paulo Freire, já que seus ensinamentos, supostamente, não foram colocados em prática. Tanto na primeira como na segunda hipótese, o patrono é resguardado, a possibilidade dele ser um fracasso não entra nesta lógica. Grande!

Mas Arabelle, me diga porque os ensinamentos do mestre não estão sendo aplicados, se ele retornou do exílio há mais de 30 anos e foi oficializado como patrono de nossa educação? Essa pergunta eu já respondi: tais ensinamentos não têm aplicação na didática. Os professores vão para uma metodologia tradicional porque não existe outra. Simples assim.

Falta explicar porque Paulo Freire, sendo tão insignificante em termos práticos para a educação, é o único autor brasileiro a figurar na lista dos 100 livros mais pedidos por universidades estrangeiras. Eu acredito que outros pesquisadores brasileiros bem mereciam estar presentes nesses 100, mas têm pouca divulgação. Então por que somente Paulo Freire aparece na lista, e mais ainda, por que sua Pedagogia do Oprimido é a terceira obra mais citada e trabalhos acadêmicos ao redor do mundo? Não é tão difícil responder. Seus aforismos em prol de uma educação libertadora e dialógica são feitos para serem elogiados. Mas também, apenas para serem elogiados, e para nada mais. Penso que Paulo Freire corresponde ao papel que um intelectual do terceiro mundo deve desempenhar, conforme a opinião dos intelectuais do primeiro mundo, e desperta neles a solicitude patética para com o drama dos "deserdados da terra". Já para os intelectuais brasileiros que querem falar sério, sobra o desdém.