A derrota do bispo Crivella nas eleições para prefeito no Rio de Janeiro parece sinalizar que um fenômeno que tomou conta do país começa seu refluxo. Refiro-me à virada para a religião, que fez (e ainda faz) pipocar uma igreja evangélica em cada esquina de cada comunidade, e elegeu dezenas de candidatos pastores.
A virada para a religião não é um fenômeno alvissareiro. Denota um desalento com a situação geral. Nos termos da doutrina hindu das quatro castas, mencionada em um artigo que publiquei, representa um retorno ao governo brâmane, com a suposta restauração dos valores abandonados. Por aqui observamos, de fato, uma corrida rumo ao conservadorismo, que não deixa de passar um sentimento de derrota: se voltamos atrás, é porque estávamos em um caminho errado.
Assim, se o fenômeno começa de fato a refluir, é sinal de que o otimismo em geral começa a voltar. Mas cabe aqui uma reflexão. Por que a religião continua a exercer um fascínio tão grande sobre as populações, fascínio esse que se transforma em poder? Como uma mensagem escrita para povos de séculos atrás continua tão atual?
Refiro-me, é claro, às religiões monoteístas (ou abraâmicas) - cristianismo, judaísmo e islamismo. A primeira delas a surgir, o judaísmo, trazia uma novidade inédita para o mundo de então: um deus que não se limitava a conceder graças em troca de oferendas, mas também exigia um comportamento ético da parte de seus seguidores. No caso do Brasil, deve ser destacado o cristianismo que emergiu na matriz do mundo ocidental, a civilização greco-romana de dois mil anos atrás. Os deuses então disponíveis para adoração não preenchiam todos os anseios da população. De fato, portavam-se, e inclusive pareciam-se fisicamente, com qualquer patrono do qual uma pessoa comum do povo pudesse se tornar cliente, apenas acrescidos de poderes sobrenaturais, mas de resto mantendo todas a fraquezas e falhas de caráter dos patronos de carne e osso.
Não espanta que tais deuses tivesse um aspecto por vezes caricato e não fossem levados muito a sério, exceto na esfera do folclore e das crendices populares. Os romanos e gregos cultos preferiam a filosofia à religião. E de fato a filosofia proporcionava muito mais respostas a seus anseios cognitivos e angústias espirituais, na forma de explicações lógicas. Mas havia um problema. A instrução era acessível somente aos ricos, as massas ficavam alheias ao saber.
Nesse contexto surgiu uma religião que tinha uma mensagem profética e doutrinária que era acessível tanto aos cultos quanto aos incultos - não precisava entender, bastava crer. O que leva milhões de indivíduos a crer em uma mensagem que lhes é fornecida sem discussão? A resposta é: o atendimento a seus anseios. Os deuses antigos, tal como os patronos dos quais eram clientes, eram tão inconstantes e temíveis quanto estes patronos, podendo como estes ser ora aliados, ora inimigos, ora benfeitores, ora malfeitores. O deus dos cristãos tinha um compromisso com seus seguidores, e sua lealdade era assegurada desde que suas diretivas fossem cumpridas. Acenava com uma melhoria das condições sociais da maioria da população, tanto que os primeiros cristão foram sobretudo escravos e mulheres. Aos escravos, afirmava que o reino dos céus pertencia aos humildes, e que os ricos e egoístas seriam punidos. Às mulheres, acenava com a proibição da poligamia e do divórcio, algo interessante para um tempo em que a maioria das sociedades permitia aos homens terem mais de uma esposa, bem como delas se divorciar sem lhes dar nada. Por isso o cristianismo triunfou sobre os antigos deuses.
Mas tais promessas não seriam coisa datada, que só faziam sentido no mundo de dois mil anos atrás? Com certeza. Se fosse baseado apenas em agrados à população pobre e oprimida, o cristianismo teria sido somente uma moda passageira, tal como o discurso dos políticos populistas da época atual. O que dá substância ao cristianismo, e lhe tem permitido estar presente século após século, é justamente algo que, em princípio, ele teria tornado desnecessário: uma filosofia, que é complexa, e portanto acessível somente aos estudiosos, mas cujo desconhecimento não impede que indivíduos incultos sigam os preceitos cristão, desde que assessorados por sacerdotes, padres ou pastores. Ao longo dos séculos o cristianismo tem agregado uma refinada elite intelectual, e esta elite forma a espinha dorsal, sustentáculo da doutrina, inclusive capaz de atualizá-la conforme a época, passando por vezes ao protagonismo na cena política, fenômeno observado recentemente no país, outras vezes voltando às sombras, mas sempre influente na cena intelectual. Este é o"pulo do gato" do cristianismo.
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