Recentemente deparei-me com este vídeo. É uma crítica a uma nova animação dos estúdios Disney, que retrata uma família latino-americana residente nos EUA, e foi acusado de ser ofensivo à comunidade latina por incluir gramática incorreta, estereótipos, racismo e uso de uma gíria inapropriada. Não vou entrar no mérito dessa discussão. Mas chamou-me a atenção um discurso da dubladora da animação, ela mesma descendente de mexicanos, procurando justificar os erros gramaticais:
"A língua espanhola não é uma língua latino-americana. É uma lingua que os conquistadores espanhóis forçaram ao povo latino-americano. A razão para sermos latinos e não nativo-americanos. É o motivo dessa distinção. Então fique bravo comigo o quanto quiser por palavras incorretas em espanhol"
À primeira vista, parece mesmo um disparate. Se é assim, por que ninguém diz que o inglês também não é uma língua americana, mas que foi imposta por conquistadores britânicos? No entanto, essa fala tem, sim, uma lógica peculiar, proclamada por latino-americanos residentes nos EUA. Em seu entendimento, o termo "latino" refere-se ao nativo americano, e não ao colonizador. Pelo senso comum, sabemos que o termo "latino" refere-se a povos originados da desintegração do Império Romano do Ocidente, onde a língua falada era o latim - italianos, franceses, espanhóis, portugueses, romenos. Estritamente falando, sul-americanos não são latinos, mas descendentes de latinos. Nunca encontrei motivo para pôr em dúvida essa assertiva. Mas recentemente, um novo pensamento tem redefinido o sentido do termo, retirando-o da Europa: latinos são os sul-americanos, e o europeu colonizador foi um invasor estrangeiro que ocupou essas terras e impôs seu idioma.
Entendo que muitos descendentes de imigrantes sul-americanos nos EUA procurem uma identidade que evoca uma época gloriosa, o tempo dos antigos impérios azteca e maia, diferente da realidade frustrante de pobreza e discriminação vivida por eles. Mas militantes variados têm dado um uso político a esse sentimento identitário, com a finalidade de desvincular a população dos valores herdados de nosso mundo ocidental, e culpabilizar a outros pelos problemas atuais - nossos povos, supostamente, já existiam aqui antes da América ser descoberta, quando então fomos invadidos e espoliados, e estamos até hoje procurando fazer das ruínas um país.
Poderia ser apenas uma ilusão tola. Mas é nefasta, a julgar por outros exemplos na História. A busca por uma identidade antiga e mítica como escapismo para os maus tempos do presente já ocorreu em outros momentos, como por exemplo na Alemanha derrotada após a primeira guerra mundial, quando surgiu a Sociedade Thule, fundada por ocultistas, que afirmava serem os povos nórdicos originados de uma ilha mítica denominada Thule, e pregava o retorno aos supostos valores originários e o abandono do mundo ocidental cristão. Sabe-se que esta sociedade teve grande influència no partido nazista, que realmente incentivou a prática de rituais do antigo paganismo germânico, como forma de resgate do orgulho e do sentimento exclusivista.
Do mesmo modo, os latino-americanos da época atual querem se desvincular do mundo ocidental. E tem nesse propósito o pleno apoio dos norte-americanos, igualmente interessados em alijá-los do mundo ocidental, que assim pode ser pensado como composto unicamente por países ricos e desenvolvidos. Ironicamente, com essas ideias, os latino-americanos endossam o estranhamento que é a verdadeira causa de sentirem-se excluídos e discriminados, e também alimentam o racialismo tão marcante na América do Norte - atualmente, nos EUA, ninguém mais associa o latino ao europeu que fala uma língua derivada do latim, mas o termo tem sido empregado cada vez mais como a definição de uma raça, supostsmente originária da América do Sul. Um sul-americano chegado nos EUA pode ter a raça que for, mas nunca é catalogado como branco, negro ou asiático, mas sempre como "latino".
Os norte-americanos não proclamam que o inglês foi uma língua imposta pelos conquistadores, pois ao contrário dos latino-americanos, consideram-se os herdeiros legítimos daquele conquistador. E no entanto, a despeito das muitas diferenças, tanto no norte como sul, a História replicou o mesmo roteiro de Descoberta + Inclusão em Impérios Europeus + Independência + Escravidão + Imigração. Sem fantasias e mistificações, somos membros ordinários do Mundo Ocidental. Que não contém somente países ricos.