domingo, 15 de dezembro de 2024

O Fim da Bipolarização?

É sabido que a escolha de presidentes radicais-caricatos, tipos como Lula, Bolsonaro e Donald Trump, é sintoma de um estado de desalento da população, que procura alternativas diferentes do convencional. O caso mais grave foi o de Hugo Chávez, do qual, de certo modo, o povo venezuelano ainda não conseguiu se livrar. Aqui pelo menos nenhum conseguiu tomar o poder para si, mas a alternância entre os extremos sinaliza que estamos presos em algum atoleiro.

Entretanto, pela primeira vez em anos, há sinais de que podemos encerrar essa etapa obscura. Quem será o próximo presidente?

A maré está totalmente contra Bolsonaro e seu grupo, cuja desmoralização é crescente, sobretudo após a descoberta dos planos golpistas. Por sorte que são uns trapalhões, se bem que o radicalismo de suas propostas não deixa de ser assustador. Mas a oportunidade passou.

Já Lula, além da idade e dos problemas com a saúde, está claramente "dilmando", conforme é mostrado pela deterioração dos indicadores econômicos, sobretudo a alta do dólar. A política lulista já ultrapassou o limite onde podia ser benévola, e as nefastas consequências estão aparecendo. Acho improvável que o PT emplaque mais um presidente nesse quadro.

Então, finalmente, poderemos ter um presidente "normal", sem ares de patético salvador da pátria. Aguardemos.

domingo, 24 de novembro de 2024

A Romantização da Pobreza

Um fenômeno antigo por aqui, com o qual já estamos até acostumados, é a romantização da pobreza. No espetáculo de abertura das olimpíadas de 2014, foi exibida uma favela. Eu me lembro do espetáculo de abertura da última Copa do Mundo no México, cujo tema foram os ancestrais aztecas e suas obras, justo motivo de orgulho. Acredito que a nenhum organizador ali ocorreu a ideia de mostrar favelas da Cidade do México. Aqui, no entanto, não somente é visto um valor pictórico nas favelas, como existe há vários anos um passeio organizado de turistas para quem quiser vê-las.

Algo que parece um contrassenso tão forte merece ser analisado. Este vídeo tenta algumas explicações. Mas eu acredito que para se obter a explicação completa, deve-se voltar às origens deste fenômeno, ali pelos anos 30 do século passado.

Naquela época havia em nosso meio intelectual e artístico uma enorme ânsia por uma autenticidade nacional, já bastante notável desde a década anterior com sua Semana da Arte Moderna. Queríamos ser reconhecidos por algo que fosse, supostamente, genuinamente nosso, e não uma imitação do estrangeiro. Foi aí que se elegeu o samba como a música brasileira por excelência, e seus dois corolários, o carnaval e a favela, como o berço da cultura popular nacional.

O samba nasceu nas favelas, junto com o carnaval? É questionável. O carnaval já existia antes do samba, e o maior intérprete do samba na época, Noel Rosa, era um branco de classe média. Mas isso não importa para a discussão em curso. O que importa é que a favela ganhou desde então o status de berço da cultura popular, e passou a ser exaltada pelo cinema e pela literatura, até virar produto de exportação. O Estado deu todo o apoio, consoante ao objetivo da Era Vargas de cultivar o nacionalismo ao mesmo tempo em que domesticava as manifestações populares "perigosas", como o carnaval e o samba.

Poderia ter sido uma mania passageira, fruto do momento político, mas a romantização da pobreza prosperou, e pode-se dizer que atinge seu auge agora, quando MC´s vem dizer: a favela venceu. Esses mesmos MC´s, agora ricos, há muito não residem mais em favelas, e só aparecem lá para gravar clip´s, mas como fenômeno midiático, a favela de fato venceu, mesmo que o funk seja uma imitação dos guetos norte-americanos, e não tenha nascido nas favelas brasileiras, ao contrário do samba. Mas isso tampouco importa. A meu ver, o motivo da vitória da favela foi o reconhecimento estrangeiro, algo que sub-repticiamente desjávamos com todo aquele afã de buscar coisas genuinamente brasileiras.

De fato, a favela é como o estrangeiro imagina que o Brasil "deve ser". Não fosse assim, nenhum turista pagaria para fazer tour em favela, nem o tour seria feito em veículos todo-terreno adequados para passeios na selva, tampouco o guia estaria paramentado como quem vai a um safari. Essa encenação toca um imaginário colonial muito caro, sobretudo, a estrangeiros vindos de países que tiveram impérios no passado. Remonta à época do descobrimento, com sua paisagem de índios nus na praia, dando partida na utopia até hoje cultivada: um povo que não precisa do trabalho nem de bens materias, pois vive apenas da fruição de prazeres carnais, comer, beber, dançar e fazer amor. Não é essa a imagem que a favela exibe ao mundo?

Talvez tenha sido até uma boa intenção elevar a favela à condição de ícone nacional, ao invés de escondê-la e discriminá-la, mas é evidente que o resultado, longe de incutir a empatia, expôs a favela ao deboche. Hoje, artistas ricos e turistas romantizam a favela, mas quem vive lá, só quer sair o quanto antes.

domingo, 3 de novembro de 2024

A Inutilidade da Educação

Os maus resultados da educação do Brasil levantam dúvidas sobre a utilidade desta educação. Este vídeo procura apontar os motivos de seu fracasso, e menciona a adoção do sistema de Progressão Continuada, também chamado Aprovação Automártica. Sob este método não há exames de avaliação anual, e o aluno só pode ser reprovado ao final do ciclo, de acordo com critérios subjetivos.
 
A Progressão Continuada não é, em sua concepção, uma fraude: baseia-se no princípio de que, uma vez que os alunos são diferentes uns dos outros, não deveriam ser avaliados pela mesma régua. Portanto, trata-se de um sistema adequado a escolas que dispõem de amplos recursos, suficientes para dar um acompanhamento personalizado a cada aluno. A Progressão Continuada é usada em diversas escolas de países desenvolvidos, embora com resultados controversos. Como a escola pública brasileira passa longe desse perfil, é evidente que a adoção de tal método aqui teve como objetivo tão somente camuflar sua própria incompetência: aprenda ou não,o aluno é aprovado, e belas estatísticas de aprovação podem ser exibidas às autoridades.
 
Mas antes deste subterfúgio ser inventado, a educação brasileira já ia mal. Qual a causa raiz? Podem ser citadas numerosas razões, da precariedade material a Paulo Freire, mas eu prefiro sintetizar em poucas palavras: a opção por uma educação massificada. A quantidade tendo prioridade sobre a qualidade. Se o estudante tem dificuldade de assimilar o conteúdo, simplifique-se o conteúdo. Se o estudante não sabe a gramática, venda-se a ideia de que a escrita errada é um dialeto tão digno de respeito quanto a norma culta. Se não há professores, ou eles não querem dar aula, passem-se trabalhos aos estudantes para que eles aprendam por si mesmos. Basicamente, o objetivo é aumentar o número de formados na escola sem aumentar as dotações orçamentárias da educação. A Progressão Continuada é apenas a cereja deste bolo.
 
Mas e a base do bolo? Para responder, é preciso entender o que é, de fato, educação. E digo logo: a educação, como a conhecemos pelo senso comum, é uma inutilidade. Sim, pois praticamente tudo o que aprendemos na escola será esquecido na vida futura, a menos que tenha uma utilidade prática. E isso é válido tanto para o bom, quanto para o mau aluno: é preciso conhecer a matéria na hora da prova, mas se ela não tiver utilidade no futuro, não faz sentido reter aquele conhecimento. O que não significa que a escola não prepare para a vida. Prepara, sim, mas não em razão do conhecimento ministrado. A escola ensina o convívio social, a disciplina e o desenvolvimento das faculdades cognitivas.
 
É neste ponto que abandonamos o senso comum e atingimos a relação profunda entre educação e cultura. A cultura diz respeito às crenças, valores e princípios que norteiam todo o comportamento humano. A educação formal é apenas uma parte desse todo, pois o restante não se aprende na escola, e sim na vida. Penso haver chegado na resposta definitiva à questão formulada: uma educação massificada, que aprova automáticamente, incute na população uma cultura de desprezo pela própria educação.
 
De fato, que respeito o aluno pode ter por uma escola que aprova automáticamente? Se nenhuma cobrança é feita quanto àquele conteúdo ministrado, a única conclusão a que o aluno pode chegar é que aquilo não vale nada - se valesse, haveria cobrança. Se a escola despreza o aluno, então o aluno despreza a escola, e por uma reação em cadeia, despreza todos os valores calcados na escola, como o progresso sócio-econômico advindo da aquisição de conhecimentos, e a própria ciência, o que vem a explicar o embaraçoso fenômeno do emburrecimento do Brasil. Como é que, do ponto de vista das estatíticas, o Brasil tem muito mais letrados do que tinha 50 anos atrás, mas 50 anos atrás produzia letrados tão superiores aos atuais?
 
No limite, essa cadeia de transmissão originadada de uma cultura de desprezo pela educação tangencia com a criminalidade, que tem aumentado enormemente no país por causa de uma opção análoga à feita para a educação: as penalidades são brandas com o objetivo de diminuir a população carcerária, e tornar desnecessário aumentar os gastos com segurança. Duas mágicas, uma para aumentar artificialmente o número de alunos na escola, outra para diminuir artificialmente o número de apenados na prisão. Assim os dois fenômenos, educação ruim e crime alto, se tocam e se complementam.
 
Do ponto de vista ideológico, esse estado de coisas é apoiado pelas doutrinas de Paulo Freire: o ensino pode estar ruim, mas isso não é o mais importante, já que o objetivo da escola não é ministrar conhecimentos, mas sim "formar cidadãos". O ensino não deve ser ministrado de forma bancária, porque o aluno sabe tanto quanto o professor. A reprovação é um ato de opressão da classe superior sobre o oprimido, pois os alunos não são bons ou maus, apenas diferentes. A educaçao não deve ser vista como uma forma de ascenção social, pois assim o oprimido vai se tornar opressor. Paulo Freire não é responsável pelas falhas da educação brasileira, mas é responsável por justificá-las mediante argumentos capciosos.
 
Se o desprezo pela educação tornou-se parte da cultira nacional, não se pode erradicá-lo com programas do Ministério da Educação. Não se pode legislar sobre cultura. O apreço do povo pela educação só pode ser restaurado se a escola novamente se der ao respeito.

domingo, 20 de outubro de 2024

O Poder Militar

Recentemente adquiri em um sebo o livro O Poder Militar, de Hélio Silva. Aprecio este historiador, cujas obras pautam pela descrição sucinta e desapaixonada dos fatos, e o tema é atemporal, posto que a influência dos militares no país tem sido constante em nossa história, mas apesar disto, muito mal compreendida. Persiste a lenda do Poder Moderador exercido pelos militares,supostamente salvando o país em momentos de grave impasse e reconduzindo-o à normalidade.

Um ponto que está fora de discussão, é que a república foi uma criação dos militares. Havia um partido republicano no país, mas não foi ele que proclamou a república, surgida por um golpe do exército. As contradições, contudo, começam aí. A maioria dos militares não era republicana - estes estavam concentrados em uma minoria intelectualizada, reunida em torno de Benjamin Constant e adepta da filosofia positivista de Comte, que descria da democracia representativa e preconizava o governo ideal como uma "ditadura republicana", conduzida por homens de caráter isento, que governariam acima de interesses partidários visando o bem comum, de forma "racional e científica". Evidente que os militares, até por sua própria formação, consideravam-se naturalmente credenciados para esta tarefa.

Coerentemente, os primeiros dois presidentes da nascente república foram dois marechais - a chamada República da Espada, considerada o primeiro governo militar do país, embora na época houvesse mais militares na cadeia do que no poder. Mas a República da Espada foi um desastre. Nada se viu dos devaneios positivistas. A crise eonômica se instalou, provocando desenfreada inflação, e focos de guerra civil pontilharam pelo país. Ironicamente, a estabilidade política e econômica só retornou quando voltou ao poder a mesma elite civil deposta pelo golpe, agora convertida ao republicanismo.

Do episódio, ficou a lição de que um governo fortemente centralizado e autoritário, conforme queriam os positivistas, era inviável no quadro social do país à época, dominado pelos "coronéis do sertão", que não hesitavam em arregimentar tropas de jagunços para defender seus interesses políticos. A insistência em um poder central discricionário inevitavelmente redundaria em descontentamento nos estados, seguido de rebeliões armadas. De fato, cena recorrente por toda a República Velha foram tropas de jagunços levando a melhor sobre tropas regulares - estas melhor equipadas, mas os jagunços mais numerosos, conhecedores do terreno e de táticas de guerrilha, podendo acoitar-se nas fazendas de seus patronos quando necessário. As polícias estaduais também prestavam-se a este papel. Até os anos 30, a polícia de São Paulo possuía até Força Aérea. Evidentemente não era uma polícia de verdade, mas um exército disfarçado.

Portanto, a governabilidade só era exequível mediante protocolos e conchavos que garantissem os interesses dos chefes políticos estaduais, uma engenharia política complexa que só podia ser urdida por políticos, e não por generais. Os pactos foram sendo costurados, delineando o perfil da Primeira República - o Café-Com-Leite, a Política dos Governadores, o Pacto dos Coronéis no nordeste. Havendo sido a República da Espada identificada com desordem e revolução, os próceres da oligarquia cafeeira trataram de fechar o espaço político aos positivistas, e conseguiram alijá-los. Mas o positivismo permaneceu sendo a ideologia preferida dos militares, e continuaria a sê-lo pelo século 20 adentro, mesmo que já não se apercebessem disso.

A partir de então, as intervenções dos militares foram pontuais, o que reforçou o mito do poder moderador que servia de árbitro. A Revolução de 30 não foi feita pelos militares, e sim pelos governadores com suas polícias - os militares deram o golpe final que retirou o presidente, mas não assumiram o poder. Os militares apoiaram o golpe de 1937, mas quem assumiu como ditador foi um civil. Os militares deram o golpe que depôs Getúlio em 1946, mas de novo não assumiram o poder - é certo na eleição seguinte os dois candidatos eram militares, mas o regime era democrático. Um militar garantiu a posse de Juscelino em 1955. Os militares se ergueram contra a posse do vice-presidente Goulart em 1961, mas novamente tudo se resolveu por um acordo.

Entretanto, uma análise cuidadosa de cada um destes eventos mostra que sempre houve uma tentativa dos militares de assumirem efetivamente o poder, ao invés de servirem de árbitros. Em 1964, este objetivo foi finalmente alcançado. Alguns mais ingênuos chegaram a julgar que se trataria de mais uma intervenção pontual, mas o que se seguiu foi a implantação daquilo que havia sido o verdadeiro propósito dos militares desde o final do século 19, o regime positivista. De fato, os generais-presidentes tinham poderes absolutos, mas o formato republicano foi mantido, com cada presidente sendo substituído ao final de seu mandato - isso não era outra coisa senão a "ditadura republicana" preconizada por Comte. Os políticos foram afastados do centro das decisões administrativas, que ficou a cargo de ministros e acessores com formação técnica, sem filiação a partidos - era a ditadura "racional e científica" comandada por tecnocratas.

A solução pareceu funcionar por alguns anos, quando houve rápida taxa de crescimento econômico, mas tudo terminou com a crise dos anos 80, que pôs fim à crença dos militares como governantes mais competentes do que os civis. De fato, até recentemente, não se ouviu mais clamores por uma intervenção militar, embora o mito dos militares como salvadores da pátria em situação de perigo tenha permanecido. Contudo, não se vê no mundo país desenvolvido que tenha tido um período de governo militar no passado como etapa construtora de sua pujança econômica e estabilidade política. O exemplo mais contundente é o do Japão, que foi efetivamente governado por militares no princípio do século 20, mas o resultado foi a guerra que representou o pior revés de sua história. Acrescente-se que a modernização do Japão só teve início depois que a Era Meiji pôs fim ao feudalismo militarizado dos Xóguns.

Governos militares abundam em países do Terceiro Mundo, e é difícil não crer que são a causa, e não a consequência do atraso e da instabilidade. Com tantos exemplos desastrosos, fica evidente que um exército que governa seu país não constitui a salvação, mas a dissolução do Estado - é como se o país houvesse sido invadido e estivesse sob o controle de tropas de ocupação. O legado mais palpável do período militar no Brasil foi a deterioração da classe política, resultado das cassações e das mudanças na legislação eleitoral que privilegiavam os políticos das regiões atrasadas em detrimento dos grandes centros - assim os militares foram sucedidos por tipos como Sarney e Collor. Evidente que essa não era a intenção declarada dos militares de 1964, mas em razão de sua formação positivistas, viam a política como uma inutilidade inócua, daí não enxergarem consequências na manipulação do quadro político para fim de manter uma fachada democrática do regime, consoante com a Guerra Fria, que se apresentava como uma luta dos regimes democrátricos contra o totalitarismo comunista.

domingo, 29 de setembro de 2024

O Rei não foi convidado

Recentemente chamou-me a atenção a notícia de que o rei Felipe VI da Espanha não foi convidado para a cerimônia de posse de Claudia Sheinbaum, a nova presidente do México. O motivo alegado foi que o monarca não respondeu a uma carta de López Obrador, o presidente atual, solicitando um pedido oficial de desculpas pelas atrocidades cometidas contra os povos ondígenas durante a colonização.

O pedido é pertinente, ninguém discorda de que as atrocidades foram cometidas. O que não entendo é por que pessoas com os sobrenomes Obrador e Sheinbaum fazem-se de porta-vozes de povos originários. Eles são um produto da colonização, sem ela sequer existiriam hoje, ou estariam em outro lugar. Se cabe um pedido de desculpas, podiam fazê-lo eles mesmos, sem recorrer ao rei.

Não é de hoje que povos sul-americanos sofrem dessa neurose: querem crer que suas nações já existiam antes da chegada dos europeus, que portanto não passariam de invasores estrangeiros que ali vieram saquear e massacrar os indígenas. Há uma óbvia crise de identidade. Embora descendentes dos tais europeus invasores, herdeiros e usufrutários de tudo de bom e de mal que estes deixaram, eles rejeitam essa identificação e identificam-se com povos originárioa, com os quais não têm nenhum parentesco. É também um sintoma depressivo: eles não sentem orgulho do que são, tampouco de sua origem, e querem culpar seus ancestrais pelos problemas atuais de seus países.

No fundo um orgulho pueril, facilmente explicado pela psicologia, mas que urde consequências mais danosas do que se supõe. Rejeitando sua herança, deserdam a si próprios em um contexto civilizacional, e buscam consolo em antigas e gloriosas civilizações dos povos que habitavam o continente - civilizações que até foram notáveis em seu tempo, mas que quase nada têm a ver com o mundo atual, exceto por comunidades isoladas e economicamente pouco relevantes, que praticam língua e costumes herdadas de seus ancestrais. Sem os referenciais da herança européia renegada, não é de espantar que exista nessa parte do mundo uma obsessão por buscar soluções políticas e econômicas exóticas, que só atrasam o desenvolvimento.

Essa ilusão autoimposta é em parte compreensível para povos como o mexicano, que efetivamente tiveram um passado glorioso com civilizações nativas avançadas, das quais ainda restam muitos descendentes. Menos razoável é que brasileiros endossem esse discurso. Nós náo fomos descobertos, fomos invadidos, bradaram muitos quando da comemoração dos 500 anos. Isso procede?

Não. O que havia aqui antes de 1500 não era o Brasil, mas uma região geográfica habitada por tribos seminômades que não falavam a mesma língua, não estavam unidas por uma federação nem tinham fronteiras delimitadas. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil passou a existir após a chegada dos portugueses. Considerar tal chegada uma "invasão" e um "saque" extrapola conceitos do presente para um passado onde estes não existiam: nenhuma fronteira foi violada porque fronteiras não haviam, nem os indígenas foram roubados porque tampouco conheciam a propriedade privada. Tanto não se sentiram invadidos, que o primeiro contato com a frota de Pedro Álvares Cabral foi amistoso. Ah, mas depois houve guerra, certo?

Sim. Mas não foi uma guerra movida por uma coalização de povos nativos contra um suposto invasor. Os indígenas foram ver o que queriam aqueles forasteiros. Descobriram que tinham coisas muito interessantes - objetos de metal - que davam em troca de uma madeira que havia ali, que não tinha valor para os locais. Algumas tribos se aliaram aos portugueses, outras aos franceses, que tinham os mesmos propósitos. As guerras entre índios e portugueses, portanto, foram um desdobramento do conflito destes com os franceses.

Devíamos nos livrar de vez desse discurso autoindulgente. Os portugueses não roubavam o nosso ouro, os portugueses cobravam impostos. Nenhum governo se sustenta sem cobrança de impostos, e olha que não eram tão altos: era o "quinto", ou 20%, sendo que a carga tributária atual já se aproxima dos 40%. Todos nós somos descendentes, em todo ou em parte, desses "invasores", e usufruimos da cultura por eles deixada. Exigir desculpas deles é um teatrinho bobo, e sobretudo hipócrita. Não existiríamos sem eles. Se a colonização européia, como dizem, reduz-se a saques e atrocidades, desses saques e atrocidades não fomos vítimas. Fomos sócios.

domingo, 8 de setembro de 2024

Saudades da Ditadura

Um fenômeno inquietante que eu tenho observado são pessoas que afirmam ter nostalgia dos tempos da ditadura, um período idealizado como de valores corretos, quando lugar de vagabundo era na cadeia e o país crescia. Nada tão estranho, esse fenômeno é conhecido em épocas de desalento da população. Mas um vídeo que descobri me deixou bem estarrecido.

Feito em 1970, mostra um desfile de formatura da Guarda Rural Indígena, milícia constituída por índios de diversas etnias, com a finalidade de ser a polícia nos territórios indígenas, bem de acordo com o espírito da época. Ou talvez de acordo demais. Em meio à parada de índios uniformizados mostrando as técnicas aprendidas na escola da polícia, surge um homem pendurado em um pau-de-arara, conduzido por dois homens, que seguram um de cada lado.

É algo absolutamente inusitado. O regime jamais reconheceu a existência de torturas, e agora aqueles cadetes não só a reconhecem, como a exibem com orgulho diante de um palanque repleto de autoridades, e na presença de repórteres. Quem teve aquela ideia? Quem permitiu aquilo, se é que alguém permitiu? Nunca saberemos, mas a impressão que eu tenho é que o próprio absurdo da imagem deixou as testemunhas sem ação, e ninguém se lembrou de mandar destruir aquela prova da existência da tortura no país, que foi guardada pelo cinegrafista em uma caixa ardilosamente marcada com a sigla "arara". Na aparência referia-se à etnia indígena de mesmo nome, mas o cinegrafista tinha a esperança de que um dia aquele material seria encontrado, e o verdadeiro significado daquele "arara" seria conhecido. O que efetivamente aconteceu.

Mas se em 1970 aquelas pessoas não tiveram escrúpulo de exibir técnicas de tortura, diversos comentaristas do vídeo tampouco tiveram escrúpulo de declarar seu apoio à ditadura.

Época em que bandido e vagabundo realmente se davam mal. E quem andava na linha se dava muito bem, em um país mais próspero e seguro.
Pelo menos tínhamos um governo e um oriente para seguir, hoje não temos rumo nenhum, hoje vivemos com um inimigo chamado governo, com uma máquina pública inchada, altos salários para magistrados, políticos e etc. Para o trabalhador só miséria e resto.
Época boa , só fala mal dessa época quem era contra o governo ou fazia coisas erradas.
Volta logo ditadura ! Eu não sou subversivo e nem comunista.
Só sofria vagabundo cidadão era respeitado

Mas a ditadura teve um saldo positivo, ou ao menos foi necessária na época?

O recentemente falecido ex-ministro Delfim Netto afirmou que sim, em uma entrevista. Signatário do AI-5, declarou ao presidente Costa e Silva:

"Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez"

Penso que o discurso foi mera sabujice, mesmo porque a área de Delfim não era a política, e sim a economia. Mas chama a atenção um pensamento recorrente à época: as mudanças "são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez". Ou seja, a ditadura favorecia o desenvolvimento. Era preciso "fazer o bolo crescer" antes de dividi-lo, conforme se dizia. Concluído o desenvolvimento, poderia-se até implantar a democracia.

Quando João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura, entregou o poder, o país estava em recessão e a inflação disparava. Aparentemente, o AI-5 não incrementou o desenvolvimento. O desastre econômico da "década perdida" pôs fim à crença de que os militares seriam governantes mais competentes que os civis, e até recentemente ninguém clamou a volta dos militares ao poder.

Mas já se passou tempo suficiente para que o período dos militares se incorporasse à lenda.

domingo, 18 de agosto de 2024

Sílvio Santos foi embora

"Sílvio Santos vem aí" era o conhecido bordão do programa do apresentador. Agora ele foi embora, porque faleceu. Mas não devemos esquecer que um dia ele esteve bem próximo de se tornar o presidente da república.

Foi na eleição vencida por Collor de Mello, da qual participaram também Lula e Brizola. Collor estava na liderança das pesquisas, mas o cenário ainda estava indefinido. A candidatura de Sílvio Santos, com a campanha eleitoral já pela metade, foi um audacioso golpe que teve como finalidade redefinir as preferências do eleitorado, inserindo um populista no centro e tirando os candidatos da esquerda de um segundo turno. Audacioso porque tinha poucas chances de vingar, como de fato não vingou. Mas tambérm porque tinha chances de vingar, e o país tomaria rumos imprevisíveis.

Nos escassos dias antes da candidatura ser impugnada, Sílvio Santos chegou a figurar como o segundo nas intenções de voto. Com certeza muitos sentiram um frio na espinha imaginando-o presidente. Mas a presidência de Sílvio Santos teria sido algo tão inusitado e potencialmente ruinoso, como se pensa?

Penso que não seria tão diferente do atual presidente, nem de seu antecessor. Sílvio Santos não era um político? Mas existe uma profunda analogia entre o perfil do político, do apresentador e do pastor evangélico: todos os três são especialistas em catalisar o apoio entusiasmado de multidões pouco dotadas intelectualmente, mesmo que não tenham nada de concreto para lhes oferecer - exceto alguns prêmios e "milagres". Sendo que Sílvio Santos ainda conta com a vantagem de não ser politicamente polarizado, como o atual e o anterior - acredito que levaria seu governo com menos atritos. Quem é dono de indiscutíveis habilidades sociais, quase sempre também é dono de indiscutíveis habilidades políticas. E Sílvio Santos sempre foi bom para com o povo, desde o início servia lanches para as moças da periferia que compareciam a seu auditório.

Enfim, Sílvio Santos não se tornou presidente. Mas estamos sendo governados por seus congêneres a pelos menos oito anos.

domingo, 28 de julho de 2024

Lula está "dilmando"?

O governo Bolsonaro teve um deempenho econômico pífio, mas não quebrou o país. O governo Lula teve um início tranquilo. Mas já dá sinal de estar "dilmando", expressão recém-criada que denota a entrada em um espiral de declínio pela repetição de velhos equívocos. O assunto foi abordado pelo The Economist nesse vídeo que critica Lula como perdulário. Segundo afirma, Lula age como se o país fosse mais rico do que é.

Não surpreende. Há décadas, o Brasil e demais "emergentes" da América Latina oscilam entre o estatismo e a desestatização, como se não conhecessem outra fórmula. Chega a ser uma obsessão doentia. Na verdade, a desestatização nada mais é do que a inevitável venda de ativos de um estado quebrado, que mais cedo ou mais tarde acaba sendo seguido por mais um ciclo de estatismo. A ideia é que o Estado deve ser o indutor do desenvolvimento, gastando sempre mais do que dispõe e endividando-se, como se o retorno aos investimentos do Estado na infra-estrutura fosse sempre capaz de tapar o rombo a tempo de repetir-se o ciclo.

Mas Lula pode até ser considerado um participante moderado dessa síndrome. Nada comparado a uma Argentina, ou mais recentemente, a uma Venezuela. Em seu primeiro governo, Lula não dilapidou o legado do Plano Real. O descalabro começou com Dilma, sua sucessora, que foi retirada do cargo e sucedida por governos que pouco puderam fazer além de consertar o que ela fez.

O Lula do segundo governo parece uma versão cansada do Lula do primeiro governo. Em comum, tem a sorte de pegar um país com as contas mais ou menos equilibradas. Mas não sabe fazer diferente: mesmo com voz cansada, dá todos os sinais de que está "dilmando", repetindo as mesmas fórmulas fracassadas, aumentando o gasto público, afugentando os investidores. Alguns economistas até preveem uma data para a quebra do país: 2026 ou 2028, conforme as previsões. Após essa data, o desequilíbrio das contas públicas inevitavelmente afundará o país em recessão e inflação.

Mas se Lula está dilmando, haverá outra Dilma? Um sucessor, posto que em razão da idade, o próprio Lula dificilmente se habilitará a um novo mandato. Mesmo porque, sua especialidade sempre foi deixar a bomba estourar na mão dos outros. Se as previsões catastrofistas estão corretas, Lula deixará o governo a tempo de que a bomba não estoure em suas mãos, e o que vier em seguida pode ser atribuído à imperícia de seu sucessor. Mas não se sabe se esse sucessor será do PT. Caso não seja, será mais um "direitista", obrigado a tomar medidas impopulares para restaurar as contas públicas, assim preparando o cenário para novo ciclo de gastança chefiado por um governo de esquerda.

Mas se o sucessor fou um petista, pode ser a desmoralização. Como não dá para rejuvenecer Lula, e mesmo se desse, ele não toparia porque não entra em canoa furada, então o remédio será o PT se reinventar. Talvez assim finalmente consigamos quebrar o ciclo que se repete desde a Era Vargas.

domingo, 21 de julho de 2024

A Venezuela elege quem quiser

A recente declaração de Lula, a Venezuela elege quem quiser, mostra bem como o presidente quer fugir do assunto, e com certeza vê que o declarado apoio que deu ao regime chavista no princípio do mandato, agora é motivo de embaraço.

Não me surpreende que Lula apóie o regime chavista, pois democrata ele nunca foi - em tempos passados já havia dado declarações apoiando o regime cubano. Se ele se considera democrata, então não sabe o que é democracia. Mas por outro lado, Lula nunca mostrou apreço por dogmas ideológicos, nem por qualquer outra coisa que demande esforço para ser entendida. Sempre foi pragmático e oportunista. É certo que repetiu frases feitas em várias ocasiões ao longo de sua carreira, mas uma impressão que me acompanha é que ele sempre teve desprezo pelos "intelectuais orgânicos" do PT, aquela turma aburguesada de militantes de academia, incapazes de compreender que o real povão nada tem a ver com a idealização que fazem.

Mas isso agora é passado. Quem está no poder não é o PT, é Lula. O PT, como projeto político independente, morreu após o mensalão e a lava-jato, e nunca mais conseguiu remontar o gigantesco esquema de desvio de dinheiro público para os cofres do partido, que como se sabe, visava torná-lo todo poderoso e hegemônico, espécie de PRI mexicano versão brasileira. Agora sobrevive atado ao carisma de Lula.

E Lula, o pragmático, acordou com uma batata quente nas mãos. Em que lhe servirá o apoio prestado ao regime chavista, agora que este se encontra no ápice de gigantesca crise, apregoando ameaça de guerra civil? Sem falar na ameaça de guerra externa contra a Guiana. Lula vai intervir para ajudar seu aliado? Mandar tropas? Dar dinheiro? Apoio diplomático? Em qualquer dessas hipóteses, vai sobrar para o país mais do que os refugiados que já estão sobrando.

O caso da Venezuela é intrincado, pois não se trata de uma eleição com partícipes de um mesmo jogo político - um deles, Maduro, está pronto a melar o jogo, e tem todas as possibilidades para isso, e o outro, na remota hipótese de se sagrar vencedor e assumir, terá que desmontar o regime, o que é impossível de ser feito sem luta. Somente uma solução negociada pode permitir uma retirada pacífica dos atuais mandatários chavistas, mas não se antevê essa solução em lugar nenhum.

Um dado curioso sobre o regime chavista é que ele parece ter se inspirado bastante no antigo regime militar brasileiro. Lá como aqui, foram permitidos partidos politicos e eleições a fim de expor um simulacro de democracia, mas os oposicionistas com possibilidade de vencer são cassados, e as regras do jogo são mudadas sempre que a oposição tem reais chances de chegar ao poder. Soa familiar? O regime também cria "falsos opositores" a quem permite se candidatar. Golbery do Couto e Silva fez escola.

Outro dado é que o regime abusa de plebiscitos, igualmente para dar uma impressão de democracia. O plebiscito é descrito como a consulta mais democrática que existe, posto que o povo decide diretamente, sem a necessidade de representantes. Isso é fato. Mas o plebiscito é indicado para decisões pontuais, sim ou não. O regime fez plebiscitos para aprovar verdadeiros pacotes onde o poder do executivo era fortalecido, ardilosamente mesclados de concessões populistas, podendo o eleitor apenas dizer sim para tudo ou não para tudo, como a mãe que diz ao filho: se não comer a verdura, também não come o doce.

Historicamente, o plebiscito tem sido mais usado por ditaduras do que por democracias. O próprio Hitler convocou dois plebiscitos antes de estabelecer seu poder absoluto.

O cenário venezuelano é totalmente incerto. A única certeza é que vai sobrar para nós. Haverá possibilidade de fazermos uma mediação eficaz, promovendo a saída do chavismo sem derramamento de sangue? Por hora, Lula só quer fugir do assunto. A Venezuela elege quem quiser...

domingo, 9 de junho de 2024

A Razão para sermos Latino-Americanos

Recentemente deparei-me com este vídeo. É uma crítica a uma nova animação dos estúdios Disney, que retrata uma família latino-americana residente nos EUA, e foi acusado de ser ofensivo à comunidade latina por incluir gramática incorreta, estereótipos, racismo e uso de uma gíria inapropriada. Não vou entrar no mérito dessa discussão. Mas chamou-me a atenção um discurso da dubladora da animação, ela mesma descendente de mexicanos, procurando justificar os erros gramaticais:

"A língua espanhola não é uma língua latino-americana. É uma lingua que os conquistadores espanhóis forçaram ao povo latino-americano. A razão para sermos latinos e não nativo-americanos. É o motivo dessa distinção. Então fique bravo comigo o quanto quiser por palavras incorretas em espanhol"

À primeira vista, parece mesmo um disparate. Se é assim, por que ninguém diz que o inglês também não é uma língua americana, mas que foi imposta por conquistadores britânicos? No entanto, essa fala tem, sim, uma lógica peculiar, proclamada por latino-americanos residentes nos EUA. Em seu entendimento, o termo "latino" refere-se ao nativo americano, e não ao colonizador. Pelo senso comum, sabemos que o termo "latino" refere-se a povos originados da desintegração do Império Romano do Ocidente, onde a língua falada era o latim - italianos, franceses, espanhóis, portugueses, romenos. Estritamente falando, sul-americanos não são latinos, mas descendentes de latinos. Nunca encontrei motivo para pôr em dúvida essa assertiva. Mas recentemente, um novo pensamento tem redefinido o sentido do termo, retirando-o da Europa: latinos são os sul-americanos, e o europeu colonizador foi um invasor estrangeiro que ocupou essas terras e impôs seu idioma.

Entendo que muitos descendentes de imigrantes sul-americanos nos EUA procurem uma identidade que evoca uma época gloriosa, o tempo dos antigos impérios azteca e maia, diferente da realidade frustrante de pobreza e discriminação vivida por eles. Mas militantes variados têm dado um uso político a esse sentimento identitário, com a finalidade de desvincular a população dos valores herdados de nosso mundo ocidental, e culpabilizar a outros pelos problemas atuais - nossos povos, supostamente, já existiam aqui antes da América ser descoberta, quando então fomos invadidos e espoliados, e estamos até hoje procurando fazer das ruínas um país.

Poderia ser apenas uma ilusão tola. Mas é nefasta, a julgar por outros exemplos na História. A busca por uma identidade antiga e mítica como escapismo para os maus tempos do presente já ocorreu em outros momentos, como por exemplo na Alemanha derrotada após a primeira guerra mundial, quando surgiu a Sociedade Thule, fundada por ocultistas, que afirmava serem os povos nórdicos originados de uma ilha mítica denominada Thule, e pregava o retorno aos supostos valores originários e o abandono do mundo ocidental cristão. Sabe-se que esta sociedade teve grande influència no partido nazista, que realmente incentivou a prática de rituais do antigo paganismo germânico, como forma de resgate do orgulho e do sentimento exclusivista.

Do mesmo modo, os latino-americanos da época atual querem se desvincular do mundo ocidental. E tem nesse propósito o pleno apoio dos norte-americanos, igualmente interessados em alijá-los do mundo ocidental, que assim pode ser pensado como composto unicamente por países ricos e desenvolvidos. Ironicamente, com essas ideias, os latino-americanos endossam o estranhamento que é a verdadeira causa de sentirem-se excluídos e discriminados, e também alimentam o racialismo tão marcante na América do Norte - atualmente, nos EUA, ninguém mais associa o latino ao europeu que fala uma língua derivada do latim, mas o termo tem sido empregado cada vez mais como a definição de uma raça, supostsmente originária da América do Sul. Um sul-americano chegado nos EUA pode ter a raça que for, mas nunca é catalogado como branco, negro ou asiático, mas sempre como "latino".

Os norte-americanos não proclamam que o inglês foi uma língua imposta pelos conquistadores, pois ao contrário dos latino-americanos, consideram-se os herdeiros legítimos daquele conquistador. E no entanto, a despeito das muitas diferenças, tanto no norte como sul, a História replicou o mesmo roteiro de Descoberta + Inclusão em Impérios Europeus + Independência + Escravidão + Imigração. Sem fantasias e mistificações, somos membros ordinários do Mundo Ocidental. Que não contém somente países ricos.

domingo, 14 de abril de 2024

A Lenda do Poder Moderador

Uma notícia recente dá conta de que o STF rejeitou por unanimidade a tese de que um artigo da constituição conferiria um "poder moderador" às Forças Armadas. Lembrando, a figura do Poder Moderador, esse em maiúsculas, foi criada na primeira constituição do país e conferido ao imperador, a quem caberia mediar conflitos entre o ministério e o parlamento, com prerrogativa de dissolver ambos e convocar novas eleições. Ao invés dos tradicionais três poderes - executivo, legislativo e judiciário - a constituição do Império reconhecia quatro. E o fato é que o Poder Moderador funcionou a contento, haja visto ter sido aquela a constituição mais longeva da história do país.

Nenhuma constituição republicana mencionou um poder moderador. Mas uma corrente de historiadores e analistas políticos têm tido gosto em afirmar que o poder moderador continuou existindo, tendo passado a ser exercido pelos militares. Faz um certo sentido. Os militares derrubaram o imperador, que era o detentor legal do Poder Moderador, então teriam assumido para si este poder. E bem ou mal, a história republicana foi pontilhada de muitas intervenções militares. Uma interpretação benevolente afirma que em momentos de grave impasse político, com iminência de revolução e guerra civil, as forças armadas apresentam-se como mediadoras do conflito e impõem uma solução que impede o pior.

Independente da orientação política do observador, é de fato tentador crer que existe um anjo da guarda que sempre nos salvará de impasses sangrentos, reconduzindo o país à normalidade. Mas as intervenções militares na história republicana se encaixam efetivamente na figura de um poder moderador?

Um mediador, por definição, concilia dois contendores. Ele pode urdir um acordo, ou dar ganho de causa para um dos litigantes, mas não pode assumir o poder ele próprio - nesse caso ele deixaria de ser um mediador e se tornaria um terceiro contendor. Parece-me que o real propósito dos militares, em todos os episódios de intervenção, sempre foi inaugurar seu próprio governo. Em 1930 um junta depôs o presidente, abortando a guerra civil que se avizinhava. Mas deu inequívocos sinais de que pretendia permanecer no poder, tendo inclusive nomeado ministros - o poder só foi entregue a Getúlio Vargas quando as forças que o apoiavam ameaçaram prosseguir rumo à capital. Em 1946 o próprio Getúlio Vargas, suspeito de planejar um golpe para suspender a eleição marcada, foi deposto por um golpe dos militares, e o poder foi entregue ao presidente do STF. Mas na eleição que se seguiu, ambos os candidatos eram militares. Em 1964 o poder foi tomado pelos militares sem nenhuma disposição de conciliar facções políticas.

A estabilidade política do Império deveu-se à forma como o país obteve a independência, preservando intactas instituições herdadas do período colonial e assim impedindo que os militares se tornassem atores políticos, como aconteceu na América Hispânica. Por toda a história do continente, a presença de militares na política foi sinônimo de guerra e distúrbio, raramente produzindo governos duradouros, ou quando o faziam, eram terríveis ditaduras de algum caudilho. Considero "wishful thinking" a tese de que os militares exercem um poder moderador - historicamente, eles têm sido mais um fator de desordem do que de ordem.

Quem quer o poder moderador, quer ser imperador. Mas imperador o país já teve.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Mais um 31 de março

Todo ano, aproximando-se o calendário do 31 de março, emergem novas (ou as mesmas?) discussões sobre o evento ocorrido em 1964, até hoje não assimilado de todo pelos comentaristas, como prova essa ressurgência. Mas por acaso adquiri recentemente um livro sobre o tema, Ditadura à Brasileira, de Marco Antonio Villa, que consegue lançar luz sobre aspectos ainda não bem ventilados.

Algo que vem me chamando a atenção é a infindável polêmica sobre se o ocorrido teria sido um golpe ou uma revolução, também a recente mania de nomear o regime como cívico-militar ao invés de simplesmente militar, como se essas fossem questões cruciais. Alguma coisa aí não ficou bem entendida, ou querem que seja o que gostariam que fosse. Lendo o livro, que cita numerosos depoimentos de personagens da época, notei que o termo "revolução" é muito repetido pelos próceres do regime até pelo menos a época de Medici. Fico com a impressão que o golpe ou revolução não foi somente uma réplica à suposta guinada comunista do presidente deposto, mas embutia efetivamente um projeto de longo prazo, abrangendo várias esferas, social, poitica, econômica, tal como uma verdadeira revolução.

Mas que projeto seria esse? No campo econômico, os presidentes militares não se desviaram do desenvolvimentismo nacional-estatista que vinha regendo o país desde os anos 30, oscilando entre sua vertente "entreguista" (Kubitchek, Castello) e sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel). No campo político, fica claro: seguiu-se a doutrina positivista do filósofo Auguste Comte, leitura preferida dos alunos das escolas militares do fim do império. Os positivistas desacreditavam da democratia representativa e pregavam uma "ditadura republicana, racional e científica", comandada por técnicos e não por políticos, que presumivelmente implementaria o desenvolvimento econômico e social.

Essas "ideias geniais" eram intoleráveis até para a conservadora oligarquia de plantadores de café que assumiu o poder na primeira república, a qual tratou de fechar o espaço político para os positivistas, influentes durante a "república da espada", e conseguiu alijá-los. Mas os princípios positivistas permaneceram no ideário de numerosos líderes políticos, e sobretudo militares. O autor foi claro em todas as letras: os militares viam a política como uma inutilidade, um obstáculo ao desenvolvimento.

Mas neste ponto verifica-se uma contradição fundamental: se era assim, então por que o regime instaurado em 1964 revestiu-se de um caráter bacharelesco, com todos os atos arbitrários cuidadosamente editados, numerados e publicados? Houve cerca de vinte atos institucionais, embora sejam mais conhecidos o AI-2 e o AI-5. Os atos complementares contam-se às dezenas. Essa idiossincrasia contrapõe-se dramaticamente ao que ocorria na época em nossos vizinhos hispânicos, com os generais-presidentes dispensando qualquer arremedo de legalidade, e sem data para sair. Talvez houvesse uma aversão da parte de nossos generais de serem vistos como reles caudilhos, equiparando-se aos hispânicos, aversão herdada dos idos do império quando o exército brasileiro bateu-se contra vários daqueles caudilhos.

Ou talvez ocultasse uma proposta de tornar gradualmente a ditadura um regime constitucional, para desta forma cimentar nas instituições os ideais da suposta revolução, e quando nada, para lhes proporcionar uma saída honrosa, "legal". Conforme se sabe, conseguiram.

O livro chama a atenção para outros aspectos do período frequentemente ignorados pelos comentaristas, como o fato da esquerda tampouco ser democrática - se para os militares a política era uma inutilidade, para os militantes revolucionários a política era uma farsa, a que chamavam "democracia burguesa". É perfeitamente sabido que todos os movimentos revolucionários sul-americanos dos anos 60 e 70 tinham como meta o modelo cubano, com um partido único. Outra verdade incômoda é que nem todos os políticos civis do partido governista submetiam-se à ditadura apenas por coação - havia muitos que concordavam com ela, e até os que eram mais radicais.

De fato, chegava a ser hilário o radicalismo caricato de um Gama e Silva, ministro da Justiça de Costa e Silva, que até tinha dificuldade para suportá-lo, pois não lhe era difícil perceber que a propensão de seu auxiliar em ser mais realista que o rei não passava de sabujice. Os primeiros anos do regime, então, foram mesmo uma tragicomédia, com tantos líderes políticos proeminentes dando seu apoio ao novo governo, confiantes que assim se veriam livres dos adversários cassados e teriam todas as possibilidades de se tornarem presidentes na eleição de 1965, apenas para verem a eleição cancelada e eles próprios cassados.

Outra coisa que sempre me chamou a atenção - e que o autor procurou explicar - foi o mais absoluto abulismo da parte da população em geral, que não expressou reação nenhuma à implantação da ditadura, sobretudo após o AI-5. Pouco antes havia um clima de descontentamento no ar e um aguerrido movimento estudantil, onde foi parar tudo aquilo? O autor narra como Carlos Lacerda, preso em seguida, iniciou uma greve de fome e logo foi repreendido pelo irmão:

"Os jornais não estão iniciando nada disso; as praias estão repletas; está um sol maravilhoso e está todo o mundo na praia; ninguém está tomando conhecimento disso! Então você vai morrer estupidamente. Então você quer fazer Shakespeare na terra da Dercy Gonçalves?"

Por certo, nem todos os que estavam tomando sol na praia apoiavam o que estava acontecendo, acredito até que a grande maioria não apoiava. Por que ninguém fazia nada? O autor ensaia uma explicação:

"Em um país com tradição autoritária, avesso às grandes lutas políticas e vivendo de movimentos espasmódicos de mobilização, quando o cenário econômico é favorável, com expansão do emprego, do crédito, do consumo e com a possibilidade de ter uma casa própria, a política vira um estorvo para a ampla maioria da população. Era o que estava acontecendo em 1969"

A política tinha, de fato, virado um estorvo para todos. Mas o grande sucesso estratégico do regime foi usar a política para criar a ilusão de que havia uma normalidade próxima, e assim dissuadir qualquer reação precipitada da parte dos eventuais adversários. Para tal, em primeiro lugar foram eliminados os chefes políticos mais importantes, tanto dos adversários quanto dos apoiadores - assim se foram Carlos Lacerda, Adhemar de Barros, Juscelino Kubitchek e quaisquer outros politicos civis grandes o bastante para disputar o poder com os militares. Os demais foram atirados nos dois únicos partidos admitidos, que tornaram-se valas comuns, anódinos, sem espírito ou ideologia definida. Então criou-se uma legalidade forjada, onde as regras eram mudadas sempre que necessário para garantir a maioria do partido do governo.

Para quem vê a política como uma inutilidade, é normal acreditar que toda essa manipulação da legislação eleitoral seria inócua para o país. No entanto, essa tornou-se a herança mais importante e longeva do regime dos militares. O objetivo foi desemponderar o eleitorado e os políticos dos grandes centros, mais esclarecidos e importantes economicamente, em prol do eleitorado e dos políticos dos rincões atrasados, tradicionalmente dependentes e apoiadores do governo. O efeito a longo prazo no quadro político foi devastador. Nunca mais surgiram líderes intelectualmente brilhantes com um Carlos Lacerda; em seu lugar, surgiu um José Sarney. Vinte anos depois, o sucessor de um Adhemar de Barros, este já visto como populista e corrupto, foi um Paulo Maluf. O primeiro presidente eleito após o fim do regime foi um Collor de Melo, originado do mais atrasado coronelismo de um estado atrasado.

Sessenta anos após, nada mais resta da obra do regime exceto a destruição do quadro político. Desiludido com os partidos, o eleitorado busca líderes carismáticos - um Lula ou um Bolsonaro. Ambos parecem hologramas de outra época, repetindo discursos anacrônicos, prova de que o regime de 1964 ainda está entre nós. Por isso estamos sempre a discutí-lo como se ainda fosse o presente. Mais um 31 de março.

sábado, 16 de março de 2024

Casa Grande & Senzala, ainda atual?

Completa 90 anos o grande clássico das Ciências Sociais brasileiras, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, ainda hoje incitando polêmicas. O livro ganhou uma edição especial comemorativa de aniversário da Global Editora, e foi objeto de um artigo da revista Aventuras na História, comentado pela historiadora Mary Del Priore e pelo economista, cientista político e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira. Mas minha grande dúvida é: continua atual? Argumenta Bresser-Pereira:

"Casa Grande & Senzala continua atual porque é uma obra histórico-sociológica que busca os fundamentos da sociedade brasileira. Uma sociedade que, como todas as grandes sociedades, muda, mas se conserva a mesma (...) As suas bases econômicas, políticas e raciais continuam as mesmas"

O livro seria, então, uma referência para explicar aquilo que chamamos "brasilidade". O objeto do estudo foi o povo. Afirma Mary Del Priore:

"Muito antes dos historiadores estrangeiros falarem em atores anônimos da História, Giberto Freyre o fez. Nos seus livros, não há heróis. Há gente, povo"

Freyre foi, de fato, um pioneiro da técnica de produzir estudos sociológicos partindo de detalhes da vida privada de pessoas comuns, uma tendência que mais tarde se tornaria moda. Teve também o mérito de contestar a teoria então amplamente aceita da inferioridade das raças mestiças, que seriam um entrave ao desenvolvimento do país. Mas demolido este mito, criou outro: o da mestiçagem como sendo o traço fundador da sociedade brasileira, onde supostamente as raças convivem de forma harmônica. Por este motivo, Freyre é até hoje criticado por haver lançado a falácia da "democracia racial", termo que não aparece em nenhum de seus escritos, mas que é sugerido pela maneira leniente com que abordou a colonização portuguesa e relativizou o papel da escravidão no país. Mas como bem apontou Mary del Priore, o grosso das críticas resulta do desconhecimento da obra, das pesquisas e das inúmeras entrevistas dadas por Freyre ao longo da vida.

Essa polêmica rasa e persistente, que passa ao largo de uma análise mais profunda de sua obra, é produto, a meu ver, daquilo que é seu grande defeito: manter um viés racialista. Não confundir racialismo com racismo. Racialismo é toda abordagem que afirma ser a raça um fator explicador de determinado fenômeno social, o racismo é um recorte do racialismo que procura provar que umas raças são superiores às outras.

Freyre, com certeza, não era um racista. Mas indiscutivelmente era um um racialista: se afirmar que a mestiçagem torna o país inferior é uma falácia sem fundamento científico, o mesmo se diz de afirmar que a mestiçagem é o traço explicador do país. Afinal, o perfil social, cultural e político do Brasil foi originado da mistura de heranças genotípicas das raças que constituíram a nossa população? Ou foi produto de circunstâncias histórias e ambientais, que teriam gerado um perfil análogo mesmo se nossas matrizes raciais viessem de outros grupos étnicos?

Pergunto-me porque Gilberto Freyre, o estudioso, insistiu tanto nessa exaltação da mestiçagem. Ele próprio (ao contrário do que muitos supõem) nunca conheceu pessoalmente aquele mundo de casas grandes e senzalas sobre o qual discorreu com tanta familiaridade, como se o houvesse conhecido. Mas ele era filho de um médico e sempre morou em cidades. Talvez o motivo tenha sido uma fixação pessoal. Um outro livro de Freye, muito menos conhecido, um livro de memórias intitulado De Menino a Homem narra várias experiências sexuais bizarras da juventude, e deixa claro como o autor era fascinado por sexo interracial.

A meu ver, a mestiçagem está mais para mito fundador do que para traço fundador. É algo que gostamos de acreditar - o país é uma mistura de elementos europeus, africanos e índios. Mas é autoevidente que o elemento europeu é arrasadoramente dominante, sem contar que ao nos referirmos a elemento "africano" e "índio", estamos atirando em um mesmo saco dezenas de etnias que pouco tinham em comum umas com as outras, cujas heranças foram perdidas no processo de colonização, restando apenas vestígios periféricos. Já a herança européia é muito mais concisa, originada de seus quatro pilares: o greco-romano e o judaico-cristão. Uma análise honesta do Brasil só pode considerá-lo um membro ordinário do Mundo Ocidental, tal como o restante das ex-colônias dos impérios europeus - pobre, ou subdesenvolvido, se preferir, mas ocidental.

Mas então, Casa Grande e Senzala continua atual?

Sim, desde que o país seja reduzido a casas grandes e senzalas. Onde estão aí os milhões de imigrantes que hoje constituem a classe mais ativa do país em termos econômicos e culturais, e que nunca passaram por casas grandes nem por senzalas? A obra sociológica de Freyre continua importante, mas a discussão em torno da relevância da mestiçagem está datada. Pertence às obsessões racialistas do princípio do século passado. Na verdade, vejo-a como um trauma que deve ser superado - o trauma de ser uma sociedade com passado latifundiário e escravizador, o que em tempos modernos é traduzido pela visão reducionista de um povo bom governado por uma elite abominável.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Lula e o Coronel Teodorico

Recentemente ficamos sabendo de mais uma fala polêmica de Lula, quando ele estava na fábrica da Volkswagen a fim de prestigiar os novos investimentos da empresa no país, e saudou de maneira dúbia uma funcionária que havia ganho um prêmio de viagem a Alemanha em razão de seu bom desempenho.

"Essa menina bonita que está aqui… Eu estava perguntando: O que é que faz essa moça sentada? (...) Aí perguntei: Não, não vai ter música. Então ela vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta de um batuque, de um tambor"

Nada excepcional. Apenas mais uma gafe das muitas que Lula tem colecionado desde seu primeiro governo. Mas com certeza é decepcionante para muitos que idealizam o personagem Lula, e dão de cara com sua rústica pessoa real. O personagem Lula, de fato, tem sido construído desde que o ex-líder sindical surgiu para a fama, representando no imaginário coletivo a figura do trabalhador que deve chegar ao poder, consoante à teoria de Luta de Classes marxista. Seus seguidores veem nele um selo de autenticidade: Lula é o trabalhador, o genuíno brasileiro, vindo das massas para a redenção das massas. É um ícone para ser reverenciado.

Como animal político, não se pode negar que Lula possui virtude, no sentido maquiavélico do termo - a virtù. É inegável sua habilidade política, e impressionante sua capacidade de se reinventar. Mas os que tiveram a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente ressentem-se de seus modos rudes e de sua absoluta indiferença quanto à possibilidade de estar ofendendo seu interlocutor.

E ironicamente, essa tosquice não é um sinal de que o personagem é falso. Antes, é a confirmação de que é genuíno. Lula veio das massas, do mais profundo populacho, e traz em sua pessoa tudo de mau que se encontra nesse buraco: é grosseiro, ignorante, preconceituoso, machista, racista, presunçoso, sem tato, sem refinamento. Dificilmente poderia ser diferente.

Mas o que me chama mais atenção em Lula é a candura com que ele expõe sua fata de honestidade. Não é um afã de esconder suas falcatruas, mas parece simplesmente ignorar que tais falcatruas consstituem violação das leis do país. Lembra o Coronel Teodorico, personagem de Monteiro Lobato, que o concebeu como um roceiro inculto, vizinho de Dona Benta. Um dia oferecem-lhe uma suposta máquina que imprime dinheiro, tradicional conto do vigário, e ele fica entusiasmado. Mas antes explica:

"A máquina faz dinheiro de verdade. Porque fazer dinheiro falso é crime, mas dinheiro de verdade não"

Acho que encontrei a definição ideal pars Lula: o moderno Coronel Teodorico..

Mas quem nos governa é o animal político. Confiemos em Maquiavel.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Imigração e Transição Demográfica

Um assunto muito em voga atualmente é a suposta xenofobia sofrida por imigrantes brasileiros em Portugal. São encontráveis numerosos vídeos a respeito no youtube, sempre seguidos de comentários apaixonados de ambos os lados. O assunto não é novo. Já publiquei anteriormente uma postagem, procurando desmistificar o fenômeno da imigração do terceiro para o primeiro mundo, tema normalmente tratado de forma superficial e sensacionalista, invocando uma "invasão" e destacando a "benevolência" dos países ricos, que assim acabarão por perder sua identidade cultural e étnica no longo prazo. Há já 30 anos foi publicado uma análise hoje um tanto esquecida do francês Jean-Christophe Rufin, intitulada O Império e os Novos Bárbaros, onde é feita uma comparação com a antiga fronteira (limes) do Império Romano, urdida para apartar os bárbaros, mas que acabou transposta por estes mesmos povos.

Sabe-se que a penetração bárbara no Império Romano nem sempre teve a feição de uma campanha militar. Muitas vezes aqueles povos, consderados aliados, eram autorizados a habitar o interior das fronteiras. Analogamente, é preciso frisar que os "bárbaros" da atualidade não estão invadindo à força os países da Europa e da América do Norte - as portas desses países estão sendo abertas, pois há um interesse, ao menos de alguns, em receber esses imigrantes, e não se trata de benevolência. A população daqueles países não deseja mais realizar trabalhos pesados, nem mesmo o de ter filhos, e os imigrantes ali estão para realizar esses trabalhos e substituir aqueles que não nasceram.

A causa-raiz do fenômeno, portanto, não reside em crises passageiras, mas na inexorável transição demográfica: todos os países que atualmente recebem imigrantes estão com uma taxa de natalidade inferior a dois filhos por casal. Como se sabe, a taxa mínima para manter a população estável é de dois filhos - seria como se os pais se repusessem. A diminuição da população jovem causa a escassez de mão-de-obra para as ocupações menos qualificadas, tradicionalmente exercidas pelos mais jovens sem experiência. Os imigrantes os substituem, mas causam mudanças nos padrões étnicos e culturais da população, induzindo a conflitos.

Isso tudo é bem conhecido, embora muitos tapem os olhos para não ver. Mas uma discussão que se seguiu a um vídeo do youtube, referindo-se ao problema em Portugal, chamou-me a atenção para outro fato que também não tem sido apontado: a transição demográfica vale para todos, e a taxa de nascimentos no Brasil ja caiu para abaixo de dois filhos por casal.

E sim, o Brasil continua reebendo imigrantes. Será esse então, também nosso futuro, ser invadido por estrangeiros que entrarão em conflito com os locais? Os imigrantes pobres habitarão guetos e integrarão facções criminosas? Com certeza o fenômeno afetará o mundo inteiro, mas não da mesma maneira. Em determinado momento a transição demográfica também atingirá os países que enviam os imigrantes, então a populaçãa mundial começará a encolher. Isso pode ter um lado bom: o planeta pode acomodar uma população menor com menos pressão sobre o meio-ambiente, e diversas áreas hoje degradadas podem ser recuperadas.

Mas até que se atinja este ponto de inflexão, enormes mudanças ocorrerão na composição étnica de diversos países, com inevitáveis impactos sociais e políticos. E também religiosos. É possível que muitos países hoje cristãos, tornem-se majoritariamente muçulmanos. A taxa de crimes já está crescento aceleradamente em muitos países até pouco atrás vistos como modelos. É difícil prever o que esses países se tornarão no futuro. E o Brasil?

Há semelhanças e diferenças. O Brasil sempre foi um país de imigrantes, bem ou mal acostumado à diversidade - na verdade, foram esses imigrantes que constituíram o país. A imigração enriqueceu o Brasil, mas empobrece a Europa. Aqui, os bolsões de pobreza e crime, notadamente as favelas, nunca foram constituídos de imigrantes; em sua maioria são constituídos de descendentes de escravos. Diferente da Europa, onde os bolsões de pobreza e crime são essencialmente constituídos por estrangeiros e seus descendentes. Aqui, mesmo os imigrantes pobres, haitianos e angolanos, não têm sido encontrados em favelas nem dedicados ao crime.

O Brasil do passado, imenso e despovoado, carente de empreendedores e de profissionais qualificados, necessitava de imigrantes como um balão necessita de ar. Mas será que os imigrantes continuarão a ser absorvidos, ou já estamos nos tornando algo parecido com a Europa? E afinal, por que a Europa, que economicamente necessita tanto dos imigrantes, tem tanta dificudade em absorvê-los socialmente?

A melhor resposta pode ser encontrada em um comentário de Rufin, no já citado O Império e os Novos Bárbaros:

"O império do norte, próspero e em processo de envelhecimento, tende a ter os mesmos objetivos dos cidadãos de meia-idade que o compõe: não se reproduzir, não se disseminar, mas durar, o máximo possível no doce aconchego da paz e da tranquilidade"

Os imigrantes queixam-se da xenofobia, mas xenofobia é caracteristica de indivíduos que não têm mais qualquer interesse por algo senão eles próprios, que nada mais querem mudar, visam apenas seu tranquilo final de vida e não dão nenhuma importância para o que virá depois.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Equador: não se combate o crime como antigamente

Tem tomado conta do noticiário os acontecimentos no Equador, desafiado pelas gangues e havendo declarado um estado de exceção para combatê-las. Nada de novo: já vivemos experiências do tipo por aqui, 2006 em SP e 2010 no RJ. E o caso do Equador apenas reedita o já acontecido com a vizinha Colômbia, em escala muito maior nos tempos de Pablo Escobar.

A realidade é evidente: não é mais possível combater o crime como antigamente. Pois o crime, na época atual, não é mais como era 50 ou 100 anos atrás. As quadrilhas municiaram-se de armamento, pessoal, financiamento e organização, a ponto de serem hoje capazes de desafiar frontalmente o Estado, tal como faziam os grupos guerrilheiros na época da Guerra Fria, com a diferença de que as quadilhas não querem assumir o governo, mas terem curso livre para suas atividades. O Equador recentemente tornou-se uma rota ideal para entorpecentes, em razão de sua localição privilegiada próximo ao mar e aos principais produtores de cocaína, Peru e Colômbia. É fácil imaginar o enorme poder que essas gangues milionárias e bem armadas têm sobre um país pequeno e pobre.

Mas lendo as matérias e os comentários, o que mais tem me chamado a atenção é a insistência em enquadrar os presentes acontecimentos nos paradigmas do passado, como bem exemplificado neste vídeo, onde abundam aqueles argumentos que faziam todo o sentido nos tempos antigos, mas que em nada mais se aplicam no tempo atual, parecendo mais um sinal de desalento, catatonia e recusa em enxergar a realdade. A maioria orgina-se de uma insistência em dar uma leitura de Luta de Classes ao fenômeno da criminalidade, o que é esperado de uma geração formada pelo marxismo escolar.

- "O culpado é o governo" (ou as elites). É o vício de atirar às classes superiores a culpa de todos os males, sendo o homem do povo visto como uma vítima patética, mesmo quando comete crimes. Se o governo tem alguma culpa, é a de não reprimir eficazmente o crime. No estágio atual do poder das quadrilhas, elas não necessitam mais de parceria com o governo. Ainda ecoa no ouvido de todos aquela afirmação de El Chapo, mega traficante mexicano: por que eu desejaria ser presidente, se tenho mais poder que o presidente?

- "O problema é a corrupção". Sem dúvida que a corrupção existiu e ainda existe, mas na atualidade as gangues têm sua rede própria de um extremo a outro, e não mais dependem de subornos pagos a agentes do governo, já que têm poder para confrontar abertamente o governo. Agora elas simplesmente matam quem se lhes opõe.

- "Prender não adianta, é preciso dar educação e emprego". Essa afirmação pressupõe que o indivíduo entra para o crime por falta de alternativa: ele bem desejaria ser um trabalhador, mas não teve escola e não tem emprego. Podia fazer sentido décadas atrás, mas não tem nada a ver com o perfil dos atuais membros das gangues. Eles não estão interessados em escola ou emprego, posto que perceberamque o crime é mais rendoso, com boas perspectivas de impunidade.

- "É só prender o chefe da quadrilha". Mais uma amostra da deformação causada pelo enquadramento marxista ao fenômeno da criminalidade. As quadrilhas não têm ums estrutura política hierárquica, onde a derrubada do chefe-de-estado extingue o regime; as quadrilhas são formadas por vários núcleos que rapidamente se reoganizam em novos grupos quando um líder é eliminado. Por conseguinte, o crime não pode ser combatido pelo topo, mas apenas pela base: esquina a esquina, bandido a bandido. O crime nunca é eliminado totalmente, mas pode ser reduzido a níveis toleráveis.

- "É preciso agir em duas mãos, ação da polícia e obras sociais". Novamente é pressuposto que o indivíduo entra para o crime por falta de apoio do governo. Obras sociais são úteis e necessárias, mas não têm nenhum efeito sobre a criminalidade, e podem até constituir um estímulo. Uma vez que as comunidades estão sob o controle das gangues, a realização de obras sociais ali implica um acordo com as gangues que será do interesse delas, fato que foi exemplarmente mostrado no filme Tropa de Elite.

Portanto, assim como os paradigmas atuais do crime não são mais os do passado, os velhos paradigmas do combate ao crime já não funcionam mais. Se as gangues atuam como um exército capaz de desafiar tropas do governo, então é preciso enfrentá-las como em uma guerra, o que já está sendo feito no Equador, mas a solução definitiva passa por uma reforma completa do código penal, com penas mais longas e isolamento dos criminosos em mega prisões guardadas por número suficiente de agentes, pois prisões superlotadas com centenas de presos para cada agente penitenciário rapidamente caem em poder das quadrilhas e viram quartéis das mesmas. Apenas o encarceramento massivo de longa duração será dissuasão suficiente para os que julgam o crime uma opção preferencial. O exemplo bem sucedido de El Salvador é a evidência, mas paradoxalmente, quase não é citado nos comentários, alguns nem sabem nada a respeito, outros propagam boatos sem fundamento.

A maioria ainda não entendeu que não se combate o crime como antigamente.