domingo, 24 de novembro de 2024

A Romantização da Pobreza

Um fenômeno antigo por aqui, com o qual já estamos até acostumados, é a romantização da pobreza. No espetáculo de abertura das olimpíadas de 2014, foi exibida uma favela. Eu me lembro do espetáculo de abertura da última Copa do Mundo no México, cujo tema foram os ancestrais aztecas e suas obras, justo motivo de orgulho. Acredito que a nenhum organizador ali ocorreu a ideia de mostrar favelas da Cidade do México. Aqui, no entanto, não somente é visto um valor pictórico nas favelas, como existe há vários anos um passeio organizado de turistas para quem quiser vê-las.

Algo que parece um contrassenso tão forte merece ser analisado. Este vídeo tenta algumas explicações. Mas eu acredito que para se obter a explicação completa, deve-se voltar às origens deste fenômeno, ali pelos anos 30 do século passado.

Naquela época havia em nosso meio intelectual e artístico uma enorme ânsia por uma autenticidade nacional, já bastante notável desde a década anterior com sua Semana da Arte Moderna. Queríamos ser reconhecidos por algo que fosse, supostamente, genuinamente nosso, e não uma imitação do estrangeiro. Foi aí que se elegeu o samba como a música brasileira por excelência, e seus dois corolários, o carnaval e a favela, como o berço da cultura popular nacional.

O samba nasceu nas favelas, junto com o carnaval? É questionável. O carnaval já existia antes do samba, e o maior intérprete do samba na época, Noel Rosa, era um branco de classe média. Mas isso não importa para a discussão em curso. O que importa é que a favela ganhou desde então o status de berço da cultura popular, e passou a ser exaltada pelo cinema e pela literatura, até virar produto de exportação. O Estado deu todo o apoio, consoante ao objetivo da Era Vargas de cultivar o nacionalismo ao mesmo tempo em que domesticava as manifestações populares "perigosas", como o carnaval e o samba.

Poderia ter sido uma mania passageira, fruto do momento político, mas a romantização da pobreza prosperou, e pode-se dizer que atinge seu auge agora, quando MC´s vem dizer: a favela venceu. Esses mesmos MC´s, agora ricos, há muito não residem mais em favelas, e só aparecem lá para gravar clip´s, mas como fenômeno midiático, a favela de fato venceu, mesmo que o funk seja uma imitação dos guetos norte-americanos, e não tenha nascido nas favelas brasileiras, ao contrário do samba. Mas isso tampouco importa. A meu ver, o motivo da vitória da favela foi o reconhecimento estrangeiro, algo que sub-repticiamente desjávamos com todo aquele afã de buscar coisas genuinamente brasileiras.

De fato, a favela é como o estrangeiro imagina que o Brasil "deve ser". Não fosse assim, nenhum turista pagaria para fazer tour em favela, nem o tour seria feito em veículos todo-terreno adequados para passeios na selva, tampouco o guia estaria paramentado como quem vai a um safari. Essa encenação toca um imaginário colonial muito caro, sobretudo, a estrangeiros vindos de países que tiveram impérios no passado. Remonta à época do descobrimento, com sua paisagem de índios nus na praia, dando partida na utopia até hoje cultivada: um povo que não precisa do trabalho nem de bens materias, pois vive apenas da fruição de prazeres carnais, comer, beber, dançar e fazer amor. Não é essa a imagem que a favela exibe ao mundo?

Talvez tenha sido até uma boa intenção elevar a favela à condição de ícone nacional, ao invés de escondê-la e discriminá-la, mas é evidente que o resultado, longe de incutir a empatia, expôs a favela ao deboche. Hoje, artistas ricos e turistas romantizam a favela, mas quem vive lá, só quer sair o quanto antes.

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