O recente episódio de um homem negro morto após ser agredido por seguranças de um supermercado reacendeu um debate que já estava quente: o racismo entre nós. Quem é da minha geração não deixa de encarar este tema com certa perplexidade. Então nós somos racistas? No meu tempo, racismo era um assunto meio fora de lugar. Dizia-se que era um problema dos EUA; nosso problema aqui era a desigualdade social. Ponto. Mas agora afirma-se em alto e bom tom que somos tão racistas quanto s norte-americanos, sendo a principal prova disso a distância social entre negros e brancos, maior que a verificada nos EUA.
Pelo que verifico, o racismo tem sido escancarado entre nós porque os grupos militantes negros têm expandido a própria definição do termo, agora conceituado como todo e qualquer fator histórico, social ou econômico que implique uma desvantagem para os não-brancos. Assim, apresentam estatísticas que mostram que os negros ganham muito menos que os brancos, e são muito mais sujeitos a assassinatos do que os brancos. Esses números são corretos e parecem ser uma prova cabal. Mas comparações só fazem sentido se são comparadas categorias equivalentes - ou como diz o vulgo, não faz sentido comparar laranja com banana. Contrapor a massa salarial de pretos e brancos não diz grande coisa, se uns têm empregos pouco qualificados e outros têm empregos mais qualificados. A comparação seria conclusiva se fossem comparados salários de brancos e pretos que executam estritamente a mesma função. Aí com certeza os salários dos negros continuariam a ser menores, mas não em um percentual tão alto quanto o obtido comparando-se a massa salarial de todas as ocupações juntas; todavia, teria-se nesse número a medida exata do racismo. O mesmo ocorre com o número total de assassinatos: a comparação não é conclusiva se não se entra no mérito do motivo do assassinato. Quantos podem ser atribuídos ao racismo? Quantos são apenas o reflexo de comunidades de alta criminalidade habitadas majoritariamente por negros?
É óbvio que existe o racismo por aqui - é tolice negar. Mas quem compara o racismo brasileiro com o racismo norte-americano não sabe o que está dizendo. A começar pela feição histórica do racismo norte-americano, que sempre foi institucional - as famigeradas leis Jim Crow - enquanto o nosso racismo sempre foi ex-forma. Uma diferença tão fundamental denota um desvio de origem. O racismo norte-americano surgiu como uma reação à possibilidade dos negros libertos da escravidão fazerem concorrência aos brancos, e assim ameaçarem sua preponderância política e econômica. Por este motivo, procurou-se sobretudo vedar o ingresso dos negros na política, por negar seu direito a voto, bem como o ingresso dos negros no mercado de trabalho qualificado, a fim de preservar o padrão de vida dos trabalhadores brancos, e isso foi feito mediante a segregação escolar.
O mesmo não se aplica ao Brasil do século 19, época da abolição da escravatura. Tínhamos, é certo, uma elite política e econômica que tampouco desejava perder sua posição de comando, mas o pretexto invocado para justificar a posição de comando desta elite nunca foi a supremacia racial, nem faria sentido se o fizesse, mesmo porque esta elite não era racialmente pura - desde os primórdios da colonização houve uniões com mulheres índias a fim de estabelecer alianças com as tribos. O país só "embranqueceu" efetivamente com a chegada de imigrantes europeus, a maioria após o fim da escravidão. O próprio caráter mestiço da população em geral, dificultando assim uma identificação clara de brancos e negros, já tornava o racismo, no mínimo, mais difuso.
E tampouco houve receio da concorrência dos negros libertos com uma classe trabalhadora branca, porque a própria falta de capilaridade social característica de nossa economia limitava tal possibilidade. Ao contrário do que acontecia nos EUA, onde o dinamismo muito maior da economia colocava negros e imigrantes europeus concorrendo pelos mesmos empregos, no Brasil a maioria dos ex-escravos libertos permanecia no campo, enquanto os operários da fábricas eram sobretudo imigrantes italianos. Em suma, aquela massa de ex-escravos despossuídos, que juntou-se aos igualmente despossuídos caipiras e caboclos, nunca foi uma classe perigosa a ser combatida pela elite de fazendeiros, mas sim uma massa de manobra a serviço destes, formando seus contingentes de eleitores de cabresto, trabalhadores e jagunços. Não por acaso, até hoje nos EUA o racismo é mais vicioso entre as classes trabalhadoras, enquanto que no Brasil o racismo sempre foi mais pronunciado entre os ricos, sendo atenuado ou quase inexistente entre os mais pobres.
Mas nada disso importa se além do conceito de racismo, o próprio conceito de negritude tem sido reformulado pelos militantes do movimento negro, deixando de ser um fato natural para adquirir uma acepção política: negros, agora, são todos os indivíduos que consideram-se não brancos e desprivilegiados em razão de sua raça. Com esta redefinição, pode-se até afirmar que o Brasil é um país de maioria negra. Para evitar dúvidas quando a esta classificação, o termo mulato tem sido desqualificado, acusado de ser ofensivo por se tratar de comparação com um animal de carga, a mula. Mas em suas origens no século 15, o termo não era ofensivo: tratava-se de mera metáfora para indicar hibridismo (a mula é um híbrido de cavalo e asno). Chamava-se "mulato" a tudo o que era híbrido de coisas diferentes, não apenas pessoas.
Quanto a mim, vejo o efeito deste arrazoado com uma cortina de fumaça que impede ver o real motivo da diferença social entre negros e brancos. Com certeza há racismo nos processos seletivos para empregos, privilegiando-se candidatos brancos. Mas na grande maioria dos processos seletivos para cargos de bom nível, só há candidatos brandos. Isso porque a maioria dos negros cursou escolas públicas ruins. Nesse ponto, culpar o racismo é uma desculpa providencial para quem não quer melhorar o ensino público com mais investimentos.