sábado, 30 de setembro de 2023

O Brasil e a Coréia do Sul

Nas últimas décadas, tem sido recorrente referir-se à Coréia do Sul como o contraexemplo do Brasil. Aquele que deu certo. A Coréia do Sul já foi bem mais pobre que o Brasil, hoje é bem mais rica. O Brasil estagnou a partir dos anos 80, a Coréia do Sul prosseguiu. O modelo econômico do Brasil malogrou, o da Coréia deu certo. O Brasil é violento, eles têm baixa criminalidade. Eles são o país do presente, nós continuamos sendo o país do futuro - que nunca chega.

É muito citada a diferença cultural entre o Brasil e a Coréia, cujo povo preza a educação e a disciplina, como uma das causas deste sucesso. Concordo em grande parte. Mas tenho simpatias pela Coréia do Sul, onde já estive duas vezes a trabalho, e apesar dos coreanos terem tudo para serem nossos antípodas (começando pela posição geográfica com a diferença de 12 horas de fuso) eu desde sempre percebi sutis semelhanças destes com os brasileiros. A impressão foi reforçada em minhas pesquisas no youtube, onde encontrei muitos vídeos feitos por casais de brasileiros(as) com coreanos(as). E foi também no youtube que descobri um triste episódio que me fez pensar.

Refiro-me ao naufrágio da balsa Sewol, ocorrido em 16 de abril de 2014. Lembro-me de haver lido notícias no dia, quando estava em meu escritório, mas só fui me inteirar dos detalhes sórdidos após assistir o vídeo. Havia 476 pessoas a bordo entre 443 passageiros e 33 tripulantes, dos quais 325 eram estudantes de ensino médio em uma excursão escolar à ilha de Jeju. Após uma manobra incorreta ao passar por um canal, a carga solta no porão deslocou-se, fazendo a embarcação inclinar-se, e a água rapidamente começou a entrar. Em suas cabines, os estudantes escutaram pelos autofalantes a ordem repetida de vestir os coletes salva-vidas e permanecer quietos onde estivessem, aguardando o resgate.

Vão ficar para sempre em minha memória os vídeos enviados pelos celulares dos estudantes a suas famílias, mostrando a garotada tranquila e fazendo gracejos como se aquilo não passasse de uma boa aventura, todos estritamente obedientes às instruções recebidas e confiantes de que logo seriam resgatados. Mas não sabiam que a voz que escutavam era uma gravação, e àquela altura o comandante já havia abandonado o barco juntamente com a maior parte da tripulação. Continuaram imóveis mesmo quando era evidente que o navio estava afundando à medida em que inclinava-se cada vez mais. O resultado foi que dos 476 a bordo, apenas 170 sobreviveram, pois com o navio tombado de lado tornou-se difícil sair de seu interior.

A investigação posterior revelou que o abandono do comandante não foi a única irregularidade. Também a guarda costeira custou a agir, esperando ordens que não chegavam. Verificou-se que o barco, comprado do Japão, havia passado por reformas que aumentavam perigosamente sua capacidade de transporte e acrescentavam mais andares, e essas reformas foram aprovadas mediante o pagamento de propinas. No dia do acidente, o barco estava levando uma quantidade de carga superior ao máximo permitido, incluindo automóveis presos com cordas ao invés de correntes conforme o regulamento, e foi essa a causa do desequilíbrio fatal.

Para os brasileiros, o episódio lembra dolorosamente duas tragédias nacionais bem conhecidas: o naufrágio do Bateau Mouche e o incêndio da Boite Kiss. Os mesmos ingredientes lá e aqui: incúria, ganância, corrupção, desejo de lucro suplantando a necessidade de segurança. Mas se é assim, então, a final de contas, a Coréia do Sul não é tão diferente do Brasil. Também sofre dessas "coisas de Terceiro Mundo". É difícil imaginar uma coisa assim acontecendo no vizinho Japão.

O detalhe mais mórbido é que, para as vítimas, a causa de sua morte liga-se justamente àqueles atributos que são apresentados como a causa do sucesso econômico do país: investimento na educação e rígida disciplina, traço cultural da população. Os 325 estudantes estavam sendo premiados com um passeio à ilha turística. Destes, apenas 75 sobreviveram, ou seja, míseros 23%. Já dos demais 118 passageiros, 95 sobreviveram, mais de 80%. Isso porque os jovens são os mais doutrinados nos valores de confiança e obediência à autoridade. Quem desobedeceu às instruções, sobreviveu.

Então, talvez não sejamos tão diferentes assim dos coreanos, e ser bagunçado e indisciplinado talvez não seja tão ruim. Mesmo porque, last but not least, onde há rígidas hierarquias, é provável que aqueles que estão no topo da hierarquia acreditem que podem fazer tudo, inclusive abandonar seu posto e deixar centenas de adolescentes morrerem à míngua...