domingo, 19 de janeiro de 2025

A Cultura Woke foi um tiro no pé da esquerda?

Descobri essa indagação interessante em um vídeo. Explicando, cultura woke refere-se a uma percepção e consciência das questões relativas à justiça social e racial, sugerindo uma postura militante a esse respeito. O termo deriva da expressão de inglês afro-americano "stay woke" (fique desperto) e nos últimos anos tem se aplicado amplamente a políticas identitárias, causas sociais liberais, feminismo, ativismo LGBT e questões culturais, causas quase obrigatoriamente abraçadas pela esquerda.  Mas a evolução da militância woke tem tido desdobramentos imprevistos, conforme relatado:

"As últimas décadas foram de nítido avanço na luta contra o preconceito e a desigualdade. Em todo o mundo, as minorias - um leque que abrange negros, mulheres, imigrantes, homossexuais e pessoas trans - se beneficiaram de uma ampla e saudável revisão de julgamentos pela sociedade, que resultou na aprovação de leis garantindo seus direitos e punindo quem não os respeitasse. Assim caminhou a humanidade, com mais tolerância e aceitação, até a grita ultraconservadora ganhar força e um fosso se abrir entre ela e a banda mais progressista. A acentuada radicalização que se seguiu pegou em cheio os ventos da mudança social, permitindo que um grupo de zelotes tomasse a si a função de estender a teia de inclusão a limites extremos, atirando pedras para todo o lado e recorrendo às redes para sumariamente cancelar todo e qualquer suspeito de discriminação - uma cruzada furiosa a que deram o nome woke. Tanto provocaram e exageraram que o woke, depois de um pico de influência, entrou em acelerado declínio - fazendo ressurgir, infelizmente, o impulso para realimentar séculos de injustiças"

Neste quadro, os partidos de esquerda agora têm dúvidas sobre se foi mesmo um bom negócio adotar tal agenda de forma tão incondicional. Não deixa de ser o sinal de um desgaste mais amplo da esquerda - a substituição de uma agenda política por uma agenda cultural. No Brasil, o Partido dos Trabalhadores foi quem mais abraçou essa nova linha de ação. Voltando um pouco no tempo, tudo começou com o Politicamente Correto, e frutificou com o chamado Marxismo Cultural, muito em voga no primeiro govverno do PT, quando foi amplamente reverberado por militantes e ONG´s apoiadas por este partido.

No entanto, a adoção do Marxismo Cultural foi responsável por um fenômeno até certo ponto surpreendente, e indiscutivelmente ruinoso para a esquerda - o afastamento de amplo público das periferias, que passou a aproximar-se de líderes religiosos vinculados a partidos de direita. Isso aconteceu porque aquela população viu seus valores tradicionais vilipendiados pelo discurso dito progressista, mas que não representava seus anseios, ao passo que os pastores forneciam um discurso que fazia sentido conforme as crenças e valores daquelas pessoas.

Um erro de pontaria tão crasso necessita de uma explicação, e a explicação é uma só: a idealização feita pelos intelectuais militantes sobre aquilo que o povão é, ou deveria ser. Esses intelectuais militantes vieram quase todos da classe média e do meio estudantil universitário, e nunca conviveram com a população pobre. O povo das periferias é basicamente conservador, não compreende conceitos sociológicos complicados, no lugar destes prefere assimilar a mensagem dos religiosos, para a qual basta crer. Aquilo que mais aflige o povo das periferias, como criminosos e drogas, é justamente aquilo que os intelectuais militantes mais defendem. Não admira que esse segmento da população tenha pendido em massa para a direita, que promete endurecer contra o crime e a imoralidade.

A esquerda agora precisa fazer o caminho de volta, de uma agenda cultural para uma agenda política.


domingo, 15 de dezembro de 2024

O Fim da Bipolarização?

É sabido que a escolha de presidentes radicais-caricatos, tipos como Lula, Bolsonaro e Donald Trump, é sintoma de um estado de desalento da população, que procura alternativas diferentes do convencional. O caso mais grave foi o de Hugo Chávez, do qual, de certo modo, o povo venezuelano ainda não conseguiu se livrar. Aqui pelo menos nenhum conseguiu tomar o poder para si, mas a alternância entre os extremos sinaliza que estamos presos em algum atoleiro.

Entretanto, pela primeira vez em anos, há sinais de que podemos encerrar essa etapa obscura. Quem será o próximo presidente?

A maré está totalmente contra Bolsonaro e seu grupo, cuja desmoralização é crescente, sobretudo após a descoberta dos planos golpistas. Por sorte que são uns trapalhões, se bem que o radicalismo de suas propostas não deixa de ser assustador. Mas a oportunidade passou.

Já Lula, além da idade e dos problemas com a saúde, está claramente "dilmando", conforme é mostrado pela deterioração dos indicadores econômicos, sobretudo a alta do dólar. A política lulista já ultrapassou o limite onde podia ser benévola, e as nefastas consequências estão aparecendo. Acho improvável que o PT emplaque mais um presidente nesse quadro.

Então, finalmente, poderemos ter um presidente "normal", sem ares de patético salvador da pátria. Aguardemos.

domingo, 24 de novembro de 2024

A Romantização da Pobreza

Um fenômeno antigo por aqui, com o qual já estamos até acostumados, é a romantização da pobreza. No espetáculo de abertura das olimpíadas de 2014, foi exibida uma favela. Eu me lembro do espetáculo de abertura da última Copa do Mundo no México, cujo tema foram os ancestrais aztecas e suas obras, justo motivo de orgulho. Acredito que a nenhum organizador ali ocorreu a ideia de mostrar favelas da Cidade do México. Aqui, no entanto, não somente é visto um valor pictórico nas favelas, como existe há vários anos um passeio organizado de turistas para quem quiser vê-las.

Algo que parece um contrassenso tão forte merece ser analisado. Este vídeo tenta algumas explicações. Mas eu acredito que para se obter a explicação completa, deve-se voltar às origens deste fenômeno, ali pelos anos 30 do século passado.

Naquela época havia em nosso meio intelectual e artístico uma enorme ânsia por uma autenticidade nacional, já bastante notável desde a década anterior com sua Semana da Arte Moderna. Queríamos ser reconhecidos por algo que fosse, supostamente, genuinamente nosso, e não uma imitação do estrangeiro. Foi aí que se elegeu o samba como a música brasileira por excelência, e seus dois corolários, o carnaval e a favela, como o berço da cultura popular nacional.

O samba nasceu nas favelas, junto com o carnaval? É questionável. O carnaval já existia antes do samba, e o maior intérprete do samba na época, Noel Rosa, era um branco de classe média. Mas isso não importa para a discussão em curso. O que importa é que a favela ganhou desde então o status de berço da cultura popular, e passou a ser exaltada pelo cinema e pela literatura, até virar produto de exportação. O Estado deu todo o apoio, consoante ao objetivo da Era Vargas de cultivar o nacionalismo ao mesmo tempo em que domesticava as manifestações populares "perigosas", como o carnaval e o samba.

Poderia ter sido uma mania passageira, fruto do momento político, mas a romantização da pobreza prosperou, e pode-se dizer que atinge seu auge agora, quando MC´s vem dizer: a favela venceu. Esses mesmos MC´s, agora ricos, há muito não residem mais em favelas, e só aparecem lá para gravar clip´s, mas como fenômeno midiático, a favela de fato venceu, mesmo que o funk seja uma imitação dos guetos norte-americanos, e não tenha nascido nas favelas brasileiras, ao contrário do samba. Mas isso tampouco importa. A meu ver, o motivo da vitória da favela foi o reconhecimento estrangeiro, algo que sub-repticiamente desjávamos com todo aquele afã de buscar coisas genuinamente brasileiras.

De fato, a favela é como o estrangeiro imagina que o Brasil "deve ser". Não fosse assim, nenhum turista pagaria para fazer tour em favela, nem o tour seria feito em veículos todo-terreno adequados para passeios na selva, tampouco o guia estaria paramentado como quem vai a um safari. Essa encenação toca um imaginário colonial muito caro, sobretudo, a estrangeiros vindos de países que tiveram impérios no passado. Remonta à época do descobrimento, com sua paisagem de índios nus na praia, dando partida na utopia até hoje cultivada: um povo que não precisa do trabalho nem de bens materias, pois vive apenas da fruição de prazeres carnais, comer, beber, dançar e fazer amor. Não é essa a imagem que a favela exibe ao mundo?

Talvez tenha sido até uma boa intenção elevar a favela à condição de ícone nacional, ao invés de escondê-la e discriminá-la, mas é evidente que o resultado, longe de incutir a empatia, expôs a favela ao deboche. Hoje, artistas ricos e turistas romantizam a favela, mas quem vive lá, só quer sair o quanto antes.

domingo, 3 de novembro de 2024

A Inutilidade da Educação

Os maus resultados da educação do Brasil levantam dúvidas sobre a utilidade desta educação. Este vídeo procura apontar os motivos de seu fracasso, e menciona a adoção do sistema de Progressão Continuada, também chamado Aprovação Automártica. Sob este método não há exames de avaliação anual, e o aluno só pode ser reprovado ao final do ciclo, de acordo com critérios subjetivos.
 
A Progressão Continuada não é, em sua concepção, uma fraude: baseia-se no princípio de que, uma vez que os alunos são diferentes uns dos outros, não deveriam ser avaliados pela mesma régua. Portanto, trata-se de um sistema adequado a escolas que dispõem de amplos recursos, suficientes para dar um acompanhamento personalizado a cada aluno. A Progressão Continuada é usada em diversas escolas de países desenvolvidos, embora com resultados controversos. Como a escola pública brasileira passa longe desse perfil, é evidente que a adoção de tal método aqui teve como objetivo tão somente camuflar sua própria incompetência: aprenda ou não,o aluno é aprovado, e belas estatísticas de aprovação podem ser exibidas às autoridades.
 
Mas antes deste subterfúgio ser inventado, a educação brasileira já ia mal. Qual a causa raiz? Podem ser citadas numerosas razões, da precariedade material a Paulo Freire, mas eu prefiro sintetizar em poucas palavras: a opção por uma educação massificada. A quantidade tendo prioridade sobre a qualidade. Se o estudante tem dificuldade de assimilar o conteúdo, simplifique-se o conteúdo. Se o estudante não sabe a gramática, venda-se a ideia de que a escrita errada é um dialeto tão digno de respeito quanto a norma culta. Se não há professores, ou eles não querem dar aula, passem-se trabalhos aos estudantes para que eles aprendam por si mesmos. Basicamente, o objetivo é aumentar o número de formados na escola sem aumentar as dotações orçamentárias da educação. A Progressão Continuada é apenas a cereja deste bolo.
 
Mas e a base do bolo? Para responder, é preciso entender o que é, de fato, educação. E digo logo: a educação, como a conhecemos pelo senso comum, é uma inutilidade. Sim, pois praticamente tudo o que aprendemos na escola será esquecido na vida futura, a menos que tenha uma utilidade prática. E isso é válido tanto para o bom, quanto para o mau aluno: é preciso conhecer a matéria na hora da prova, mas se ela não tiver utilidade no futuro, não faz sentido reter aquele conhecimento. O que não significa que a escola não prepare para a vida. Prepara, sim, mas não em razão do conhecimento ministrado. A escola ensina o convívio social, a disciplina e o desenvolvimento das faculdades cognitivas.
 
É neste ponto que abandonamos o senso comum e atingimos a relação profunda entre educação e cultura. A cultura diz respeito às crenças, valores e princípios que norteiam todo o comportamento humano. A educação formal é apenas uma parte desse todo, pois o restante não se aprende na escola, e sim na vida. Penso haver chegado na resposta definitiva à questão formulada: uma educação massificada, que aprova automáticamente, incute na população uma cultura de desprezo pela própria educação.
 
De fato, que respeito o aluno pode ter por uma escola que aprova automáticamente? Se nenhuma cobrança é feita quanto àquele conteúdo ministrado, a única conclusão a que o aluno pode chegar é que aquilo não vale nada - se valesse, haveria cobrança. Se a escola despreza o aluno, então o aluno despreza a escola, e por uma reação em cadeia, despreza todos os valores calcados na escola, como o progresso sócio-econômico advindo da aquisição de conhecimentos, e a própria ciência, o que vem a explicar o embaraçoso fenômeno do emburrecimento do Brasil. Como é que, do ponto de vista das estatíticas, o Brasil tem muito mais letrados do que tinha 50 anos atrás, mas 50 anos atrás produzia letrados tão superiores aos atuais?
 
No limite, essa cadeia de transmissão originadada de uma cultura de desprezo pela educação tangencia com a criminalidade, que tem aumentado enormemente no país por causa de uma opção análoga à feita para a educação: as penalidades são brandas com o objetivo de diminuir a população carcerária, e tornar desnecessário aumentar os gastos com segurança. Duas mágicas, uma para aumentar artificialmente o número de alunos na escola, outra para diminuir artificialmente o número de apenados na prisão. Assim os dois fenômenos, educação ruim e crime alto, se tocam e se complementam.
 
Do ponto de vista ideológico, esse estado de coisas é apoiado pelas doutrinas de Paulo Freire: o ensino pode estar ruim, mas isso não é o mais importante, já que o objetivo da escola não é ministrar conhecimentos, mas sim "formar cidadãos". O ensino não deve ser ministrado de forma bancária, porque o aluno sabe tanto quanto o professor. A reprovação é um ato de opressão da classe superior sobre o oprimido, pois os alunos não são bons ou maus, apenas diferentes. A educaçao não deve ser vista como uma forma de ascenção social, pois assim o oprimido vai se tornar opressor. Paulo Freire não é responsável pelas falhas da educação brasileira, mas é responsável por justificá-las mediante argumentos capciosos.
 
Se o desprezo pela educação tornou-se parte da cultira nacional, não se pode erradicá-lo com programas do Ministério da Educação. Não se pode legislar sobre cultura. O apreço do povo pela educação só pode ser restaurado se a escola novamente se der ao respeito.

domingo, 20 de outubro de 2024

O Poder Militar

Recentemente adquiri em um sebo o livro O Poder Militar, de Hélio Silva. Aprecio este historiador, cujas obras pautam pela descrição sucinta e desapaixonada dos fatos, e o tema é atemporal, posto que a influência dos militares no país tem sido constante em nossa história, mas apesar disto, muito mal compreendida. Persiste a lenda do Poder Moderador exercido pelos militares,supostamente salvando o país em momentos de grave impasse e reconduzindo-o à normalidade.

Um ponto que está fora de discussão, é que a república foi uma criação dos militares. Havia um partido republicano no país, mas não foi ele que proclamou a república, surgida por um golpe do exército. As contradições, contudo, começam aí. A maioria dos militares não era republicana - estes estavam concentrados em uma minoria intelectualizada, reunida em torno de Benjamin Constant e adepta da filosofia positivista de Comte, que descria da democracia representativa e preconizava o governo ideal como uma "ditadura republicana", conduzida por homens de caráter isento, que governariam acima de interesses partidários visando o bem comum, de forma "racional e científica". Evidente que os militares, até por sua própria formação, consideravam-se naturalmente credenciados para esta tarefa.

Coerentemente, os primeiros dois presidentes da nascente república foram dois marechais - a chamada República da Espada, considerada o primeiro governo militar do país, embora na época houvesse mais militares na cadeia do que no poder. Mas a República da Espada foi um desastre. Nada se viu dos devaneios positivistas. A crise eonômica se instalou, provocando desenfreada inflação, e focos de guerra civil pontilharam pelo país. Ironicamente, a estabilidade política e econômica só retornou quando voltou ao poder a mesma elite civil deposta pelo golpe, agora convertida ao republicanismo.

Do episódio, ficou a lição de que um governo fortemente centralizado e autoritário, conforme queriam os positivistas, era inviável no quadro social do país à época, dominado pelos "coronéis do sertão", que não hesitavam em arregimentar tropas de jagunços para defender seus interesses políticos. A insistência em um poder central discricionário inevitavelmente redundaria em descontentamento nos estados, seguido de rebeliões armadas. De fato, cena recorrente por toda a República Velha foram tropas de jagunços levando a melhor sobre tropas regulares - estas melhor equipadas, mas os jagunços mais numerosos, conhecedores do terreno e de táticas de guerrilha, podendo acoitar-se nas fazendas de seus patronos quando necessário. As polícias estaduais também prestavam-se a este papel. Até os anos 30, a polícia de São Paulo possuía até Força Aérea. Evidentemente não era uma polícia de verdade, mas um exército disfarçado.

Portanto, a governabilidade só era exequível mediante protocolos e conchavos que garantissem os interesses dos chefes políticos estaduais, uma engenharia política complexa que só podia ser urdida por políticos, e não por generais. Os pactos foram sendo costurados, delineando o perfil da Primeira República - o Café-Com-Leite, a Política dos Governadores, o Pacto dos Coronéis no nordeste. Havendo sido a República da Espada identificada com desordem e revolução, os próceres da oligarquia cafeeira trataram de fechar o espaço político aos positivistas, e conseguiram alijá-los. Mas o positivismo permaneceu sendo a ideologia preferida dos militares, e continuaria a sê-lo pelo século 20 adentro, mesmo que já não se apercebessem disso.

A partir de então, as intervenções dos militares foram pontuais, o que reforçou o mito do poder moderador que servia de árbitro. A Revolução de 30 não foi feita pelos militares, e sim pelos governadores com suas polícias - os militares deram o golpe final que retirou o presidente, mas não assumiram o poder. Os militares apoiaram o golpe de 1937, mas quem assumiu como ditador foi um civil. Os militares deram o golpe que depôs Getúlio em 1946, mas de novo não assumiram o poder - é certo na eleição seguinte os dois candidatos eram militares, mas o regime era democrático. Um militar garantiu a posse de Juscelino em 1955. Os militares se ergueram contra a posse do vice-presidente Goulart em 1961, mas novamente tudo se resolveu por um acordo.

Entretanto, uma análise cuidadosa de cada um destes eventos mostra que sempre houve uma tentativa dos militares de assumirem efetivamente o poder, ao invés de servirem de árbitros. Em 1964, este objetivo foi finalmente alcançado. Alguns mais ingênuos chegaram a julgar que se trataria de mais uma intervenção pontual, mas o que se seguiu foi a implantação daquilo que havia sido o verdadeiro propósito dos militares desde o final do século 19, o regime positivista. De fato, os generais-presidentes tinham poderes absolutos, mas o formato republicano foi mantido, com cada presidente sendo substituído ao final de seu mandato - isso não era outra coisa senão a "ditadura republicana" preconizada por Comte. Os políticos foram afastados do centro das decisões administrativas, que ficou a cargo de ministros e acessores com formação técnica, sem filiação a partidos - era a ditadura "racional e científica" comandada por tecnocratas.

A solução pareceu funcionar por alguns anos, quando houve rápida taxa de crescimento econômico, mas tudo terminou com a crise dos anos 80, que pôs fim à crença dos militares como governantes mais competentes do que os civis. De fato, até recentemente, não se ouviu mais clamores por uma intervenção militar, embora o mito dos militares como salvadores da pátria em situação de perigo tenha permanecido. Contudo, não se vê no mundo país desenvolvido que tenha tido um período de governo militar no passado como etapa construtora de sua pujança econômica e estabilidade política. O exemplo mais contundente é o do Japão, que foi efetivamente governado por militares no princípio do século 20, mas o resultado foi a guerra que representou o pior revés de sua história. Acrescente-se que a modernização do Japão só teve início depois que a Era Meiji pôs fim ao feudalismo militarizado dos Xóguns.

Governos militares abundam em países do Terceiro Mundo, e é difícil não crer que são a causa, e não a consequência do atraso e da instabilidade. Com tantos exemplos desastrosos, fica evidente que um exército que governa seu país não constitui a salvação, mas a dissolução do Estado - é como se o país houvesse sido invadido e estivesse sob o controle de tropas de ocupação. O legado mais palpável do período militar no Brasil foi a deterioração da classe política, resultado das cassações e das mudanças na legislação eleitoral que privilegiavam os políticos das regiões atrasadas em detrimento dos grandes centros - assim os militares foram sucedidos por tipos como Sarney e Collor. Evidente que essa não era a intenção declarada dos militares de 1964, mas em razão de sua formação positivistas, viam a política como uma inutilidade inócua, daí não enxergarem consequências na manipulação do quadro político para fim de manter uma fachada democrática do regime, consoante com a Guerra Fria, que se apresentava como uma luta dos regimes democrátricos contra o totalitarismo comunista.

domingo, 29 de setembro de 2024

O Rei não foi convidado

Recentemente chamou-me a atenção a notícia de que o rei Felipe VI da Espanha não foi convidado para a cerimônia de posse de Claudia Sheinbaum, a nova presidente do México. O motivo alegado foi que o monarca não respondeu a uma carta de López Obrador, o presidente atual, solicitando um pedido oficial de desculpas pelas atrocidades cometidas contra os povos ondígenas durante a colonização.

O pedido é pertinente, ninguém discorda de que as atrocidades foram cometidas. O que não entendo é por que pessoas com os sobrenomes Obrador e Sheinbaum fazem-se de porta-vozes de povos originários. Eles são um produto da colonização, sem ela sequer existiriam hoje, ou estariam em outro lugar. Se cabe um pedido de desculpas, podiam fazê-lo eles mesmos, sem recorrer ao rei.

Não é de hoje que povos sul-americanos sofrem dessa neurose: querem crer que suas nações já existiam antes da chegada dos europeus, que portanto não passariam de invasores estrangeiros que ali vieram saquear e massacrar os indígenas. Há uma óbvia crise de identidade. Embora descendentes dos tais europeus invasores, herdeiros e usufrutários de tudo de bom e de mal que estes deixaram, eles rejeitam essa identificação e identificam-se com povos originárioa, com os quais não têm nenhum parentesco. É também um sintoma depressivo: eles não sentem orgulho do que são, tampouco de sua origem, e querem culpar seus ancestrais pelos problemas atuais de seus países.

No fundo um orgulho pueril, facilmente explicado pela psicologia, mas que urde consequências mais danosas do que se supõe. Rejeitando sua herança, deserdam a si próprios em um contexto civilizacional, e buscam consolo em antigas e gloriosas civilizações dos povos que habitavam o continente - civilizações que até foram notáveis em seu tempo, mas que quase nada têm a ver com o mundo atual, exceto por comunidades isoladas e economicamente pouco relevantes, que praticam língua e costumes herdadas de seus ancestrais. Sem os referenciais da herança européia renegada, não é de espantar que exista nessa parte do mundo uma obsessão por buscar soluções políticas e econômicas exóticas, que só atrasam o desenvolvimento.

Essa ilusão autoimposta é em parte compreensível para povos como o mexicano, que efetivamente tiveram um passado glorioso com civilizações nativas avançadas, das quais ainda restam muitos descendentes. Menos razoável é que brasileiros endossem esse discurso. Nós náo fomos descobertos, fomos invadidos, bradaram muitos quando da comemoração dos 500 anos. Isso procede?

Não. O que havia aqui antes de 1500 não era o Brasil, mas uma região geográfica habitada por tribos seminômades que não falavam a mesma língua, não estavam unidas por uma federação nem tinham fronteiras delimitadas. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil passou a existir após a chegada dos portugueses. Considerar tal chegada uma "invasão" e um "saque" extrapola conceitos do presente para um passado onde estes não existiam: nenhuma fronteira foi violada porque fronteiras não haviam, nem os indígenas foram roubados porque tampouco conheciam a propriedade privada. Tanto não se sentiram invadidos, que o primeiro contato com a frota de Pedro Álvares Cabral foi amistoso. Ah, mas depois houve guerra, certo?

Sim. Mas não foi uma guerra movida por uma coalização de povos nativos contra um suposto invasor. Os indígenas foram ver o que queriam aqueles forasteiros. Descobriram que tinham coisas muito interessantes - objetos de metal - que davam em troca de uma madeira que havia ali, que não tinha valor para os locais. Algumas tribos se aliaram aos portugueses, outras aos franceses, que tinham os mesmos propósitos. As guerras entre índios e portugueses, portanto, foram um desdobramento do conflito destes com os franceses.

Devíamos nos livrar de vez desse discurso autoindulgente. Os portugueses não roubavam o nosso ouro, os portugueses cobravam impostos. Nenhum governo se sustenta sem cobrança de impostos, e olha que não eram tão altos: era o "quinto", ou 20%, sendo que a carga tributária atual já se aproxima dos 40%. Todos nós somos descendentes, em todo ou em parte, desses "invasores", e usufruimos da cultura por eles deixada. Exigir desculpas deles é um teatrinho bobo, e sobretudo hipócrita. Não existiríamos sem eles. Se a colonização européia, como dizem, reduz-se a saques e atrocidades, desses saques e atrocidades não fomos vítimas. Fomos sócios.

domingo, 8 de setembro de 2024

Saudades da Ditadura

Um fenômeno inquietante que eu tenho observado são pessoas que afirmam ter nostalgia dos tempos da ditadura, um período idealizado como de valores corretos, quando lugar de vagabundo era na cadeia e o país crescia. Nada tão estranho, esse fenômeno é conhecido em épocas de desalento da população. Mas um vídeo que descobri me deixou bem estarrecido.

Feito em 1970, mostra um desfile de formatura da Guarda Rural Indígena, milícia constituída por índios de diversas etnias, com a finalidade de ser a polícia nos territórios indígenas, bem de acordo com o espírito da época. Ou talvez de acordo demais. Em meio à parada de índios uniformizados mostrando as técnicas aprendidas na escola da polícia, surge um homem pendurado em um pau-de-arara, conduzido por dois homens, que seguram um de cada lado.

É algo absolutamente inusitado. O regime jamais reconheceu a existência de torturas, e agora aqueles cadetes não só a reconhecem, como a exibem com orgulho diante de um palanque repleto de autoridades, e na presença de repórteres. Quem teve aquela ideia? Quem permitiu aquilo, se é que alguém permitiu? Nunca saberemos, mas a impressão que eu tenho é que o próprio absurdo da imagem deixou as testemunhas sem ação, e ninguém se lembrou de mandar destruir aquela prova da existência da tortura no país, que foi guardada pelo cinegrafista em uma caixa ardilosamente marcada com a sigla "arara". Na aparência referia-se à etnia indígena de mesmo nome, mas o cinegrafista tinha a esperança de que um dia aquele material seria encontrado, e o verdadeiro significado daquele "arara" seria conhecido. O que efetivamente aconteceu.

Mas se em 1970 aquelas pessoas não tiveram escrúpulo de exibir técnicas de tortura, diversos comentaristas do vídeo tampouco tiveram escrúpulo de declarar seu apoio à ditadura.

Época em que bandido e vagabundo realmente se davam mal. E quem andava na linha se dava muito bem, em um país mais próspero e seguro.
Pelo menos tínhamos um governo e um oriente para seguir, hoje não temos rumo nenhum, hoje vivemos com um inimigo chamado governo, com uma máquina pública inchada, altos salários para magistrados, políticos e etc. Para o trabalhador só miséria e resto.
Época boa , só fala mal dessa época quem era contra o governo ou fazia coisas erradas.
Volta logo ditadura ! Eu não sou subversivo e nem comunista.
Só sofria vagabundo cidadão era respeitado

Mas a ditadura teve um saldo positivo, ou ao menos foi necessária na época?

O recentemente falecido ex-ministro Delfim Netto afirmou que sim, em uma entrevista. Signatário do AI-5, declarou ao presidente Costa e Silva:

"Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez"

Penso que o discurso foi mera sabujice, mesmo porque a área de Delfim não era a política, e sim a economia. Mas chama a atenção um pensamento recorrente à época: as mudanças "são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez". Ou seja, a ditadura favorecia o desenvolvimento. Era preciso "fazer o bolo crescer" antes de dividi-lo, conforme se dizia. Concluído o desenvolvimento, poderia-se até implantar a democracia.

Quando João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura, entregou o poder, o país estava em recessão e a inflação disparava. Aparentemente, o AI-5 não incrementou o desenvolvimento. O desastre econômico da "década perdida" pôs fim à crença de que os militares seriam governantes mais competentes que os civis, e até recentemente ninguém clamou a volta dos militares ao poder.

Mas já se passou tempo suficiente para que o período dos militares se incorporasse à lenda.