domingo, 20 de outubro de 2024

O Poder Militar

Recentemente adquiri em um sebo o livro O Poder Militar, de Hélio Silva. Aprecio este historiador, cujas obras pautam pela descrição sucinta e desapaixonada dos fatos, e o tema é atemporal, posto que a influência dos militares no país tem sido constante em nossa história, mas apesar disto, muito mal compreendida. Persiste a lenda do Poder Moderador exercido pelos militares,supostamente salvando o país em momentos de grave impasse e reconduzindo-o à normalidade.

Um ponto que está fora de discussão, é que a república foi uma criação dos militares. Havia um partido republicano no país, mas não foi ele que proclamou a república, surgida por um golpe do exército. As contradições, contudo, começam aí. A maioria dos militares não era republicana - estes estavam concentrados em uma minoria intelectualizada, reunida em torno de Benjamin Constant e adepta da filosofia positivista de Comte, que descria da democracia representativa e preconizava o governo ideal como uma "ditadura republicana", conduzida por homens de caráter isento, que governariam acima de interesses partidários visando o bem comum, de forma "racional e científica". Evidente que os militares, até por sua própria formação, consideravam-se naturalmente credenciados para esta tarefa.

Coerentemente, os primeiros dois presidentes da nascente república foram dois marechais - a chamada República da Espada, considerada o primeiro governo militar do país, embora na época houvesse mais militares na cadeia do que no poder. Mas a República da Espada foi um desastre. Nada se viu dos devaneios positivistas. A crise eonômica se instalou, provocando desenfreada inflação, e focos de guerra civil pontilharam pelo país. Ironicamente, a estabilidade política e econômica só retornou quando voltou ao poder a mesma elite civil deposta pelo golpe, agora convertida ao republicanismo.

Do episódio, ficou a lição de que um governo fortemente centralizado e autoritário, conforme queriam os positivistas, era inviável no quadro social do país à época, dominado pelos "coronéis do sertão", que não hesitavam em arregimentar tropas de jagunços para defender seus interesses políticos. A insistência em um poder central discricionário inevitavelmente redundaria em descontentamento nos estados, seguido de rebeliões armadas. De fato, cena recorrente por toda a República Velha foram tropas de jagunços levando a melhor sobre tropas regulares - estas melhor equipadas, mas os jagunços mais numerosos, conhecedores do terreno e de táticas de guerrilha, podendo acoitar-se nas fazendas de seus patronos quando necessário. As polícias estaduais também prestavam-se a este papel. Até os anos 30, a polícia de São Paulo possuía até Força Aérea. Evidentemente não era uma polícia de verdade, mas um exército disfarçado.

Portanto, a governabilidade só era exequível mediante protocolos e conchavos que garantissem os interesses dos chefes políticos estaduais, uma engenharia política complexa que só podia ser urdida por políticos, e não por generais. Os pactos foram sendo costurados, delineando o perfil da Primeira República - o Café-Com-Leite, a Política dos Governadores, o Pacto dos Coronéis no nordeste. Havendo sido a República da Espada identificada com desordem e revolução, os próceres da oligarquia cafeeira trataram de fechar o espaço político aos positivistas, e conseguiram alijá-los. Mas o positivismo permaneceu sendo a ideologia preferida dos militares, e continuaria a sê-lo pelo século 20 adentro, mesmo que já não se apercebessem disso.

A partir de então, as intervenções dos militares foram pontuais, o que reforçou o mito do poder moderador que servia de árbitro. A Revolução de 30 não foi feita pelos militares, e sim pelos governadores com suas polícias - os militares deram o golpe final que retirou o presidente, mas não assumiram o poder. Os militares apoiaram o golpe de 1937, mas quem assumiu como ditador foi um civil. Os militares deram o golpe que depôs Getúlio em 1946, mas de novo não assumiram o poder - é certo na eleição seguinte os dois candidatos eram militares, mas o regime era democrático. Um militar garantiu a posse de Juscelino em 1955. Os militares se ergueram contra a posse do vice-presidente Goulart em 1961, mas novamente tudo se resolveu por um acordo.

Entretanto, uma análise cuidadosa de cada um destes eventos mostra que sempre houve uma tentativa dos militares de assumirem efetivamente o poder, ao invés de servirem de árbitros. Em 1964, este objetivo foi finalmente alcançado. Alguns mais ingênuos chegaram a julgar que se trataria de mais uma intervenção pontual, mas o que se seguiu foi a implantação daquilo que havia sido o verdadeiro propósito dos militares desde o final do século 19, o regime positivista. De fato, os generais-presidentes tinham poderes absolutos, mas o formato republicano foi mantido, com cada presidente sendo substituído ao final de seu mandato - isso não era outra coisa senão a "ditadura republicana" preconizada por Comte. Os políticos foram afastados do centro das decisões administrativas, que ficou a cargo de ministros e acessores com formação técnica, sem filiação a partidos - era a ditadura "racional e científica" comandada por tecnocratas.

A solução pareceu funcionar por alguns anos, quando houve rápida taxa de crescimento econômico, mas tudo terminou com a crise dos anos 80, que pôs fim à crença dos militares como governantes mais competentes do que os civis. De fato, até recentemente, não se ouviu mais clamores por uma intervenção militar, embora o mito dos militares como salvadores da pátria em situação de perigo tenha permanecido. Contudo, não se vê no mundo país desenvolvido que tenha tido um período de governo militar no passado como etapa construtora de sua pujança econômica e estabilidade política. O exemplo mais contundente é o do Japão, que foi efetivamente governado por militares no princípio do século 20, mas o resultado foi a guerra que representou o pior revés de sua história. Acrescente-se que a modernização do Japão só teve início depois que a Era Meiji pôs fim ao feudalismo militarizado dos Xóguns.

Governos militares abundam em países do Terceiro Mundo, e é difícil não crer que são a causa, e não a consequência do atraso e da instabilidade. Com tantos exemplos desastrosos, fica evidente que um exército que governa seu país não constitui a salvação, mas a dissolução do Estado - é como se o país houvesse sido invadido e estivesse sob o controle de tropas de ocupação. O legado mais palpável do período militar no Brasil foi a deterioração da classe política, resultado das cassações e das mudanças na legislação eleitoral que privilegiavam os políticos das regiões atrasadas em detrimento dos grandes centros - assim os militares foram sucedidos por tipos como Sarney e Collor. Evidente que essa não era a intenção declarada dos militares de 1964, mas em razão de sua formação positivistas, viam a política como uma inutilidade inócua, daí não enxergarem consequências na manipulação do quadro político para fim de manter uma fachada democrática do regime, consoante com a Guerra Fria, que se apresentava como uma luta dos regimes democrátricos contra o totalitarismo comunista.

domingo, 29 de setembro de 2024

O Rei não foi convidado

Recentemente chamou-me a atenção a notícia de que o rei Felipe VI da Espanha não foi convidado para a cerimônia de posse de Claudia Sheinbaum, a nova presidente do México. O motivo alegado foi que o monarca não respondeu a uma carta de López Obrador, o presidente atual, solicitando um pedido oficial de desculpas pelas atrocidades cometidas contra os povos ondígenas durante a colonização.

O pedido é pertinente, ninguém discorda de que as atrocidades foram cometidas. O que não entendo é por que pessoas com os sobrenomes Obrador e Sheinbaum fazem-se de porta-vozes de povos originários. Eles são um produto da colonização, sem ela sequer existiriam hoje, ou estariam em outro lugar. Se cabe um pedido de desculpas, podiam fazê-lo eles mesmos, sem recorrer ao rei.

Não é de hoje que povos sul-americanos sofrem dessa neurose: querem crer que suas nações já existiam antes da chegada dos europeus, que portanto não passariam de invasores estrangeiros que ali vieram saquear e massacrar os indígenas. Há uma óbvia crise de identidade. Embora descendentes dos tais europeus invasores, herdeiros e usufrutários de tudo de bom e de mal que estes deixaram, eles rejeitam essa identificação e identificam-se com povos originárioa, com os quais não têm nenhum parentesco. É também um sintoma depressivo: eles não sentem orgulho do que são, tampouco de sua origem, e querem culpar seus ancestrais pelos problemas atuais de seus países.

No fundo um orgulho pueril, facilmente explicado pela psicologia, mas que urde consequências mais danosas do que se supõe. Rejeitando sua herança, deserdam a si próprios em um contexto civilizacional, e buscam consolo em antigas e gloriosas civilizações dos povos que habitavam o continente - civilizações que até foram notáveis em seu tempo, mas que quase nada têm a ver com o mundo atual, exceto por comunidades isoladas e economicamente pouco relevantes, que praticam língua e costumes herdadas de seus ancestrais. Sem os referenciais da herança européia renegada, não é de espantar que exista nessa parte do mundo uma obsessão por buscar soluções políticas e econômicas exóticas, que só atrasam o desenvolvimento.

Essa ilusão autoimposta é em parte compreensível para povos como o mexicano, que efetivamente tiveram um passado glorioso com civilizações nativas avançadas, das quais ainda restam muitos descendentes. Menos razoável é que brasileiros endossem esse discurso. Nós náo fomos descobertos, fomos invadidos, bradaram muitos quando da comemoração dos 500 anos. Isso procede?

Não. O que havia aqui antes de 1500 não era o Brasil, mas uma região geográfica habitada por tribos seminômades que não falavam a mesma língua, não estavam unidas por uma federação nem tinham fronteiras delimitadas. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil passou a existir após a chegada dos portugueses. Considerar tal chegada uma "invasão" e um "saque" extrapola conceitos do presente para um passado onde estes não existiam: nenhuma fronteira foi violada porque fronteiras não haviam, nem os indígenas foram roubados porque tampouco conheciam a propriedade privada. Tanto não se sentiram invadidos, que o primeiro contato com a frota de Pedro Álvares Cabral foi amistoso. Ah, mas depois houve guerra, certo?

Sim. Mas não foi uma guerra movida por uma coalização de povos nativos contra um suposto invasor. Os indígenas foram ver o que queriam aqueles forasteiros. Descobriram que tinham coisas muito interessantes - objetos de metal - que davam em troca de uma madeira que havia ali, que não tinha valor para os locais. Algumas tribos se aliaram aos portugueses, outras aos franceses, que tinham os mesmos propósitos. As guerras entre índios e portugueses, portanto, foram um desdobramento do conflito destes com os franceses.

Devíamos nos livrar de vez desse discurso autoindulgente. Os portugueses não roubavam o nosso ouro, os portugueses cobravam impostos. Nenhum governo se sustenta sem cobrança de impostos, e olha que não eram tão altos: era o "quinto", ou 20%, sendo que a carga tributária atual já se aproxima dos 40%. Todos nós somos descendentes, em todo ou em parte, desses "invasores", e usufruimos da cultura por eles deixada. Exigir desculpas deles é um teatrinho bobo, e sobretudo hipócrita. Não existiríamos sem eles. Se a colonização européia, como dizem, reduz-se a saques e atrocidades, desses saques e atrocidades não fomos vítimas. Fomos sócios.

domingo, 8 de setembro de 2024

Saudades da Ditadura

Um fenômeno inquietante que eu tenho observado são pessoas que afirmam ter nostalgia dos tempos da ditadura, um período idealizado como de valores corretos, quando lugar de vagabundo era na cadeia e o país crescia. Nada tão estranho, esse fenômeno é conhecido em épocas de desalento da população. Mas um vídeo que descobri me deixou bem estarrecido.

Feito em 1970, mostra um desfile de formatura da Guarda Rural Indígena, milícia constituída por índios de diversas etnias, com a finalidade de ser a polícia nos territórios indígenas, bem de acordo com o espírito da época. Ou talvez de acordo demais. Em meio à parada de índios uniformizados mostrando as técnicas aprendidas na escola da polícia, surge um homem pendurado em um pau-de-arara, conduzido por dois homens, que seguram um de cada lado.

É algo absolutamente inusitado. O regime jamais reconheceu a existência de torturas, e agora aqueles cadetes não só a reconhecem, como a exibem com orgulho diante de um palanque repleto de autoridades, e na presença de repórteres. Quem teve aquela ideia? Quem permitiu aquilo, se é que alguém permitiu? Nunca saberemos, mas a impressão que eu tenho é que o próprio absurdo da imagem deixou as testemunhas sem ação, e ninguém se lembrou de mandar destruir aquela prova da existência da tortura no país, que foi guardada pelo cinegrafista em uma caixa ardilosamente marcada com a sigla "arara". Na aparência referia-se à etnia indígena de mesmo nome, mas o cinegrafista tinha a esperança de que um dia aquele material seria encontrado, e o verdadeiro significado daquele "arara" seria conhecido. O que efetivamente aconteceu.

Mas se em 1970 aquelas pessoas não tiveram escrúpulo de exibir técnicas de tortura, diversos comentaristas do vídeo tampouco tiveram escrúpulo de declarar seu apoio à ditadura.

Época em que bandido e vagabundo realmente se davam mal. E quem andava na linha se dava muito bem, em um país mais próspero e seguro.
Pelo menos tínhamos um governo e um oriente para seguir, hoje não temos rumo nenhum, hoje vivemos com um inimigo chamado governo, com uma máquina pública inchada, altos salários para magistrados, políticos e etc. Para o trabalhador só miséria e resto.
Época boa , só fala mal dessa época quem era contra o governo ou fazia coisas erradas.
Volta logo ditadura ! Eu não sou subversivo e nem comunista.
Só sofria vagabundo cidadão era respeitado

Mas a ditadura teve um saldo positivo, ou ao menos foi necessária na época?

O recentemente falecido ex-ministro Delfim Netto afirmou que sim, em uma entrevista. Signatário do AI-5, declarou ao presidente Costa e Silva:

"Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez"

Penso que o discurso foi mera sabujice, mesmo porque a área de Delfim não era a política, e sim a economia. Mas chama a atenção um pensamento recorrente à época: as mudanças "são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez". Ou seja, a ditadura favorecia o desenvolvimento. Era preciso "fazer o bolo crescer" antes de dividi-lo, conforme se dizia. Concluído o desenvolvimento, poderia-se até implantar a democracia.

Quando João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura, entregou o poder, o país estava em recessão e a inflação disparava. Aparentemente, o AI-5 não incrementou o desenvolvimento. O desastre econômico da "década perdida" pôs fim à crença de que os militares seriam governantes mais competentes que os civis, e até recentemente ninguém clamou a volta dos militares ao poder.

Mas já se passou tempo suficiente para que o período dos militares se incorporasse à lenda.

domingo, 18 de agosto de 2024

Sílvio Santos foi embora

"Sílvio Santos vem aí" era o conhecido bordão do programa do apresentador. Agora ele foi embora, porque faleceu. Mas não devemos esquecer que um dia ele esteve bem próximo de se tornar o presidente da república.

Foi na eleição vencida por Collor de Mello, da qual participaram também Lula e Brizola. Collor estava na liderança das pesquisas, mas o cenário ainda estava indefinido. A candidatura de Sílvio Santos, com a campanha eleitoral já pela metade, foi um audacioso golpe que teve como finalidade redefinir as preferências do eleitorado, inserindo um populista no centro e tirando os candidatos da esquerda de um segundo turno. Audacioso porque tinha poucas chances de vingar, como de fato não vingou. Mas tambérm porque tinha chances de vingar, e o país tomaria rumos imprevisíveis.

Nos escassos dias antes da candidatura ser impugnada, Sílvio Santos chegou a figurar como o segundo nas intenções de voto. Com certeza muitos sentiram um frio na espinha imaginando-o presidente. Mas a presidência de Sílvio Santos teria sido algo tão inusitado e potencialmente ruinoso, como se pensa?

Penso que não seria tão diferente do atual presidente, nem de seu antecessor. Sílvio Santos não era um político? Mas existe uma profunda analogia entre o perfil do político, do apresentador e do pastor evangélico: todos os três são especialistas em catalisar o apoio entusiasmado de multidões pouco dotadas intelectualmente, mesmo que não tenham nada de concreto para lhes oferecer - exceto alguns prêmios e "milagres". Sendo que Sílvio Santos ainda conta com a vantagem de não ser politicamente polarizado, como o atual e o anterior - acredito que levaria seu governo com menos atritos. Quem é dono de indiscutíveis habilidades sociais, quase sempre também é dono de indiscutíveis habilidades políticas. E Sílvio Santos sempre foi bom para com o povo, desde o início servia lanches para as moças da periferia que compareciam a seu auditório.

Enfim, Sílvio Santos não se tornou presidente. Mas estamos sendo governados por seus congêneres a pelos menos oito anos.

domingo, 28 de julho de 2024

Lula está "dilmando"?

O governo Bolsonaro teve um deempenho econômico pífio, mas não quebrou o país. O governo Lula teve um início tranquilo. Mas já dá sinal de estar "dilmando", expressão recém-criada que denota a entrada em um espiral de declínio pela repetição de velhos equívocos. O assunto foi abordado pelo The Economist nesse vídeo que critica Lula como perdulário. Segundo afirma, Lula age como se o país fosse mais rico do que é.

Não surpreende. Há décadas, o Brasil e demais "emergentes" da América Latina oscilam entre o estatismo e a desestatização, como se não conhecessem outra fórmula. Chega a ser uma obsessão doentia. Na verdade, a desestatização nada mais é do que a inevitável venda de ativos de um estado quebrado, que mais cedo ou mais tarde acaba sendo seguido por mais um ciclo de estatismo. A ideia é que o Estado deve ser o indutor do desenvolvimento, gastando sempre mais do que dispõe e endividando-se, como se o retorno aos investimentos do Estado na infra-estrutura fosse sempre capaz de tapar o rombo a tempo de repetir-se o ciclo.

Mas Lula pode até ser considerado um participante moderado dessa síndrome. Nada comparado a uma Argentina, ou mais recentemente, a uma Venezuela. Em seu primeiro governo, Lula não dilapidou o legado do Plano Real. O descalabro começou com Dilma, sua sucessora, que foi retirada do cargo e sucedida por governos que pouco puderam fazer além de consertar o que ela fez.

O Lula do segundo governo parece uma versão cansada do Lula do primeiro governo. Em comum, tem a sorte de pegar um país com as contas mais ou menos equilibradas. Mas não sabe fazer diferente: mesmo com voz cansada, dá todos os sinais de que está "dilmando", repetindo as mesmas fórmulas fracassadas, aumentando o gasto público, afugentando os investidores. Alguns economistas até preveem uma data para a quebra do país: 2026 ou 2028, conforme as previsões. Após essa data, o desequilíbrio das contas públicas inevitavelmente afundará o país em recessão e inflação.

Mas se Lula está dilmando, haverá outra Dilma? Um sucessor, posto que em razão da idade, o próprio Lula dificilmente se habilitará a um novo mandato. Mesmo porque, sua especialidade sempre foi deixar a bomba estourar na mão dos outros. Se as previsões catastrofistas estão corretas, Lula deixará o governo a tempo de que a bomba não estoure em suas mãos, e o que vier em seguida pode ser atribuído à imperícia de seu sucessor. Mas não se sabe se esse sucessor será do PT. Caso não seja, será mais um "direitista", obrigado a tomar medidas impopulares para restaurar as contas públicas, assim preparando o cenário para novo ciclo de gastança chefiado por um governo de esquerda.

Mas se o sucessor fou um petista, pode ser a desmoralização. Como não dá para rejuvenecer Lula, e mesmo se desse, ele não toparia porque não entra em canoa furada, então o remédio será o PT se reinventar. Talvez assim finalmente consigamos quebrar o ciclo que se repete desde a Era Vargas.

domingo, 21 de julho de 2024

A Venezuela elege quem quiser

A recente declaração de Lula, a Venezuela elege quem quiser, mostra bem como o presidente quer fugir do assunto, e com certeza vê que o declarado apoio que deu ao regime chavista no princípio do mandato, agora é motivo de embaraço.

Não me surpreende que Lula apóie o regime chavista, pois democrata ele nunca foi - em tempos passados já havia dado declarações apoiando o regime cubano. Se ele se considera democrata, então não sabe o que é democracia. Mas por outro lado, Lula nunca mostrou apreço por dogmas ideológicos, nem por qualquer outra coisa que demande esforço para ser entendida. Sempre foi pragmático e oportunista. É certo que repetiu frases feitas em várias ocasiões ao longo de sua carreira, mas uma impressão que me acompanha é que ele sempre teve desprezo pelos "intelectuais orgânicos" do PT, aquela turma aburguesada de militantes de academia, incapazes de compreender que o real povão nada tem a ver com a idealização que fazem.

Mas isso agora é passado. Quem está no poder não é o PT, é Lula. O PT, como projeto político independente, morreu após o mensalão e a lava-jato, e nunca mais conseguiu remontar o gigantesco esquema de desvio de dinheiro público para os cofres do partido, que como se sabe, visava torná-lo todo poderoso e hegemônico, espécie de PRI mexicano versão brasileira. Agora sobrevive atado ao carisma de Lula.

E Lula, o pragmático, acordou com uma batata quente nas mãos. Em que lhe servirá o apoio prestado ao regime chavista, agora que este se encontra no ápice de gigantesca crise, apregoando ameaça de guerra civil? Sem falar na ameaça de guerra externa contra a Guiana. Lula vai intervir para ajudar seu aliado? Mandar tropas? Dar dinheiro? Apoio diplomático? Em qualquer dessas hipóteses, vai sobrar para o país mais do que os refugiados que já estão sobrando.

O caso da Venezuela é intrincado, pois não se trata de uma eleição com partícipes de um mesmo jogo político - um deles, Maduro, está pronto a melar o jogo, e tem todas as possibilidades para isso, e o outro, na remota hipótese de se sagrar vencedor e assumir, terá que desmontar o regime, o que é impossível de ser feito sem luta. Somente uma solução negociada pode permitir uma retirada pacífica dos atuais mandatários chavistas, mas não se antevê essa solução em lugar nenhum.

Um dado curioso sobre o regime chavista é que ele parece ter se inspirado bastante no antigo regime militar brasileiro. Lá como aqui, foram permitidos partidos politicos e eleições a fim de expor um simulacro de democracia, mas os oposicionistas com possibilidade de vencer são cassados, e as regras do jogo são mudadas sempre que a oposição tem reais chances de chegar ao poder. Soa familiar? O regime também cria "falsos opositores" a quem permite se candidatar. Golbery do Couto e Silva fez escola.

Outro dado é que o regime abusa de plebiscitos, igualmente para dar uma impressão de democracia. O plebiscito é descrito como a consulta mais democrática que existe, posto que o povo decide diretamente, sem a necessidade de representantes. Isso é fato. Mas o plebiscito é indicado para decisões pontuais, sim ou não. O regime fez plebiscitos para aprovar verdadeiros pacotes onde o poder do executivo era fortalecido, ardilosamente mesclados de concessões populistas, podendo o eleitor apenas dizer sim para tudo ou não para tudo, como a mãe que diz ao filho: se não comer a verdura, também não come o doce.

Historicamente, o plebiscito tem sido mais usado por ditaduras do que por democracias. O próprio Hitler convocou dois plebiscitos antes de estabelecer seu poder absoluto.

O cenário venezuelano é totalmente incerto. A única certeza é que vai sobrar para nós. Haverá possibilidade de fazermos uma mediação eficaz, promovendo a saída do chavismo sem derramamento de sangue? Por hora, Lula só quer fugir do assunto. A Venezuela elege quem quiser...

domingo, 9 de junho de 2024

A Razão para sermos Latino-Americanos

Recentemente deparei-me com este vídeo. É uma crítica a uma nova animação dos estúdios Disney, que retrata uma família latino-americana residente nos EUA, e foi acusado de ser ofensivo à comunidade latina por incluir gramática incorreta, estereótipos, racismo e uso de uma gíria inapropriada. Não vou entrar no mérito dessa discussão. Mas chamou-me a atenção um discurso da dubladora da animação, ela mesma descendente de mexicanos, procurando justificar os erros gramaticais:

"A língua espanhola não é uma língua latino-americana. É uma lingua que os conquistadores espanhóis forçaram ao povo latino-americano. A razão para sermos latinos e não nativo-americanos. É o motivo dessa distinção. Então fique bravo comigo o quanto quiser por palavras incorretas em espanhol"

À primeira vista, parece mesmo um disparate. Se é assim, por que ninguém diz que o inglês também não é uma língua americana, mas que foi imposta por conquistadores britânicos? No entanto, essa fala tem, sim, uma lógica peculiar, proclamada por latino-americanos residentes nos EUA. Em seu entendimento, o termo "latino" refere-se ao nativo americano, e não ao colonizador. Pelo senso comum, sabemos que o termo "latino" refere-se a povos originados da desintegração do Império Romano do Ocidente, onde a língua falada era o latim - italianos, franceses, espanhóis, portugueses, romenos. Estritamente falando, sul-americanos não são latinos, mas descendentes de latinos. Nunca encontrei motivo para pôr em dúvida essa assertiva. Mas recentemente, um novo pensamento tem redefinido o sentido do termo, retirando-o da Europa: latinos são os sul-americanos, e o europeu colonizador foi um invasor estrangeiro que ocupou essas terras e impôs seu idioma.

Entendo que muitos descendentes de imigrantes sul-americanos nos EUA procurem uma identidade que evoca uma época gloriosa, o tempo dos antigos impérios azteca e maia, diferente da realidade frustrante de pobreza e discriminação vivida por eles. Mas militantes variados têm dado um uso político a esse sentimento identitário, com a finalidade de desvincular a população dos valores herdados de nosso mundo ocidental, e culpabilizar a outros pelos problemas atuais - nossos povos, supostamente, já existiam aqui antes da América ser descoberta, quando então fomos invadidos e espoliados, e estamos até hoje procurando fazer das ruínas um país.

Poderia ser apenas uma ilusão tola. Mas é nefasta, a julgar por outros exemplos na História. A busca por uma identidade antiga e mítica como escapismo para os maus tempos do presente já ocorreu em outros momentos, como por exemplo na Alemanha derrotada após a primeira guerra mundial, quando surgiu a Sociedade Thule, fundada por ocultistas, que afirmava serem os povos nórdicos originados de uma ilha mítica denominada Thule, e pregava o retorno aos supostos valores originários e o abandono do mundo ocidental cristão. Sabe-se que esta sociedade teve grande influència no partido nazista, que realmente incentivou a prática de rituais do antigo paganismo germânico, como forma de resgate do orgulho e do sentimento exclusivista.

Do mesmo modo, os latino-americanos da época atual querem se desvincular do mundo ocidental. E tem nesse propósito o pleno apoio dos norte-americanos, igualmente interessados em alijá-los do mundo ocidental, que assim pode ser pensado como composto unicamente por países ricos e desenvolvidos. Ironicamente, com essas ideias, os latino-americanos endossam o estranhamento que é a verdadeira causa de sentirem-se excluídos e discriminados, e também alimentam o racialismo tão marcante na América do Norte - atualmente, nos EUA, ninguém mais associa o latino ao europeu que fala uma língua derivada do latim, mas o termo tem sido empregado cada vez mais como a definição de uma raça, supostsmente originária da América do Sul. Um sul-americano chegado nos EUA pode ter a raça que for, mas nunca é catalogado como branco, negro ou asiático, mas sempre como "latino".

Os norte-americanos não proclamam que o inglês foi uma língua imposta pelos conquistadores, pois ao contrário dos latino-americanos, consideram-se os herdeiros legítimos daquele conquistador. E no entanto, a despeito das muitas diferenças, tanto no norte como sul, a História replicou o mesmo roteiro de Descoberta + Inclusão em Impérios Europeus + Independência + Escravidão + Imigração. Sem fantasias e mistificações, somos membros ordinários do Mundo Ocidental. Que não contém somente países ricos.