O presidente norte-americano Donald Trump provavelmente nunca ouviu falar de Jair Bolsonaro antes que o mesmo se tornasse presidente do Brasil. Nunca houve nenhum tipo de ligação entre ambos. E no entanto, sinto haver total propriedade no uso da expressão Era Trump/Bolsonaro.
E não apenas porque os mandatos de ambos coincidiram, ou porque têm um posicionamento ideológico semelhante. As condições que os permitiram chegar ao poder foram análogas. Ambos são "pontos fora da curva", sem relação com os clãs políticos tradicionais em seus respectivos países. Ambos se elegeram com aquilo que eu chamo o voto de raiva, vindo de um eleitorado em desalento, que deixa momentaneamente de confiar em suas escolhas usuais e experimenta algo totalmente diferente, mesmo sabidamente imprevisível e perigoso. O voto de raiva surge de uma sensação de perda, de desencanto, de quem se descobre enganado, e quer recuperar o que julga perdido. Mas nos EUA e no Brasil, as motivações foram diferentes.
Nos EUA, Donald Trump valeu-se de uma sensação de declínio, daí seu bordão Faça a América Grande Novamente. Para mim, é surpresa saber que a América havia se tornado pequena, mas esta era a impressão de muitos americanos. De fato, em termos comparativos, a América já foi bem maior. No balanço geral de poder militar, já esteve em uma posição bem mais hegemônica, agora ameaçada por outras potências emergentes. Sua indústria já produziu muitas coisas que hoje são produzidas no leste asiático. O número de pobres é excessivo e os serviços de saúde deixam a desejar para os padrões de um país desenvolvido. E é claro, há a impressão de estar sendo invadida por um incontrolável fluxo de imigrantes.
Mas até que ponto esses fenômenos constituem de fato um declínio? Os americanos já viveram melhor no passado?
A impressão que eu tenho é que essas transições são parte da normalidade em um mundo globalizado, e portanto, a sensação de declínio é em grande parte psicológica. Outras potências estão emergindo, notadamente a China. Os EUA ainda são, com folgas, a primeira potência militar do globo, mas já não têm a mesma vantagem comparativa de outros tempos. O fenômeno da desindustrialização é realmente assustador, produzindo resultados como os bairros abandonados de Detroit, outrora grande centro da indústria automobilística americana, mas também não deixa de se incluir na fenomenologia geral da globalização, mais precisamente a transição da força de trabalho do setor secundário (indústria) para o setor terciário (serviços). Os escritórios estão esvaziando as fábricas, tal como, no passado, as fábricas esvaziaram as fazendas. Hoje em dia não há no mundo país mais industrializado que a China, e nem por isso eu gostaria de ser operário em uma fábrica chinesa. A própria conceituação "país industrializado" como sinônimo de "país rico" está caindo rapidamente em desuso.
E à medida em que as fábricas são exportadas para os países periféricos, a população desses países é importada para os EUA na forma de imigrantes, outra questão priorizada de forma bombástica na campanha de Trump. Não é necessário repetir que os EUA sempre foram formados por imigrantes, mas o problema da imigração ilegal tem sido considerado crucial pelo governo desde pelo menos duas gerações. Nada de novo, contudo; historicamente, os conflitos dos EUA com seus vizinhos hispânicos têm sido originados por fluxos humanos descontrolados desde o século 19. Mais do mesmo? Sim, mas mutante conforme a época. O atual fluxo migratório sul-norte é mais um produto da globalização, precisamente relacionado à transição demográfica, que faz diminuir a oferta de mão de obra pouco qualificada, tradicionalmente formada por jovens, e abre milhares de vagas para imigrantes. Os americanos podem achar que o atual número de imigrantes é excessivo, mas sua economia não é mais capaz de funcionar sem os imigrantes que já estão lá.
Tantas mudanças na esteira da inexorável globalização, sem dúvida deixam muitos eleitores confusos e irritados. Mas o que importa é responder: afinal, os americanos vivem hoje pior do que viviam 20 ou 30 anos atrás? Não sei dizer. Alguns com certeza pioraram, mas penso que muitos melhoraram.
E no Brasil? Os sentimentos que por aqui motivaram o eleitorado a votar em Bolsonaro têm a ver com um estado de espírito semelhante, mas de origem distinta. Eles surgiram, sobretudo, da decepção da população com o PT, que protagonizou anos de muito otimismo sob Lula, para depois decepcioná-la cruelmente quando ficou claro o imenso esquema de corrupção montado para abastecer a caixa do partido, e a enorme crise econômica que Dilma escondeu. Tudo foi tornado pior pela arrogância manifestada pelos petistas enquanto no poder, sobretudo por seus ataques gratuitos à classe média, que havia sido o esteio do PT em seus primórdios. Cansada da corrupção, do crime, das promessas desfeitas e da desfaçatez dos políticos, a população sentiu que seu futuro era roubado, e voltou-se para um passado idealizado, quando havia segurança, o país progredia e todos trabalhavam. Um passado muito relacionado aos anos do regime militar.
Deve ser lembrado que muitos dos eleitores de Bolsonaro vem de camadas populares, sobretudo habitantes de periferias de grandes cidades. Entende-se: a principal preocupação dessas pessoas é com a segurança, e Bolsonaro foi o único que prometeu algum endurecimento contra o crime. Desesperançado, o povo das periferias refugiou-se em seus valores mais conservadores, frequentando igrejas evangélicas que brotam ali como cogumelos após a chuva, e defendendo quem quer que esteja disposto a baixar o pau na bandidagem. Esse estado de espírito do povo das periferias não vem de hoje, mas os petistas ignoraram-no totalmente. Foi Bolsonaro quem surfou nesta onda.
Mas Bolsonaro é mesmo o restaurador da Era de Ouro do governo dos generais?
Que ele se refere a essa época com orgulho, todos sabemos. Mas ele próprio não participou dela, mesmo porque era muito jovem. A visão que Bolsonaro nutre daqueles tempos é tão idealizada quanto a visão de seus seguidores. A época dos militares teve, sim, pontos positivos - o crescimento econômico e a criminalidade menor são um fato. Mas foi também naquela época que se plantaram as sementes de muitos problemas de hoje. O crime era menor, mas vinha em ascensão, negligenciado pelos militares no poder, esses mais preocupados com umas poucas dezenas de guerrilheiros. A economia crescia, mas foi naquela época que o modelo econômico nacional-estatista iniciado nos anos 30 por Vargas teve seu esgotamento, gerando endividamento, inflação e estagnação. Enfim, a Era dos Generais é apenas um quadro para enfeitar a sala de Bolsonaro, pois na prática ele segue um modelo econômico liberal e privatista que é o exato oposto do estatismo dos militares de 1964.
Mas se parece existir uma "ligação cósmica" entre Trump e Bolsonaro, a despeito da ascensão de ambos ter se devido a agentes causais bem diferentes, é lícito supor que o ocaso da Era Trump nos EUA, agora com novo presidente, sinalize o próximo fim da Era Bolsonaro. Ambos foram pontos fora da curva, corpos estranhos que atiçam os anticorpos do sistema político para rejeitá-los. No Brasil, já tivemos os casos de Jânio Quadros, Paulo Maluf e Fernando Collor, nenhum deles havendo terminado seu mandato, e Maluf não chegou sequer a ser eleito. Mas apesar das apreensões, nem Trump nos EUA, nem Bolsonaro no Brasil chegaram a provocar uma crise generalizada que implicasse sua saída do poder. Trump não sofreu impedimento, e Bolsonaro, ao que parece, também não sofrerá - mais da metade do mandato ele já cumpriu. Bolsonaro não cumpriu todas as suas promessas e a polêmica tem sido constante em seu governo, mas manteve uma base de sustentação razoável e ainda goza de um razoável percentual de aprovação. Nota-se contudo que está perdendo apoio, e parece remota a possibilidade de uma reeleição.
Trump e Bolsonaro foram o produto de um momento de raiva do eleitorado, que agora dá a impressão de haver passado. Os EUA voltarão à bipolaridade Republicano X Democrata (deve ser ressaltado que Trump nunca foi um republicano de raiz). Aqui, ainda é uma incógnita como se recomporão as forças políticas pós-Bolsonaro.