Há momentos tão importantes na vida política de um país que só podem ser compreendidas anos depois, escreveu o colunista Chico Alves neste artigo, comentando a sessão da Câmara que no dia 17 de abril de 2016 autorizou a continuação do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff. Eu que escrevo sobre História estou perfeitamente ciente da necessidade de um distanciamento para ideal apreciação. Não se pode observar uma catedral permanecendo dentro dela, e isso vale para o tempo tanto quanto para o espaço. E há outro motivo para se fazer necessário o distanciamento: arrefecer as paixões e os whishful thinkings inerentes a quem possui um envolvimento pessoal ou emocional com o evento que se quer observar. Existem acontecimentos históricos tão polêmicos que mesmo após muitas décadas não permitem um juízo final e estabelecido.
Aquele dia 17 de abril de 2016, de fato, não é fácil de esquecer. Foi quando o país divisou, atônito, o rosto feio de uma direita que nem sabia que existia, mas que nem por isso era descolada do caráter nacional. As frases cheias de ódio com que cada um brindou o seu voto contra a presidente conferiram àquela cerimônia um aspecto grotesco que até hoje causa consternação, parecendo vir de um subterrâneo onde milhões de pessoas que não tinham voz, subitamente puderam fazer-se ouvir. Até pouco tempo atrás, a direita brasileira parecia nem existir, a menos que se rotulasse de direita tudo o que não fosse de esquerda. Desde o fim do regime militar, não era politicamente correto assumir-se como de direita.
Ironicamente, quem acabou com a direita política nacional foram os militares que tomaram o poder em 1964. Decididos a manter o poder restrito ao establishment militar, trataram de neutralizar a vanguarda da UDN que havia sido o braço civil da revolta, e cassaram seus principais próceres, como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, atirando os restantes na vala comum da ARENA, partido de existência meramente formal onde não era admitida nenhuma liderança independente. O sistema político-eleitoral que se estabeleceu então foi calculado para dar a vitória ao interior mais retrógrado em detrimento dos grandes centros. Nunca mais surgiu na política uma direita intelectualizada e atuante como a que havia na antiga UDN. Cumpre frisar, entretanto, que este foi o fim da direita apenas na política. As ideias conservadoras da direita continuaram vivas na população, agora sem voz.
Chico Alves analisa o livro do sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo, na tentativa de explicar o inesperado surgimento daquela direita que derrubou Dilma e depois elegeu Bolsonaro. Escreveu ele:
"O Brasil em sua maioria é um país de gente com mentalidade atrasada. E foi essa mentalidade atrasada que derrubou a chefe do governo cujo partido e o presidente que a precedeu davam mostras que queriam dar igualdade às mulheres, aos negros, aos gays, pautas de esquerda (...) Essa parcela atrasada assume valores que são de direita, mas não tinha como expressar isso antes. Isso é revertido quando surge a voz dos evangélicos legitimada em suas cadeiras políticas."
O quanto há de verdade na tese do sociólogo? Que os evangélicos ganharam um extraordinário protagonismo na política nos últimos anos, é fato. Mas por mais que a mentalidade da população seja conservadora, machista, sexista e contrária aos gays, não creio que isso seja o bastante para derrubar um presidente. Havia um sentimento de rejeição mais profundo. Por outro lado, também tenho que reconhecer que a crise econômica e as ditas pedaladas fiscais tampouco foram o verdadeiro motivo do impeachment. Conclui o sociólogo:
"O verdadeiro motivo foi a reação de uma parcela de brasileiros, até então sem voz, a avanços na agenda de costumes"
A meu ver, o verdadeiro motivo foi, em primeiro lugar, a destruição da direita política nacional, e de modo mais profundo e inexorável, a destruição da própria cultura nacional, essa levada a cabo pela difusão de contravalores da parte de intelectuais, escritores, cineastas e produtores culturais de esquerda. Foi um fenômeno que ganhou força após o fracasso da luta armada nos anos 70, que não teve o apoio dos trabalhadores. A esquerda foi buscar seu novo público entre os marginais, aí entendidos como qualquer grupo de insatisfeitos e inconformistas, ainda que sua dissenção contra o sistema nada tenha a ver com luta anti-capitalista. O sintoma mais notável foi a profusão de livros e filmes mostrando bandidos das favelas como heróis populares e defensores de suas comunidades, enquanto a polícia era demonizada e ridicularizada. Houve outras mensagens mais sutis, como o prestígio da cultura marginal das periferias e a idealização de índios e pequenos agricultores como tendo "consciência ecológica". Foi dentro desse contexto que a esquerda aproximou-se daqueles de quem os conservadores não gostam, como os gays.
Os efeitos desse rebaixamento cultural estão à vista, começando pela música, que já foi das melhores do mundo, e hoje reverbera os rap´s das favelas com suas letras louvando a transgressão, manifestação de um suposto "país real" que habita as periferias. O papel do Brasil no cenário internacional é irrelevante. Ninguém sabe citar um intelectual, escritor ou artista brasileiro de prestígio. Não há mais o otimismo nem as utopias que foram tão comuns no passado e que garantiam um futuro luminoso para o país. Predomina um sentimento de frustração e desalento. E que mais acontece quando uma população perde seu chão de valores, do que procurar voltar-se para aqueles valores mais fundamentais, como os religiosos? Quando se perde a esperança no futuro, o que se faz é voltar-se para o passado, ora!
Não sem motivo, o primeiro sinal do desgosto da população para com aquela corrente de contravalores foi o (inesperado) sucesso do filme Tropa de Elite, com a idolatria ao capitão Nascimento sendo o contraponto perfeito à idolatria ao marginal-herói. Acossada pelo crime e pela imoralidade, a população das periferias voltou-se para os pastores evangélicos, posto que não havia mais uma direita política capaz de compreender seus anseios e transformá-los em projetos.
Como superar esse impasse? O sociólogo Reginaldo Prandi confessa-se otimista:
"Acho que esse pessoal que estava fora da política entra agora e se depara com a necessidade de entender o Brasil, vai se civilizando. Vai aprendendo, finalmente, começa a saber o que é ciência. Começa aprendendo o que é vacina (...) Isso acontece porque vai tendo um contato com a realidade que o obriga a aprender"
A meu ver, a "civilização" da direita passa pela reconstrução da direita política em substituição aos religiosos e aos saudosos do regime militar, com lideranças esclarecidas que possam apresentar a seus eleitores uma pauta em dia com a direita dos países desenvolvidos, destacando-se a diminuição do Estado, o equilíbrio das contas públicas e uma legislação mais severa contra o crime. Só podemos chagar a esse estado de coisas por tentativa e erro.