Causou celeuma a afirmação recente do presidente argentino Alberto Fernández de que “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós os argentinos, chegamos de barcos". Pegou mal, e ele próprio tratou de dar uma explicação, destacando a origem miscigenada dos argentinos. Na verdade ele estava parafraseando um músico argentino chamado Litto Nebbia, que incluiu essa frase em sua canção "Llegamos de Los Barcos". Igualmente parafraseava o autor mexicano Octávio Paz, que escreveu “os mexicanos descendem dos astecas, os peruanos dos incas e os argentinos, dos navios” (Octávio Paz não mencionou os brasileiros).
Nota-se na versão do argentino uma distinção entre os nativos brasileiros e os astecas e incas - segundo é dito, apenas esses últimos seriam "índios", enquanto os brasileiros são "selvagens". Ironicamente, as estatísticas mostram que o Brasil recebeu mais imigrantes europeus do que a própria Argentina, embora a presença destes seja menos notável aqui, por ter havido maior mistura. Entretanto, a identificação do povo brasileiro com a selva não é um preconceito lançado por argentinos. A rejeição de uma imagem eurocêntrica do Brasil é tão antiga quanto a aceitação de uma imagem eurocêntrica da Argentina, inclusive no exterior, onde o Brasil é normalmente identificado com a região amazônica, ao passo que toda a metade inferior do subcontinente sul-americano é referida vagamente como "Argentina", porção que inclui o sul do Brasil. Enfim, não vale a demografia nem as estatísticas da imigração, mas a ideia estabelecida de como cada um "deve ser".
É fato que nós mesmos, brasileiros, temos historicamente procurado difundir um mito fundador do Brasil ligado aos índios, daí advindo um orgulho patético, tal como os argentinos se orgulham de ser descendentes de europeus. Desde a época da Semana de Arte Moderna, intelectuais brasileiros têm se esforçado para resgatar uma suposta autenticidade nacional derivada dos índios, e taxar a herança cultural do colonizador como imitação subserviente. Antes disso já era moda nomes próprios de origem indígena. Antigas famílias brasileiras se orgulham de ter antepassados índios, fato que confere uma autenticidade simbólica ao direito dessas famílias à terra, além de terem os índios a fama de guerreiros valorosos. Mas se encontramos motivo para ter orgulho de sermos descendentes de índios, será que o mundo tem a mesma percepção?
Na concepção do presidente argentino, que apenas ecoa um senso comum mais geral, os índios brasileiros sequer são denominados índios - esta classificação vai apenas para astecas e incas. Os brasileiros, disse, vieram da selva, de onde se conclui que os índios brasileiros seriam tão-somente selvagens, criaturas sem cultura, conforme o entendimento daquilo que é "selvagem". Os antigos patriarcas das famílias quatrocentonas podiam se orgulhar de ter ancestrais índios, mas isso não significava que tolerariam a presença de índios em suas fazendas. Na verdade, mesmo a mais de cem anos atrás, pouquíssimos brasileiros já haviam visto um índio ou sabiam como era um índio, dai ser tão fácil romantizar uma figura meramente imaginada.
Mas na minha opinião, tudo não passa de um grande mal entendido. Essa busca por uma autenticidade nativista parece-me uma revolta pueril contra o antigo colonizador - queremos crer que o país já existia aqui em 1500, quando supostamente foi invadido pelos europeus. Mas o que existia aqui não era um país, e sim uma região geográfica habitada por numerosas tribos que não obedeciam a uma liderança central, nem tinham territórios demarcados por fronteiras. O conceito de estado-nação foi trazido pelo colonizador, e só a partir dele pode-se falar de um país como entidade política, étnica ou cultural. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil é uma criação do colonizador, e não do índio. Não obstante, esse brasileiro que veio da selva está pronto para ser reconhecido internacionalmente, posto que atende às utopias que os europeus têm nutrido sobre nós desde o século 16: a terra onde não há pecado, habitada pelas índias nuas e pelo bom selvagem de Rousseau. Modernamente, a utopia se reciclou na figura do índio ecologicamente consciente, que quer preservar as florestas invadidas pelo homem branco, e assim o planeta será salvo, ficando os brasileiros na selva e os europeus mantendo seus padrões de consumo sem pôr em risco a camada de ozônio.
Os argentinos se orgulham se ser descendentes de europeus. Não sei se os europeus se orgulham de ter os argentinos como descendentes, mas parece-me que decididamente não se orgulham de ter os brasileiros como seus descendentes, ou sequer têm ciência disto.