Várias vezes tenho dito aqui: o motivo mais importante de se saber o passado é obter embasamento para entender o presente. Ou seja, perceber que as notícias que parecem novidades bombásticas aos desatentos, na verdade são dejà vu. O conhecimento da História dá uma percepção de profundidade aos fatos observados, tal como naqueles antigos desenhos de silhuetas que às vezes apareciam nas páginas de recreação das revistas. A figura sombreada em duas dimensões parecia uma feiticeira mexendo um caldeirão, mas acrescida a luz e recuperada a perspectiva em profundidade, via-se que o desenho mostrava uma mulher varrendo debaixo de uma mesinha sobre um tapete redondo, e o chapéu da bruxa na verdade era um pote sobre uma prateleira em segundo plano.
A bola da vez são as queimadas na Amazônia. A percepção imediata é que se trata de uma medonha catástrofe, mas quem tem memória deve se lembrar que o mesmo alarmismo já foi repetido 10, 20, 30 anos atrás. Eu particularmente me lembro de meus tempos de escola, e lá se vão 40 anos, quando se afirmava que o Brasil desflorestava uma Bélgica por ano, ou uma Suíça, ou uma França, ou outro país qualquer. Então como explicar que hoje em dia a floresta ainda continue de pé?
Pesquisando e comparando cuidadosamente notícias ao longo desses anos, pude tirar algumas conclusões. O principal motivo do equívoco é a definição mesma do que é, e do que não é a Amazônia. O Brasil tem vários biomas, e a floresta amazônica propriamente dita se inicia ao norte de Mato Grosso e oeste de Goiás - ou ao menos tem sido assim nos últimos milhares de anos - fazendo fronteira com o cerrado e o pantanal. Verificando as fotos dos satélites que detectam as queimadas, vê-se que a maioria delas encontra-se na região limítrofe, principalmente ao norte de Mato Grosso e sul do Pará.
Ou seja, parte das queimadas, na verdade, não estão ocorrendo na região da floresta. Sem contar que podem estar sendo registradas queimadas em áreas que já foram desflorestadas muito tempo atrás, pois é sabido que é preciso repetir a queimada de tanto em tanto para se limpar o terreno. Mas não é assim que as notícias têm sido vinculadas, sobretudo no exterior, mesmo porque no imaginário dos estrangeiros a floresta ocupa o Brasil inteiro. Essa impressão ficou bem flagrante naquele conhecido episódio dos Simpsons, onde Homer é sequestrado, só que ao invés de ser levado a uma favela, seu cativeiro é na floresta amazônica supostamente localizada logo atrás do Rio de Janeiro.
O mesmo equívoco explica a notícia de que São Paulo teria tido um dia convertido em noite em razão da fumaça das queimada na Amazônia. A foto do satélite mostra o que realmente ocorreu:
Nota-se que a nuvem se move horizontalmente, vindo desde a Bolívia. A fumaça que enegreceu o céu de São Paulo presumivelmente originou-se de queimadas no Mato Grosso do Sul, Paraguai e na própria Bolívia. Sobre a mancha verde da Amazônia, não há nuvem. E basta observar o tamanho desta mancha verde para constatar que perto de 90% da floresta original ainda permanece onde sempre esteve.
Ou seja, as queimadas existem há muito tempo, mas estão longe de configurar a catástrofe que se quer mostrar. Elas não podem ser contidas porque ocorrem em uma área imensa, mas justamente por ser imensa esta área, é difícil de acreditar que a floresta terminará destruída nestes tempos de preocupações ambientalistas, sendo que em 500 anos sem preocupações ambientalistas não conseguimos destruir mais de 10% dela. O problema é que o ambientalismo se tornou uma doutrina, com suas crenças e dogmas. Posso citar aqui algumas.
O primeiro mito é a crença de que a Amazônia seria o pulmão do mundo, responsável pelo oxigênio do planeta. O verdadeiro pulmão do mundo são os oceanos, e a quantidade de oxigênio na atmosfera tem permanecido estável, A real importância da floresta está no clima.
Outro mito renitente é essa criatura gestada pelos ecologistas, o índio ecologicamente correto. Presume-se que o índio é um ser telúrico, que vive em harmonia com a natureza, portanto garantir a integridade dos territórios indígenas é garantir a integridade da floresta. Duplamente falso. O interesse dos índios em manter seus territórios é garantir para a tribo a exclusividade na exploração dos recursos ali contidos, no que, aliás, estão inteiramente certos, pois se não defenderem seus interesses, ninguém mais o fará. Os ambientalistas românticos dizem que se trata de índios corrompidos que aderiram à civilização predatória, e abandonaram seu modo de vida original. Mas tampouco seu modo de vida original jamais foi ecologicamente correto, pois sempre necessitaram caçar, pescar e derrubar árvores para construir suas malocas. É praticado até hoje na floresta um tipo de pesca que consiste em dissolver na água um veneno vegetal, que mata bem mais espécies de peixe do que aquelas aproveitadas na alimentação E é sabido que os tupis que ocupavam o litoral na época do descobrimento desde muito praticavam uma agricultura primitiva com queimadas. Sim, as queimadas são mais antigas do que se supõe. Índios nunca tiveram consciência ecológica, mas apenas consciência do que precisavam fazer para sobreviver.
Já que não podemos parar com as queimadas, devíamos ao menos entender o fenômeno dentro dos parâmetros em que efetivamente se encontra.
terça-feira, 27 de agosto de 2019
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
Entre o militarismo e o parlamentarismo
Após oito meses de governo, a impressão mais marcante até agora do presidente Jair Bolsonaro é de alguém pequeno cercado de personagens maiores do que ele. E esses personagens são, em sua maioria, militares.
O que isso significa? Estamos entrando em uma nova fase de militarismo no país? É nesses momentos de dúvida que se torna oportuno conhecer a História, a fim de buscar e estabelecer paralelos com etapas do passado que parecem análogas ao presente, cabendo analisa-las e discernir o que é cíclico do que é mero dejâ vu. Os militares têm se acercado do poder desde a proclamação da república, mas sempre como uma opção revolucionária. Os presidentes militares que chegaram ao poder por eleições, dentro das regras estabelecidas, foram apenas dois e mostraram-se figuras apagadas. De resto, o último período de militarismo no país, para além da retórica anti-esquerdista, mostra pouca semelhança com o atual. Em 1964 havia uma grande expectativa de que os militares iam "consertar o país", varrendo a corrupção e a subversão. O movimento que depôs Goulart foi por muitos considerado, de fato, uma revolução, cabendo prolongar-se e deixar mudanças perenes. Sob esta óptica, os militares da época viam sua chegada ao poder não apenas como uma missão de combater a subversão, mas também a oportunidade de implementar um projeto desenvolvimentista. Ironicamente, essa propensão tornava-os mais afins do PT do que do governo atual de Bolsonaro, o qual se opõe formalmente ao desenvolvimentismo nacional-estatista e propõe o encolhimento do estado.
Na prática, o desenvolvimentismo dos militares de 1964 não era diferente do modelo anterior, oscilando entre uma vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e uma vertente "entreguista" (Castelo Branco, Kubitschek). Fez sucesso nos anos 70, mas esboroou-se na década seguinte. O fracasso econômico final minou o prestígio dos militares como governantes superiores aos civis, e eles eclipsaram-se nas décadas seguintes, só voltando ao protagonismo com a última eleição. Assim encerrou-se um ciclo. Mas voltando ao início do ciclo, lá nos primórdios de século anterior, é preciso identificar qual fator elevou o prestígio dos militares e apontou-os como solução política. Esse fator foi a crença de que, em razão de não estarem vinculados a partidos e sim ao país, os militares estariam investidos de um papel de Poder Moderador, cabendo-lhes intervir nos momentos em que os poderes constituídos entrassem em conflito. Enquanto os militares exercessem essa função, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerras civis.
A menção a um Poder Moderador reporta a outra figura histórica, o imperador Pedro II, que esteve formalmente investido deste poder tal como foi definido na constituição de 1824. Não há nenhuma semelhança entre a pessoa do ex-imperador e o atual presidente, exceto um detalhe circunstancial: Pedro II também esteve cercado, a maior parte da vida, por figuras politicamente mais influentes do que ele próprio. Assumiu o trono aos quinze anos, e por certo que meninos de quinze anos não são colocados no poder para mandar, mas para serem mandados. Em tese, seus poderes eram amplos - a constituição de 1824 não instituía um regime parlamentarista, posto que não havia nenhuma obrigatoriedade do imperador nomear um ministério obedecendo à maioria da câmara, tanto que convencionou-se chamar o regime monárquico brasileiro de parlamentarismo às avessas: primeiro o imperador indicava o presidente do Conselho de Ministros, e este indicava os nomes que o legislativo devia aprovar. Na prática, porém, o imperador tendia a referendar a corrente majoritária no momento, de modo que o regime gradualmente tornou-se parlamentarista de facto. A facilidade com que o idoso monarca foi descartado ao final de seu governo mostra bem como ele já era, então, uma figura já de todo esvaziada de poderes. Coube aos militares dar o empurrão final.
Podemos ver, então, estabelecida uma regra histórica: sempre que o chefe de estado se torna menor do que aqueles que o cercam, o país tende a se encaminhar, ou para o parlamentarismo, ou para o militarismo. A alternativa é o chefe de estado exercer uma espécie de poder moderador, do contrário se revelará descartável. O que fará Bolsonaro? Irá se eclipsar voluntariamente, e deixar o governo ser conduzido pelos que o cercam? Terá a sabedoria de moderar as correntes a sua volta que disputam o poder? Acabará simplesmente descartado, e será substituído pelo vice? Ou assumirá por fim as rédeas do governo com autoridade?
Aí já não temos que olhar para o passado, mas para o futuro.
O que isso significa? Estamos entrando em uma nova fase de militarismo no país? É nesses momentos de dúvida que se torna oportuno conhecer a História, a fim de buscar e estabelecer paralelos com etapas do passado que parecem análogas ao presente, cabendo analisa-las e discernir o que é cíclico do que é mero dejâ vu. Os militares têm se acercado do poder desde a proclamação da república, mas sempre como uma opção revolucionária. Os presidentes militares que chegaram ao poder por eleições, dentro das regras estabelecidas, foram apenas dois e mostraram-se figuras apagadas. De resto, o último período de militarismo no país, para além da retórica anti-esquerdista, mostra pouca semelhança com o atual. Em 1964 havia uma grande expectativa de que os militares iam "consertar o país", varrendo a corrupção e a subversão. O movimento que depôs Goulart foi por muitos considerado, de fato, uma revolução, cabendo prolongar-se e deixar mudanças perenes. Sob esta óptica, os militares da época viam sua chegada ao poder não apenas como uma missão de combater a subversão, mas também a oportunidade de implementar um projeto desenvolvimentista. Ironicamente, essa propensão tornava-os mais afins do PT do que do governo atual de Bolsonaro, o qual se opõe formalmente ao desenvolvimentismo nacional-estatista e propõe o encolhimento do estado.
Na prática, o desenvolvimentismo dos militares de 1964 não era diferente do modelo anterior, oscilando entre uma vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e uma vertente "entreguista" (Castelo Branco, Kubitschek). Fez sucesso nos anos 70, mas esboroou-se na década seguinte. O fracasso econômico final minou o prestígio dos militares como governantes superiores aos civis, e eles eclipsaram-se nas décadas seguintes, só voltando ao protagonismo com a última eleição. Assim encerrou-se um ciclo. Mas voltando ao início do ciclo, lá nos primórdios de século anterior, é preciso identificar qual fator elevou o prestígio dos militares e apontou-os como solução política. Esse fator foi a crença de que, em razão de não estarem vinculados a partidos e sim ao país, os militares estariam investidos de um papel de Poder Moderador, cabendo-lhes intervir nos momentos em que os poderes constituídos entrassem em conflito. Enquanto os militares exercessem essa função, o país estaria livre de impasses sangrentos e guerras civis.
A menção a um Poder Moderador reporta a outra figura histórica, o imperador Pedro II, que esteve formalmente investido deste poder tal como foi definido na constituição de 1824. Não há nenhuma semelhança entre a pessoa do ex-imperador e o atual presidente, exceto um detalhe circunstancial: Pedro II também esteve cercado, a maior parte da vida, por figuras politicamente mais influentes do que ele próprio. Assumiu o trono aos quinze anos, e por certo que meninos de quinze anos não são colocados no poder para mandar, mas para serem mandados. Em tese, seus poderes eram amplos - a constituição de 1824 não instituía um regime parlamentarista, posto que não havia nenhuma obrigatoriedade do imperador nomear um ministério obedecendo à maioria da câmara, tanto que convencionou-se chamar o regime monárquico brasileiro de parlamentarismo às avessas: primeiro o imperador indicava o presidente do Conselho de Ministros, e este indicava os nomes que o legislativo devia aprovar. Na prática, porém, o imperador tendia a referendar a corrente majoritária no momento, de modo que o regime gradualmente tornou-se parlamentarista de facto. A facilidade com que o idoso monarca foi descartado ao final de seu governo mostra bem como ele já era, então, uma figura já de todo esvaziada de poderes. Coube aos militares dar o empurrão final.
Podemos ver, então, estabelecida uma regra histórica: sempre que o chefe de estado se torna menor do que aqueles que o cercam, o país tende a se encaminhar, ou para o parlamentarismo, ou para o militarismo. A alternativa é o chefe de estado exercer uma espécie de poder moderador, do contrário se revelará descartável. O que fará Bolsonaro? Irá se eclipsar voluntariamente, e deixar o governo ser conduzido pelos que o cercam? Terá a sabedoria de moderar as correntes a sua volta que disputam o poder? Acabará simplesmente descartado, e será substituído pelo vice? Ou assumirá por fim as rédeas do governo com autoridade?
Aí já não temos que olhar para o passado, mas para o futuro.
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