segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Escola Sem Partido

Um dos projetos mais polêmicos do momento atual é aquele que institui a Escola Sem Partido. Suscita reações vigorosas, tanto de apoiadores quanto de opositores. Quanto a mim, não é surpresa. A descarada doutrinação nas escolas já vinha sendo denunciada havia tempos, e um sintoma de que o pessoal estava saturado disso foi o sucesso dos Guias Politicamente Incorretos, que já citei aqui várias vezes.

Mas o projeto dá medo, sim. Os alunos ganham a prerrogativa de denunciar um professor que supostamente tenta fazer doutrinação política, e isso pode criar um clima de retração e caça às bruxas. Uma coisa assim pode, efetivamente, ser usada para propósitos escusos. No meio desta polêmica, chamou-me a atenção uma entrevista do ex-senador e ex-ministro da educação Cristovam Buarque, intitulada Soviéticos e Nazistas Tentaram Escola Sem Partido e Falharam.

O título parece mais uma patacoada estilo Falácia Ad Hitlerum para demonizar certo movimento. De Cristovam Buarque não esperava mesmo outra coisa, sempre o tive como um comentarista de esquerda pouco imaginoso e especialista em platitudes. Por isso me surpreendi quando o vi reconhecer:
"Primeiro, é preciso reconhecer: muitos professores exageraram nos últimos anos, em vez de debater, querendo doutrinar. Houve certo exagero na maneira como alguns professores se sentiram donos da verdade de um partido"

Sim, finalmente um comentarista de esquerda admitiu. Anos atrás, eu já me horrorizava ao ler trechos de livros didáticos de História repletos de chavões em meio a erros gramaticais e linguagem chula. Comparando-os com os livros-texto de meus tempos de estudante, dava para ter uma boa ideia do quanto o nível do ensino caiu no país. Mas afinal, essa doutrinação que persistiu em nossas escolas por anos a fio surtiu algum efeito do ponto de vista dos doutrinadores?

Em um debate com um blogueiro esquerdista que também é professor de ensino médio, ele me respondeu categórico: "Tudo o que um professor espera hoje dos alunos é que não ponham abaixo a sala de aula". É, parece que eliminar a disciplina das escolas não foi uma boa ideia. Sem disciplina não se faz nada. Nem revolução. Outro comentarista que também foi professor de ensino médio disse: "Quando os alunos não estão a fim de assimilar uma coisa, pode repetir cem vezes que entra por um ouvido e sai pelo outro". Questionado pelo entrevistador, Cristovam responde com impressionante sinceridade:

"O pessoal fala em escola sem partido, mas o problema, no Brasil, é escola e ponto. Esse país nem tem escola [de qualidade], quer dizer, só tem para uma minoria. Estão querendo tirar o partido da escola antes de fazer a escola"

Sim, ele disse o óbvio. Como cultor de platitudes, a especialidade de Cristovam é mesmo dizer o óbvio, embora nem sempre com neutralidade. Eu já havia chegado à mesma conclusão: a doutrinação em sala de aula, seja do viés que for, é ineficaz para produzir uma geração de militantes, mas é eficaz para mediocrizar o ensino. Isso porque o raciocínio é substituído pela repetição de chavões. Não vendo nexo lógico entre a realidade perceptível e aquilo que o professor afirma, o aluno desacostuma-se a pensar. Um professor que diz coisas engraçadas, que debocha dos personagens históricos, dos ricos, dos famosos e de todos aqueles que despertam a inveja das pessoas comuns, sempre é popular entre as ditas pessoas comuns. Quando nada, será o professor de uma matéria fácil de passar, cujas aulas são divertidas.

E não é só isso: além de mediocrizar o ensino, um professor assim também detona a autoestima dos alunos. Todos são convencidos de que pertencem a um povo ordinário e patético, sem valor, cujos heróis são vilões e que não fazem nada que preste. O que um jovem que recebe esta mensagem vai pensar? Que ele tem mais é que mandar o país às favas, pois mesmo se ele fizer alguma coisa grandiosa, os professores de História do futuro vão dizer que ele foi um mané, igual fazem os professores do presente com os personagens históricos do passado. Não me parece a melhor maneira de formar militantes entusiasmados.

Os nazistas e comunistas, como se sabe, nunca criaram uma Escola Sem Partido. Eram regimes de partido único, e por conseguinte não tiveram nenhuma propensão em disfarçar que o Partido permeava a escola, tal como permeava toda a vida cultural e até social dos cidadãos. Se por aqui o projeto Escola Sem Partido vai materializar uma Escola de Partido Único (do governo), isso veremos. Cristovam concluiu:

"Nós precisamos é de um partido para a escola, porque não temos nenhum. Um partido que ponha a escola como eixo central do progresso"

É raro eu concordar com Cristovam, mas desta vez eu concordo.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A Contrarrevolução Cultural

A revolução cultural fez história em minha geração. Não estou me referindo à China de Mao, onde o termo foi efetivamente lançado nos anos 60 e evoca memórias de horror à população. Refiro-me ao sentido romântico que o termo ganhou no ocidente. Todas as revoluções políticas tentadas desde então fracassaram, ou foram tão patéticas que nem se pode chama-las assim, mas por outro lado ficou a sensação de que foi obtido triunfo em revolução de costumes que mudou definitivamente o mundo. Fala-se com naturalidade da revolução dos estudantes de maio de 1968 em Paris, que se irradiou pelo mundo inteiro, esquecido que em maio de 1968 não aconteceu revolução nenhuma strictu sensu, pois o governo não foi derrubado nem o regime foi mudado.

Pouco sangue, muito esperma, ironizou na época certa personalidade francesa cujo nome não me lembro, querendo dizer que tudo não passou de arroubos de uma juventude arruaceira e hedonista. Mas ninguém duvida que a década de 60 produziu uma virada geral nos costumes, que demoliu antigas crenças e tabus que vinham dos primórdios de nossa civilização. O vento da mudança soprou, refrescou e levantou a poeira. Quem viveu aquela época, e mesmo quem nasceu depois, lembra-se dela com ternura.

Por aí se entende o desconcerto desse pessoal ao contemplar a atual onda conservadora que varre o mundo ocidental, que no nosso país produziu a eleição de Bolsonaro. Ideias que pareciam ultrapassadas e enterradas desde muito voltam à pauta. Cresce a religiosidade e o prestígio dos pastores. A mudança de costumes, que consideravam irreversível, está sendo contestada. Após a revolução cultural dos anos 60, estaria acontecendo, então, uma tardia contrarrevolução cultural? Comentou Rodrigo Constantino, na Gazeta do Povo:

A esquerda 'progressista' plantou as sementes que levaram ao crescimento dessa direita nacionalista e 'xenófoba'. Mas os 'progressistas' se recusam a fazer uma reflexão profunda sobre seu mea culpa nessa história. Desde a década de 1960, em que prometem 'liberdade' por meio da libertinagem...


Vovó já dizia para não confundir liberdade com libertinagem. E parece que tinha razão. A libertinagem prometida pelos revolucionários dos anos 60, longe de conduzir à liberdade, prendeu os indivíduos em uma espiral de dissipação. O fenômeno mais palpável que se verificou a partir daí foi a explosão do consumo de drogas. O hedonismo é intrinsecamente autodestrutivo. Na Europa, o vazio existencial dos filhos e netos de maio de 1968 vem sendo preenchido pelos radicais muçulmanos, aqui fazem a festa os pastores evangélicos. Menos mal.

Impressiona que essa contrarrevolução cultural esteja partindo do povão que frequenta as igrejas evangélicas das periferias, e não das elites. Todas as grandes revoluções culturais até hoje no mundo ocidental partiram das elites. O iluminismo do século 18 foi gestado nos salões, e não nas tabernas, onde o povo sequer sabia ler. O maio de 1968 foi produto do aumento expressivo do número de estudantes universitários, na esteira da prosperidade após a segunda guerra - afinal, tudo começou porque os estudantes queriam frequentar o dormitório de suas namoradas, não foi? Os intelectuais militantes, incapazes de explicar como o povão, de quem se consideram porta-vozes, pôde mudar de tal maneira sua mentalidade, tecem teorias conspiratórias e falam do despeito de uma classe média com o aumento do poder de compra dos pobres e a invasão destes a seus espaços exclusivos. Como se classe média, no Brasil, decidisse eleição.

A esquerda que comemorava a demolição das amarras morais da pequena burguesia, agora sente que o tapete lhe foi puxado, e começa a por em dúvida a eficácia da estratégia gramscista, lançada pelo intelectual italiano Antonio Gramsci, que aliás foi o criador do termo revolução cultural. A explosão do consumo de drogas, na esteira da rebelião da juventude dos anos 60, inundou de crime as periferias. Acossado pela violência e pela imoralidade, o povão que mora ali corre para os pastores evangélicos e dá seu voto ao primeiro candidato que aparece prometendo baixar o pau na bandidagem e regressar a tempos pregressos supostamente mais felizes. A visão da mocinha de seios de fora nas passeatas dos anos 60, se na época evocava desafio e transgressão, hoje só evoca vulgaridade.
De fato, no Brasil, o hedonismo como propensão revolucionária sempre foi um grande mal entendido, muito antes, aliás, do maio de 1968. Longe de nos conduzir à libertação, deixou-nos prisioneiros da dicotomia Civilizado X Selvagem configurada pelo aforismo que afirmava não existir pecado do lado de baixo do equador. Quem pensa que isso é coisa do tempo das caravelas devia prestar atenção a certa entrevista dada pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Perguntado porque os vilões do filme A Pele Que Habito eram brasileiros, respondeu com naturalidade:

Eu não queria que a família de Ledgard fosse espanhola e que ele tivesse recebido uma educação cristã. Não queria que ele tivesse sido criado numa lógica de culpa e castigo. Logo, eu o inseri numa família brasileira. Trata-se de um clã muito feroz, de raízes possivelmente africanas. Por isso pensei no Brasil


Não me pareceu que o cineasta espanhol estava ironizando. E vindo de quem vem, fica evidente que não se trata de opinião de pessoas ignorantes ou desinformadas. Sim, há o senso comum de que o aporte da civilização e da religião do colonizador não aconteceu aqui, e que o Brasil ainda é aquela praia habitada pelas índias nuas que não conheciam o pecado. E que os africanos tampouco foram cristianizados, e mantém seus credos originais, que supostamente não comportavam o sentimento de culpa (engraçado que os atores eram todos brancos).

Por essas e outras, penso que não há nada mais revolucionário no Brasil do que o conservadorismo, aliás coisa normal no maior país católico do planeta, que vai se tornando rapidamente evangélico, mas de qualquer modo tanto um quanto o outro, cristão e refratário à agenda de mudança dos costumes. Não sei até onde nos levará essa atual onda conservadora, mas se convencer os estrangeiros de que aqui existe o conceito de pecado, já está de bom tamanho.

domingo, 11 de novembro de 2018

Histórias não (ou mal) contadas: escravidão

Estou lendo mais um livro de Rodrigo Trespach, da série Histórias Não (ou Mal) Contadas. Tal como a série dos Guias Politicamente Incorretos de Leandro Narloch, dedica-se a desmontar de forma leve e bem-humorada todo um amontoado de mitos que viraram verdade oficial após haverem sido muito repetidos por professores escritores ideologicamente enviesados - algo bem oportuno para a época plena de revisionismos que estamos vivendo, sem dúvida.

Um dos mitos mais duradouros, aliás, que muita gente acreditou, foi que o Brasil teria sido o último país do mundo a abolir a escravidão. Não foi nem o último das américas, pois Cuba só aboliu em 1898. Mas em outras partes do mundo, a escravidão continuou legal pelo século 20 adentro - só foi abolida na Arábia Saudita em 1960, e na Mauritânia em 1980, muito embora seja sabido que a escravidão continue de forma clandestina em boa parte do mundo, inclusive no Brasil. O livro procura desmentir, sobretudo, a impressão mais persistente de todas: que a escravidão seria pertinente a uma única etnia.

Essa impressão repetiu-se em épocas distintas da História da humanidade, que coincidiram com um crescimento explosivo do número de escravos, em razão de diversos fatores. A mais recente foi a escravização maciça de africanos para trabalhar nas plantações do Novo Mundo colonizado, que fez grudar até hoje nos afrodescendentes o estereótipo de ex-escravo, a ponto de qualquer escravidão que incidisse sobre elementos de outra raça ser taxada de "escravidão branca". Mas houve um tempo em que o povo-escravo-padrão era outro, branco e originário do leste da Europa: os eslavos. O nome originou o próprio termo "escravo" (em inglês, "slave"). O motivo teria sido semelhante ao que ocasionou a escravização massiva dos africanos: muita divisão, muitas tribos inimigas, muitas guerras. Mas durante a expansão máxima do escravismo, na época da Roma antiga, a escravidão sempre foi multiétnica.

Entretanto, até o início do século 19, nunca deixaram de existir escravos europeus brancos, capturados por piratas árabes ou otomanos e vendidos nos mercados da África e da Ásia. O número não se comparava ao de escravos negros no mesmo período, mas atingia a cifra de milhões: de fato, essa escravização só cessou por completo depois que a colonização europeia do norte da África destruiu as bases por onde operava esses piratas. Mas também sempre existiram escravos brancos pertencentes a senhores brancos. Uma das falhas do ensino de História nas escolas tem sido a suposição de que a escravidão, na Europa, teria sido fenômeno da Idade Antiga, sucedida pela servidão da gleba na Idade Média - o estatuto do servo da gleba teria sido bem diferente e melhor do que o do antigo escravo, pois ele não pertencia a um senhor, mas à gleba da qual não podia ser apartado, e que garantia a sua subsistência. Erro duplo: primeiro, a escravidão na Europa não cessou durante a Idade Média e prosseguiu até a Idade Moderna, embora em pequeno número, pois não havia um imperativo econômico que implicasse no uso intensivo do trabalho escravo; segundo, a situação do servo da gleba não era muito diferente daquela do escravo. Ele estava sujeito aos mesmos abusos e castigos, assim como ao trabalho forçado. O Senhor não podia tirar-lhe mais do que o necessário para a subsistência, mas tampouco interessava ao Senhor que sua mão-de-obra morresse de fome.

O livro é minucioso e trata de peculiaridades da escravidão pouco conhecidas, bem como da persistência dela no mundo atual. Só senti falta de uma abordagem mais economicista. O autor poderia ter derrubado outro mito: de que nossa desigualdade social é produto da escravidão. Olhando ao redor, vemos muitos vizinhos sul-americanos que tiveram histórico de escravidão bem inferior e aboliram-na já no início do século 19, e que têm uma desigualdade muito semelhante à nossa. Poderia ter tratado também da incompatibilidade intrínseca do regime de trabalho escravo com o capitalismo industrial que se expandia pelo século 19, o qual necessitava do regime de trabalho assalariado.

Foi de fato a expansão do capitalismo que impôs o fim da escravidão, ao menos daquela escravidão intensiva e presente nas regiões economicamente mais ativas do globo. Para forçar esse fim, chegou-se até à guerra, como é sabido. Um raro exemplo da total incompatibilidade entre o trabalho escravo e o capitalismo industrial foi apresentado por Jorge Caldeira em sua biografia do Barão de Mauá. Quando o barão comprou o estaleiro de Ponta de Areia com o intuito de iniciar a produção de barcos a vapor, teve que comprar também o plantel de escravos que já trabalhavam ali. O capital gasto na aquisição dos escravos foi praticamente o mesmo investido na compra das instalações. Sem dúvida que o barão preferiria reservar esse capital para si e, ao invés, pagar salários, mas ele sabia muito bem que era impossível: mesmo que ele procurasse por trabalhadores, não os encontraria, pois quase toda a mão-de-obra existente estava na forma de escravos.

Sem dúvida que a revolução industrial não teria sido possível em um mundo onde cada industrial, após empatar seu capital na aquisição da fábrica, tivesse que empatar igual quantia na aquisição de escravos. A existência de uma massa de trabalhadores livres e disponíveis era essencial. O capitalismo, onde se instalou com força, afugentou o escravismo por força de sua própria lógica de produção, mas do que do humanismo de seus próceres.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Eu vi o futuro repetir o passado

O que era previsto aconteceu. Já na minha postagem passada eu manifestava a impressão de que a história ia se repetir. Disse Marco Túlio Cícero,

Aquele que não conhece a História será sempre um menino


Cícero quis dizer que para aquele que não conhece a História, tudo parece novidade, assim como tudo é novo para uma criança que ainda não tem vivência. O estudo da História serve ao menos para isso, para não ser feito de bobo. Quem conhece a História sabe que o fenômeno não é novo. Já é a terceira edição. O cenário é o mesmo: em um momento de desalento com a política, surge um arrivista sem ligações com as facções políticas tradicionais, prometendo um renovação geral em "tudo isso que está aí". O primeiro foi Jânio Quadros em 1961. O segundo foi Collor de Mello em 1989. Agora temos Jair Bolsonaro.

O fato está consumado, resta agora tentar explicar como um obscuro e exótico personagem, que frequentou por tanto tempo o congresso sem apresentar quase nenhum projeto, pôde de repente conquistar milhões de votos e tornar-se o novo presidente do país. E tentar prever o futuro à luz do passado.

O voto em Bolsonaro foi, claramente, um voto de raiva. Reflete um descontentamento difuso com o que vinha acontecendo no país desde longo tempo. É neste ponto que torna-se imprescindível explicar: por que tanta rejeição ao PT, que governou o país por 14 anos com nítido saldo positivo?

O sucesso de Bolsonaro foi, em grande medida, a transmutação do insucesso do PT. Mesmo que o governo Dilma tenha sido um desastre, os dois mandatos de Lula proporcionaram amplas melhorias ao nível de vida da população, e a popularidade do então presidente atingiu níveis recordes. Como foi possível o PT cair de maneira tão fragorosa tão pouco tempo depois?

As teorias são muitas, mas eu prefiro a mais simples. A falha maior do PT, a meu ver, foi não escutar aquele que é o anseio máximo da população: o combate ao crime que desde muito assola a sociedade em níveis crescentes. A proposta anunciada pelo PT foi criar penas alternativas no intuito de diminuir a população carcerária, e assim aumentar o número de criminosos soltos. Foi um erro visceral, do qual o PT não pôde escapar, pois já estava comprometido com essa linha desde pelo menos os anos 70, quando o fracasso da luta armada, que não teve o apoio dos trabalhadores, fez com que os ideólogos de esquerda cada vez mais se aproximassem dos marginais da sociedade, chamados eufemisticamente de "excluídos", mas a quem Marx cem anos atrás já denominava o "lumpen-proletariado", e com toda a razão afirmava serem imprestáveis como revolucionários.

Os trabalhadores aderiram ao capitalismo, então a esquerda vai buscar seu novo público entre os lúmpens, aí entendidos não apenas como os marginais, mas como todo grupo de indivíduos desajustados e inconformistas. Neste ponto o PT tocou em cordas muito sensíveis do caráter nacional. De fato, boa parte do eleitorado petista é constituída por aqueles cidadãos mais humildes, que são justamente os mais atingidos pela avassaladora criminalidade, bem como os detentores dos valores morais e religiosos mais conservadores. Essas pessoas viram seus valores enxovalhados pelo discurso petista, e endossaram a narrativa do PT como "partido de bandidos e vagabundos". Penso que o chamado marxismo cultural, que os militantes mais antigos viam como mera distração (e estavam certos) terminou por ser um estrondoso tiro no próprio pé.

Resta agora prognosticar o futuro. Há basicamente dois roteiros mais prováveis. O primeiro, como já citado, é Bolsonaro repetir a trajetória de Jânio Quadros e Collor de Mello: jovem e sem experiência em conchavos, cairá na ilusão de que pode governar sozinho, perderá gradativamente o apoio até ser excluído do poder de alguma forma. No segundo roteiro, Bolsonaro abandonará a linguagem ferina e o discurso extremista, e fará um governo pragmático conduzido por seu ministro da economia, tomando as necessárias medidas de austeridade para a retomada do crescimento econômico, e seu sucessor colherá os frutos. Será o novo Fernando Henrique Cardoso. Curioso que tanto no primeiro como no segundo roteiro, o desdobramento será a retomada do poder pela esquerda com o próximo presidente.

Há ainda um terceiro roteiro: Bolsonaro aprofundar sua retórica extremista e reinstaurar o regime dos militares encerrado em 1985. Mas uma nova ditadura será uma ópera bufa. As condições do presente nada tem a ver com as de 1964. Não há mais guerra fria, não há mais URSS bancando o partido comunista, não há mais exilados em Cuba, não há mais guerrilheiros no interior. Seria até uma contradição de termos, pois o regime dos generais era estatista, e Bolsonaro proclama-se liberal. Aí não sei o que vai acontecer, mas é provável que sua queda será ainda mais rápida. Se Bolsonaro quiser mesmo começar uma nova etapa na política e fazer seu sucessor, terá que reinventar-se. A retórica de botequim de nada vale nos gabinetes.

A roda da História nunca deixa de girar. Mas às vezes não sai do lugar. Esperemos que o futuro não repita o passado.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O ponto a que chegamos

A eleição foi ontem. Por toda parte os comentaristas trombeteiam: nunca antes neste país houve situação de tal polarização política! Eu concordo. Mas o estudo da História serve para isso mesmo: só sabendo o passado podemos entender o presente e prever o futuro. A História se repete? Não integralmente. Disse Oscar Wilde, a História não se repete, são os historiadores que repetem uns aos outros...

Mas quem leu meu último artigo não pode deixar de perceber uma flagrante analogia entre o que aconteceu na Alemanha dos anos trinta e o que aconteceu ontem no Brasil. Conforme eu mesmo levantei, uma maneira da extrema direita chegar ao poder é através do vácuo aberto por um partido centrista que colapsa. Na República de Weimar, foi o partido social-democrata; no Brasil do presente, foi o PSDB.

O desmoronamento do PSDB é um fenômeno ainda a ser desvendado com exatidão. Esse partido, que lançou o Plano Real, foi o responsável pela transição do país do século 20, com seu modelo nacional-estatista esgotado, para o país do século 21, onde estamos agora. Como uma agremiação que teve tal importância histórica pode terminar tão melancolicamente? A meu ver, o PSDB relutou em aceitar o papel que a História reservava para ele, o de compor um bipartidarismo com o PT e proporcionar estabilidade política ao país. O PSDB, com sua herança da Era FHC, tinha tudo para ser um contraponto liberal à social-democracia do PT, mas deliberou renegar seu passado e tentar um retorno tardio a suas raízes social-democratas, esquecido que esse escaninho já estava ocupado pelo PT, e ninguém vai querer a cópia se pode ter o original. Tivesse perseverado no caminho traçado desde 1994, o PSDB com certeza não teria sido capaz de vencer o PT em 2006 e 2010, mas permaneceria íntegro para o eleitorado liberal, e seria capaz de triunfar em uma eleição futura quando a esquerda estivesse em baixa. Mas ao invés disto, desmoralizou-se com sucessivas derrotas. Deve ser lembrado que a real causa da desmoralização não é a derrota em si - Lula foi derrotado em 1989, 1994 e 1998, e só se fortaleceu - mas o abandono de seus ideais.

Desprezada a escolha segura, que permite repetir o passado, fica aberto o caminho para aventureiros e arrivistas. O desalento das massas pode explicar o momento que estamos vivendo. Relembro um artigo que escrevi tempos atrás, comparando o modelo de quatro castas hindu - sacerdotes, guerreiros, comerciantes e trabalhadores - com a evolução dos tipos de governo através da História: teocracia, reinos, repúblicas democráticas. O sentido normal é esse, mas em momentos de crise política, moral ou espiritual, a população pode ansiar pelo retorno ao estágio anterior. Quando o governo de líderes militares nacionalistas parece fracassar, o povo sente a nostalgia do tempo em que era governado por pios líderes religiosos - no mundo atual, esse fenômeno foi observado na eclosão do fundamentalismo islâmico, que é o retorno do governo da casta dos guerreiros para a casta dos sacerdotes. Quando o povo se sente desiludido com seus políticos corruptos e medíocres, vem a nostalgia de um tempo em que os governantes eram varonis e se pautavam por uma ética de guerreiros - é a volta do governo da casta dos comerciantes para o governo da casta dos guerreiros. É precisamente nesse estado de espírito em que estamos o presente. O passado do governo militar instalado em 1964 tornou-se mítico, e ainda há os que desejam o retorno a um estágio ainda mais pregresso, o governo dos sacerdotes, no caso, os pastores evangélicos.

Mas o contexto histórico atual é outro. Não há justificativa para um governo sustentado pela força militar, pois a guerra fria terminou, não há mais guerrilhas nem inimigo armado a combater. As possibilidades que temos até o segundo turno são mesquinhas. Se Haddad vencer, sem ter o apoio deste congresso maciçamente conservador, ele apenas passará de pau-mandado de Lula para refém de sua base: terá que ceder, ou o país permanecerá no mesmo impasse em que se encontra desde 2014. Se Bolsonaro vencer, ele não terá apoio para reeditar a ditadura dos generais, mesmo porque generais não gostam de obedecer a um capitão. Periga ter o mesmo fim de Collor de Mello. Não digo que terá que se reinventar, terá mesmo que se inventar, pois as frases de efeito que fazem sucesso nos palanques de nada valem para governança. Se tiver juízo, moderará o palavreado e se concentrará na economia.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Falácia Ad Hitlerum

Mas como? Eu, que nem historiador sou, me atrevo a escrever sobre Adolf Hitler, possivelmente o personagem mais notório do último século, sobre o qual já foram escritas dezenas de biografias com centenas de páginas? Tenho a pretensão de adicionar algum dado que ainda não tenha sido debatido?
Não pretendo escrever exatamente a respeito da pessoa de Adolf Hitler, sobre o qual, aliás, li pouco, mas li coisa interessante. Tenho uma predileção por livros finos e pouco conhecidos, convicto que estou que nenhum autor precisa de muitas páginas para expor uma conclusão sucinta que tenha escapado aos autores que escreveram muitas páginas. O livro que gostei chama-se Um Tal de Adolf Hitler, de autoria de uma tal de Sebastian Haffner, que é um jornalista, e não um historiador. Ele procura decifrar as singularidades de Hitler e do nazismo observando as diferenças entre ele e outros grandes líderes do mundo ocidental, bem como as semelhanças entre o nazismo e o comunismo, ambos florescidos na mesma época.

"O pai de Adolf Hitler percorreu sua vida em ascensão. Apesar de filho ilegítimo de uma criada, conseguiu alcançar um cargo elevado no funcionalismo público, morrendo honrado e respeitado. O filho começou a vida em declínio. Não terminou o colégio, foi reprovado no exame de admissão para a Escola de Belas-Artes... A vida de Adolf Hitler carece de tudo o que normalmente dá peso, calor e dignidade à existência de um homem: cultura, profissão, amor, amizade, casamento, paternidade..."
Se alguém encontrar esse livro em algum sebo, recomendo que o compre. Mas o meu interesse agora por este tema diz respeito ao impacto que o nazismo ainda apresenta no mundo atual. De fato, com frequência lemos por aí ataques a líderes políticos repugnantes comparando-os a Hitler, bem como regimes políticos repugnantes sendo comparados ao nazismo. Chama-se isso falácia Ad Hitlerum, termo cunhado pelo filósofo político Leo Strauss. Adicionado à conhecida coleção de falácias da retórica, consiste de uma argumentação que visa desqualificar um oponente de forma irremediável e irreversível.

Pelo senso comum, faz sentido. Na História Universal, não há expoente de malignidade maior do que Hitler, o vilão máximo. Mas se há tantos hitleres soltos por aí, então isso é um sinal de que Hitler não está morto. Parece existir um temor coletivo de que o nazismo possa ressurgir subitamente. Quem vive a época atual sabe do que estou falando, e por época atual não me refiro a mês e dia, mas a toda a época, mesmo. Os hitleres mudam de nome e os nazismos mudam de endereço, mas há sempre um por aí a ser denunciado.

Não se pode suprimir um medo sem entender sua origem. O que foi, exatamente, o nazismo? Ainda há algumas pessoas vivas que testemunharam aquele período, mas para as gerações recentes, se comparado com o mundo atual, parece uma época tão distante quanto a Idade Média, e Hitler parece um personagem tão obscuro quanto um Gengis Khan. Se assistimos um documentário e visualizamos imagens, prova cabal do que ocorreu naquela época, o contraste com o mundo atual é tão impactante quanto o contraste da antiga fotografia em preto-e-branco com a moderna fotografia a cores. Se as imagens são colorizadas, parecem um filme de ficção, do tipo dos seriados de terror e ficção científica encontráveis na TV a cabo. Sabemos que guerras e massacres ainda ocorrem em determinadas partes do mundo, mas não na Europa, tida como um lugar refinado e ordeiro, sendo a Alemanha um lugar particularmente refinado e ordeiro, e já era assim antes dos eventos que originaram o nazismo. Como aquilo tudo pôde ocorrer em um local que é o paradigma do mundo civilizado? Como um país tão evoluído quanto a Alemanha pôde ter um líder como Hitler?

O incômodo dessas questões é: se aconteceu aquilo com eles, que eram tão bons, então quem garante que não possa acontecer conosco? E se aconteceu uma vez, quem garante que não pode acontecer de novo? Incapazes de determinar as origens do fenômeno, ficamos com a suspeita de que o nazismo ainda está entre nós, insidiosamente incubado e pronto a ressurgir, mesmo que seja na figura de um exótico candidato a presidente. É o momento ideal para uma reflexão, procurando entender o que realmente foi o nazismo, e afastar certas pressuposições que erguemos como barreira contra constatações atemorizantes.

A primeira dessas pressuposições é a crença de que a doutrina nazista está circunscrita à Alemanha e à pessoa de Hitler. Mas está havendo aqui uma amnésia coletiva. A noção de superioridade racial era corrente no início do século 20, e no século anterior fora objeto de enunciados pretensamente científicos por vários pesquisadores que não eram "nazistas" no sentido em que essa palavra adquiriu posteriormente. A crença de que a raça deveria ser melhorada por políticas públicas, denominado eugenia, era considerada respeitável. É verdade que seus seguidores não pregavam o extermínio de quem já nasceu, e sim evitar o nascimento de indivíduos considerados degenerados, mas a mensagem implícita é a mesma: raças e indivíduos inferiores devem ser levados à extinção. Diversas práticas eugênicas já vinham sendo implantadas por países desenvolvidos, e isso era visto como progresso; não levavam pessoas para câmaras de gás, mas em muitos casos pessoas eram esterilizadas sem o seu consentimento.

Enfim, não foram os nazistas que inventaram a doutrina da superioridade racial, o que eles fizeram foi colocá-la em prática. Após o trauma gerado pela descoberta dos campos de extermínio nazistas, esses conceitos caíram em desgraça e estabeleceu-se a amnésia coletiva que impede de perceber que não foram os nazistas seus inventores.

E tampouco foram os nazistas que inventaram os campos de concentração. Já havia campos de prisioneiros com essas características na Rússia em 1918, criados pelos bolchevistas. Mas os introdutores do conceito foram os britânicos durante a Guerra dos Boers, tendo sido criados campos na África onde eram aprisionadas famílias inteiras.

A segregação de raças, a proibição da miscigenação e do contato físico entre indivíduos de raças diferentes já vinha sendo praticada nos EUA desde o século 19, amplamente amparada na legislação, e prosseguiu até bem depois da derrocada nazista.

O nazismo não foi a invenção de um gênio maligno. Seus preceitos, embora renegados na época atual, fizeram parte da bagagem de crenças e práticas das nações mais evoluídas do mundo ocidental em época recente. Daí que, por mais absurdo que tenha sido, ainda parece familiar hoje. Recentemente houve uma discussão em torno de um vídeo divulgado pela embaixada alemã, questionando se o nazismo teria sido um movimento de esquerda, e não de direita. Parece estapafúrdio, mas a questão esconde um mal entendido: o nazismo é, obviamente, de direita. Mas a direita e a esquerda do início do século 20 derivavam do mesmo fenômeno social e disputavam o mesmo público de proletários, intelectuais descontentes e inconformistas em geral. Na época presente convencionou-se que direita é sinônimo de conservadorismo, mas os regimes fascistas que brotaram a partir da década de vinte nada tinham de conservadores. As imagens evocadas ainda hoje pelo nazismo trazem multidões, bandeiras, fanfarra, operários e estudantes desfilando uniformizados etc. etc. Impressiona o entusiasmo da juventude, bem como o fato de que quase todos os líderes nazistas recém-chegados ao poder eram jovens na faixa dos 30 anos, inclusive o próprio Hitler.

Fascismo e socialismo emergiram do mesmo contexto de revolução industrial, expansão do proletariado, nacionalismo e rivalidade entre potências colonialistas. Pregavam a superação tanto do sistema político quando do sistema econômico vigentes em favor de um regime de partido único e um líder carismático. Como diferença básica, o socialismo era internacionalista (união dos proletários contra os burgueses) e o fascismo era nacionalista (confundindo os conceitos de raça e nacionalidade), mas de resto ambos eram muito semelhantes em seus ritos e métodos. Basicamente antiliberais e anticapitalistas, preconizavam o Estado no comando da economia e da vida privada dos cidadãos.

O fascismo nunca foi um regime de elites econômicas, como se acredita hoje; era um regime apoiado por organizações de massa que em determinado momento conquistou o apoio dos grandes empresários, que consideraram-no uma alternativa ao comunismo. O verdadeiro oposto do fascismo não é o socialismo, mas o liberalismo, e no caso do nazismo, isso fica claro no próprio nome: Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Mas o parentesco entre as duas correntes políticas pode ser deduzido também da história pessoal de figuras notáveis da direita, que em sua juventude foram socialistas, inclusive o próprio Benito Mussolini. No poder, o nazi-fascismo não eliminou a burguesia como fez o comunismo, mas colocou-a a serviço do Estado (na prática os fascismos criam uma burguesia para uso próprio, seja favorecendo empresários amigos ou enriquecendo seus próprios acólitos, ao mesmo tempo em que perseguem e expropriam os burgueses não cooptados).

Então, não é estranho que o nazismo nos pareça familiar quando observamos certos líderes, partidos e regimes ao redor. A pergunta é: pode surgir novamente em nossa história? Afinal, já tivemos simpatizantes do nazismo no passado. Para responder essa pergunta é preciso verificar se além das ideias, também as condições sociais daquele momento podem repetir-se. Na Alemanha dos anos vinte havia multidões de ex-soldados, gente que não tinha emprego, mas tinha disciplina e sabiam usar armas. Foram esses indivíduos que engrossaram as organizações de massa e paramilitares do partido nacional-socialista. O exemplo que temos mais próximo de nós é o da Colômbia, onde uma longa guerra civil deixou uma multidão de combatentes que tampouco têm empregos, mas sabem usar armas, e vem integrando tanto grupos guerrilheiros quanto bandos armados de traficantes.

Por aqui não temos essa disponibilidade de massas que possam integrar grupos paramilitares antes de migrar para bandos criminosos. As que temos já foram direto para bandos criminosos. Mas convém lembrar que em sua época, o partido nacional-socialista alemão, ao mesmo tempo em que armava seus militantes, concorria a eleições e aumentava sua representação no parlamento. Para isso valeu-se do colapso do partido centrista, o social-democrata da classe média conservadora, para tomar o poder de forma quase anestésica, dentro do quadro de legalidade ainda vigente. Durante a chamada República de Weimar, o partido social-democrata manteve um equilíbrio precário sustentado pelos conservadores, enquanto os descontentes se dividiam entre o partido comunista e o nacional-socialista. Quando os comunistas começaram a bandear-se em massa para o nacional-socialismo, a balança se desequilibrou, e o resto da história todos conhecem.

A História mostra, portanto, que um modo pelo qual o nazismo pode alcançar o poder é introduzindo-se pela fenda aberta com o colapso de um partido centrista. Resta saber se essas condições podem se fazer presentes um dia entre nós.

Ou se tudo não passa de falácia Ad Hitlerum.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Orgulho Negro X Orgulho Branco

Não dá para fugir ao assunto, faz parte do espírito da época. Eu não sei dizer exatamente quando começou esta abordagem racialista dos problemas brasileiros, aqui onde antes era senso comum que o nosso problema não era o racismo, mas a desigualdade social. Mas com certeza é um produto da globalização. À medida em que os espaços se encurtam, aumenta o estranhamento entre as raças. O que sei com certeza é que a expressão Orgulho Negro se tornou corriqueira, reverberada em camisetas onde está escrito: 100% negro.

Por este motivo vi com preocupação o surgimento da expressão Orgulho Branco, que nunca antes tinha ouvido, e camisetas com a inscrição 100% branco. Pareceu-me estar surgindo uma reação contra o orgulho racial negro, capaz de fomentar, enfim, o racismo que tanto se esforçam em denunciar. Mas é difícil negar legitimidade a essa reivindicação. Se eles podem proclamar o orgulho de serem negros, nós podemos proclamar o orgulho de sermos brancos, certo?

Por acaso deparei-me com a primeira refutação lógica deste axioma. Um blogueiro explica porque as demais expressões de orgulho não são racismo, e apenas a expressão de orgulho branco é.



Preto = herança cultural africana
Mexicano  = herança cultural mexicana
Asiático = herança cultural da Ásia
Muçulmano = herança cultural e religiosa
Branco = cor da pele

Assim, explica Robert Gonzales, celebrar orgulho italiano, irlandês, mexicano, alemão, espanhol, é celebrar uma herança cultural que não pertence a uma raça específica. Celebrar orgulho branco é celebrar somente a cor da pele, pois não existe uma herança cultural branca, posto que os povos europeus pertencem a várias culturas. Faz sentido. A fusão dos conceitos de raça e cultura é um equívoco atroz, e detestável, pois implica que alguém de uma raça específica deve obrigatoriamente ter uma cultura específica, e uma cultura específica não pode ser abraçada por alguém de outra raça. As consequências nefastas desta linha de pensamento estão bem visíveis na história recente.

Quanto a mim, nunca pensei em sair por aí com uma coisa tão idiota quanto uma camisa escrito 100% branco, mas também penso aqui comigo: na África existe somente uma cultura? Não será simplismo, ignorância ou meramente racismo afirmar que todo indivíduo de tez escura deve obrigatoriamente ter as mesmas crenças, os mesmos valores, enfim, a mesma cultura?

E mesmo dentro das fronteiras de um único país, é obrigatório que exista somente uma cultura? O México, por exemplo, compartilha uma vigorosa cultura dos povos ancestrais e uma herança espanhola do colonizador. A que exatamente se refere a expressão Orgulho Mexicano? Se o dito orgulho não se refere a um único país, mas a toda uma região, a expressão torna-se mais vaga ainda: o que significa Orgulho Asiático? Na Ásia só existe uma civilização? Se os europeus reconhecem múltiplas civilizações em seu continente de origem, a ponto de não possuir sentido cultural a expressão Orgulho Branco, então por que reconhecem uma única cultura em toda a Ásia? Não haveria aí uma generalização simplista de fundo racial, tipo todo indivíduo de olho amendoado é a mesma coisa?

Esse discurso racialista que permeia a época atual parece-me mais uma cortina de fumaça que impede de ver com clareza os contornos de povos, civilizações e crenças.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

O país que odeia seu passado

O incêndio que destruiu o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista não foi exatamente uma surpresa. O estado precário dos museus brasileiros é coisa antiga e bem conhecida, e só nos últimos anos já houve outros dois incêndios em São Paulo. Além do que, incêndios têm sido uma especialidade dos edifícios sob a administração da UFRJ, já houve o da antiga faculdade da Praia Vermelha, e um no próprio prédio da reitoria. Mas o bate-boca e a troca de acusações que se seguiu chamaram minha atenção. Alguns responsabilizaram o governo atual, por sua política de cortes e sua PEC que congelou gastos. Mas outros lembraram que o museu já vinha sofrendo cortes desde o segundo mandato de Dilma Rousseff, que aliás foi quem colocou Temer na vice-presidência.

Tanto os primeiros quanto os segundos estão com razão. E quando dois contentores têm razão em uma polêmica, dá para suspeitar que a verdadeira explicação é bem outra, ou como se diz, o buraco é mais embaixo.

Eu penso que deve ser reconhecido o seguinte: o Brasil é um país que odeia seu passado E consoante com esta diatribe, desdenha de tudo que remonte ao passado, seja os vestígios materiais conservados nos museus, seja a própria memória coletiva. Concomitantemente, exibe uma idolatria babosa e injustificada por seu futuro - o Brasil é o país do futuro, não é? Viva a juventude!

A expressão material deste desprezo pelo passado combinado com a celebração do futuro pode ser vista, de um lado, no estado lastimável do Museu Nacional, e do outro, no novíssimo e reluzente Museu do Amanhã, que custou aos cofres públicos muitas vezes o valor da manutenção anual do museu das velharias. Eu estive lá tem dois anos, só para conferir. Não me pareceu um museu, ou pelo menos, nada que tivesse mínimo valor científico. Era mais uma sala de exposição de artes plásticas, reverberando umas tantas platitudes e lugares-comuns do discurso globalista para "salvar o planeta". Kitsch e presunçoso, construído no auge da euforia vivida pelo estado no boom das commodities, de certa forma pressagiava a vertiginosa queda que viria em seguida, queda esta fechada com chave de ouro pelo incêndio de nosso museu mais antigo.

Mas por que odiamos tanto nosso passado? Penso que é porque fomos ensinados que nosso passado é mau. Fomos colônia, como se diz, colônia de exploração; massacramos índios, tivemos escravos, tivemos ditadura, nossos personagens históricos foram uns canalhas, etc. Enfim, nosso passado é um carma vergonhoso de que temos que nos livrar, e por isso qualquer reverência ou celebração do passado é contraproducente. Temos que olhar para o futuro, que acreditamos ser promissor, embalados por uma série de argumentos pueris, que vão desde supostas qualidades de nosso caráter até a grandeza de nossos recursos naturais. Outra vertente de nossa repulsa ao passado pode ser contemplada em nossa mania de estar sempre reformando a língua - quantas reformas ortográficas já não fizemos nos últimos 80 anos? Estamos sempre querendo expurgar de nossa cultura qualquer traço herdado da civilização do colonizador e afirmar uma brasilidade original, voltada para o futuro. Só conseguimos desorientar cada vez mais quem tenta aprender a escrever.

Odiar o passado é odiar a nós mesmos, pois bem ou mal, feio ou bonito, somos o produto de nossa História. Quem ignora o passado não pode entender o presente, e quem não entende o presente não pode moldar o futuro. Sem museus que nos mostrem a evolução das coisas, não percebemos para onde estamos indo. Sem passado, o futuro se reduz a um burburinho de ecos dos discursos da moda, um eterno presente que só faz repetir o passado que não nos preocupamos em registrar. Ironicamente, só chegaremos ao futuro que almejamos no dia em que nos reconciliarmos com nosso passado.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

FHC e a História

Vale a pena ainda falar de Fernando Henrique Cardoso?

Eu penso que vale. Mesmo que seja para explicar esse fenômeno curioso: por que há tanta volúpia em afirmar que ele foi um personagem desprezível em nossa História?

Eu que frequento muito forum´s de discussão, me impressiono de ver como toda vez que o nome maldito é mencionado, surgem dúzias de comentários raivosos acusando-o de todo tipo de ignomínia, não raro embasados por críticas pouco imaginosas, como afirmar que ele não teria sido o verdadeiro autor do Plano Real. Já li até alguém afirmando que na época de Sarney o país cresceu mais do que com ele...

Mas a simples quantidade de ódio que a sua figura desperta é um indicativo suficiente de que sua importância histórica é maior do que afirmam. Do contrário, para que tanto afã em chutar cachorro morto? Primeiro de tudo, um presidente que obteve uma reeleição não pode ser considerado um aborto histórico como foram um Fernando Collor ou uma Dilma Rousseff. Mas ele fez mais do que isso: para o bem ou para o mal, ele foi um divisor de águas, pôs fim à etapa histórica iniciada com o nacional-estatismo varguista nos anos 30 e esgotada nos anos 80, e iniciou nova etapa após o sucesso do Plano Real. Sem Fernando Henrique, não teria havido Lula. Ao menos não o Lula que conhecemos. Tivesse Lula tido o azar de vencer qualquer eleição entre 1989 e 1998, só teria duas opções: fazer mais ou menos o mesmo que FHC fez, e assim ficar totalmente desmoralizado junto às bases, ou conduzir o país à hiperinflação, repetindo o roteiro de Alan Garcia no Peru. No poder, o PT herdou uma macroeconomia funcionando, a tal herança maldita, na verdade bendita. Por isso eu penso que o motivo de ser FHC tão malquerido entre os petistas tem raízes psicológicas: é doloroso reconhecer que devem tanto a ele. Até sua reeleição, Lula deveu a FHC, pois a emenda foi aprovada em sua gestão.

Mas o ódio é tanto, que eu penso que há alguma coisa a mais que mero recalque. E uma pista vem daquela afirmação que fiz a pouco: alguém teve o desplante de dizer que Sarney foi melhor que FHC. Não, não é uma sandice. Sarney surgiu nos estertores do nacional-estatismo, e por isso foi capaz de radicalizar até o limite este modelo já moribundo. Congelamento de preços, moratória da dívida externa, reserva de mercado para a indústria nacional, Sarney fez tudo aquilo que os petistas sempre sonharam. Com o Plano Real, FHC pôs fim a isso tudo. Em outras palavras, FHC pôs fim ao estado de exceção na economia, pois o estado de exceção na política já havia terminado desde o fim do governo dos generais. E justamente por isso ele é tão odiado hoje. Eu acompanhei com atenção, e não sem surpresa, a massiva conversão dos militantes petistas ao nacional-estatismo varguista, eles que antes eram socialistas utópicos "contra tudo isso que está aí". Esse pessoal sente saudades dos tempos em que a economia podia ser governada discricionariamente, produzindo-se inflação para cobrir os déficits do governo mediante o confisco do poder aquisitivo da população, anulando a lei da oferta e da procura com o congelamento de preços, diminuindo o valor dos salários mediante reajustes inferiores à inflação, anulando a livre concorrência com o protecionismo, dando calote nos credores. Tal como a ditadura política, a ditadura econômica era justificada por ser "necessária ao desenvolvimento". Nesse ponto Vargas e os generais concordavam. E aparentemente, os petistas recém-convertidos ao varguismo também concordam.

Obrigando a economia a seguir as leis econômicas do sistema capitalista, tal como a política é obrigada a seguir as leis da democracia representativa, FHC obrigou o país a entrar no capitalismo. Não há motivo mais pertinente para ser odiado por quem se opõe ao capitalismo. Por muito que seu legado seja aproveitável por aqueles que vieram em seguida, FHC nunca será perdoado por isso. A nuvem negra de difamação por muito tempo ainda vai impedir que a exata dimensão histórica de Fernando Henrique Cardoso seja determinada.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Afinal, em que ponto a nossa cultura se trumbicou?

É visível o baixo nível dos atuais pré-candidatos à presidência, bem como a falta de renovação dessas lideranças. A sensação é de desalento. O país parece incapaz de produzir gente de valor, o que aponta para uma certa constatação que está bem na cara, mas que poucos se atrevem a enunciar: o baixo nível geral de nossos políticos é apenas um sintoma da morte de nossa cultura.
Mas afinal, uma cultura pode morrer?

Pode, sim. Mas também pode renascer, pois o país não morre. No momento atual, contudo, quem tem noção de cultura e de tempo fica com a nítida impressão de que nós já fomos bem melhores. Não todos, evidentemente. Não é fácil captar o momento em que a cultura fenece, pois como já foi dito por alguém, a inteligência, ao contrário de dinheiro e saúde, quanto mais a perdemos menos damos por sua falta, pois sem ela ficamos incapazes de avaliar nossa própria mediocridade. No fim achamos tudo normal. Mas certos aspectos da cultura são mais impactantes e atingem nosso emocional, e esses são mais fáceis de reparar. Qualquer um que visite um vídeo de uma canção antiga ou nem tão velha assim, encontrará nos comentários um rosário de lamentações, frisando que não se fazem mais músicas assim, e como decaímos após a invasão do funk e suas vulgaridades. Nossa música está morrendo! Mas é apenas um sintoma da morte de nossa cultura.

Isso é um contrassenso. Costumávamos achar que nossas limitações culturais se deviam à deficiência de nossa educação, e bem ou mal, todas as estatísticas mostram que o índice de alfabetização aumenta sem cessar, e os brasileiros passam cada vez mais tempo na escola. Mas isso é um julgamento de quantidade. Em termos de qualidade, estamos caindo desde muito tempo. Quem só viveu essa geração não sabe, quem é de outra geração mas não olha à sua volta também não sabe, mas quem conhece e acompanha a História sabe que já tivemos políticos bem melhores, bem como intelectuais, escritores e músicos bem superiores. Não há dúvida: nossa cultura está se acabando. E ante à consternação, surge a pergunta.

Afinal, em que ponto a nossa cultura se trumbicou?

Uma teoria muito conhecida afirma que foi tudo resultado de um desmonte deliberado. Produto da estratégia gramscista, urdida pelo intelectual italiano Antonio Gramsci, que preconizava a tomada do poder pela via da cultura. Segundo pregava, os intelectuais militantes deveriam ocupar todos os espaços difusores de cultura, e substituir os conteúdos ali existentes pela ideologia revolucionária. Não vou dizer nem sim nem não, há muitas páginas por aí tratando do assunto e denunciando o gramscismo como a causa de nosso declínio cultural. Mas procurando encontrar o nervo mais profundo que dá sensibilidade à criação, penso é a própria noção do superior e do inferior. Do bem feito e do mal feito, do bonito e do feio, do elaborado e do tosco.

É fora de questão, portanto, que a excelência da criação cultural deriva de uma apurada sensibilidade do superior. Não é crível que essa excelência seja atingida, ou mesmo procurada, em um ambiente onde o superior é odiado, a elite é desprezada e as massas são enaltecidas, a qualidade é preterida pela quantidade, a desigualdade é anátema e tudo se procura nivelar por baixo. Por influência ou não do pensador italiano, em algum momento esse ambiente se estabeleceu aqui. Por esse motivo os comentaristas do youtube lamentam que nossa música tenha sido devastado pelo funk das periferias: não se pode dizer que funk é um horror, pois quem o fizer estará sendo elitista, racista ou qualquer coisa politicamente incorreta. O que vale não é a qualidade, mas a suposta autenticidade popular. E pouco importa que o funk seja uma importação dos guetos norte-americanos, sem raízes em nossa cultura popular.

Os educadores afirmam com toda a seriedade que não se deve corrigir o aluno que fala errado, tipo "nóis pega o peixe", pois segundo afirmam, ele apenas tem um modo diferente de falar. Corrigi-lo, portanto, seria um gesto de prepotência de quem quer impor a norma culta usada pela elite. Até faz um certo sentido. Historicamente, proibir o uso do idioma tem sido um método de oprimir minorias e forçar sua assimilação. Mas se esquece que a fala errada dos ignorantes não constitui um dialeto completo. Um dialeto não obedece à norma culta, mas é coerente com sua própria norma. Entretanto, a fala errada que se escuta por aí nada mais é do que um conjunto de variações em torno de uma norma mal aprendida, que não obedecem a nenhuma regra identificável. Permitir que o aluno se expresse sem obedecer regra gramatical alguma só causará o empobrecimento da comunicação, com a perda de clareza, a multiplicação das ambiguidades, tornando mais difícil a expressão de qualquer conteúdo mais complexo, coisa vital para quem só conta com o estudo para melhorar de vida.

Há quem responsabilize o próprio patrono de nossa educação pela falência da educação no Brasil. Refiro-me a Paulo Freire, autor de um método acusado de ser mero pretexto para doutrinação de estudantes. Eu faço umas ressalvas. Não considero Paulo Freire um educador, mas um filósofo marxista, portanto seu suposto método não pode ser responsabilizado. Mas seu arrazoado fornece uma justificativa ideal para minimizar as deficiências da educação em geral, pois segundo afirma, o importante não é ministrar conhecimentos, mas "formar cidadãos", premissa vaga que cada um pode interpretar como quiser. Na verdade, nem haveria o que ensinar. Segundo Freire, é o professor que aprende com o aluno, e portanto seria uma prepotência de sua parte achar que o aluno tem que aprender com ele. Ora, como a cultura pode fluir daquele que a tem para aqueles que não a têm, se ambos interlocutores são colocados no mesmo patamar?

As teorias são várias, mas a constatação, no presente, é uma só: se os intelectuais marxistas tinham de fato um plano para chegar ao poder pela estratégia gramscista, esse plano falhou redondamente. A destruição da cultura não os levou ao poder: ao contrário, o que temos agora é um governo conservador e uma crescente onda conservadora difusa pela sociedade, capitaneada sobretudo pelos pastores evangélicos. É um conservantismo tão tosco quanto a doutrinação esquerdista que o precedeu, como só poderia ocorrer em um ambiente onde a cultura tornou-se rasa. O que foi que deu errado? Como um plano tão elaborado pôde fracassar tão miseravelmente?

Essa eu acredito ter a resposta. O ponto de falha foi precisamente o ponto que liga a cultura ao comportamento. Consoante com a estratégia de substituir o establishment cultural da elite pela suposta autenticidade popular, primeiro os intelectuais, depois os políticos de esquerda foram se aproximando cada vez mais de elementos marginais da sociedade. E no momento, não há nada que o povo tema mais do que a criminalidade desenfreada das grandes cidades. No poder, a esquerda recusou-se a reprimir os criminosos, receando incomodar aqueles a quem considerava seu público. Foi um erro enorme. A parcela mais pobre da população, longe de se identificar com os marginais, é a mais atingida por eles, posto que divide os mesmos espaços nas favelas e periferias. É dos pobres que tem vindo o maior clamor por dureza no combate ao crime. Acossada pela violência e pela imoralidade, vendo seus valores enxovalhados, o povão correu em massa para os pastores das igrejas pentecostais que brotam como cogumelos nas periferias.

O passo seguinte desses pastores foi entrar para a política, onde se compõem com outra estirpe em ascensão, os fascistas rastaqueras ou qualquer um que se proponha a baixar o pau na bandidagem, e desta forma obtém o apoio do eleitorado que tem como prioridade máxima o retorno da segurança e dos bons costumes. Assim formou-se a atual onda conservadora. Não sei até onde essa onda vai nos levar, mas tenho a esperança que será apenas o refluxo da onda de transgressão que a precedeu. Quanto à ressurreição de nossa cultura, para essa não coloco prazo. Apenas constato que uma vez vilipendiada a cultura superior, tocamos um fundo do poço constituído por aqueles valores mais elementares de todos, aqueles valores atemporais da cultura do povão, que não pôde ser destruída pelos intelectuais militantes, pois o povão não escuta os intelectuais, militantes ou não. Atingido o fundo do poço, vem o penoso esforço de subir novamente à tona. A primeira coisa a ser feita é restabelecer a noção do que é valoroso e do que não tem valor. Espero antes de morrer, ao menos poder escutar músicas boas que não sejam aquelas antigas.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Responsabilidade fiscal: a falsa comparação com um orçamento doméstico

A discussão volta e meia retorna, como desta feita no Jornal GGN. Ao defender a responsabilidade fiscal, surgem comentaristas a contra-argumentar que não procede a comparação entre o orçamento de uma nação e o orçamento doméstico ou de uma pequena empresa, pois ambos são de natureza muito distinta.

"A lógica do Estado não funciona como a lógica privada de uma família. As variáveis fiscais (arrecadação, gasto e dívida) são diferentes e essa comparação só leva a políticas danosas para a sociedade. Fazer dívida nem sempre é ruim"


Assim, a comparação entre o orçamento de uma nação com as contas de um pai de família que só quer manter a casa em ordem assume um caráter de moralismo simplório. Quem defende essa linha normalmente são comentaristas que sentem saudades dos tempos em que não havia controle fiscal e a inflação podia, supostamente, ser usada para induzir ao desenvolvimento do país. Isso é uma falácia, sem dúvida. Mas a um ponto eles têm razão: o orçamento de uma nação e o orçamento doméstico são de fato coisas distintas, e esse ponto deve ser esclarecido, mesmo que seja para não desacreditar a defesa da responsabilidade fiscal.

A diferença básica entre um e outro é que no orçamento doméstico, a entrada é fixa (um ordenado de valor conhecido) e no orçamento da nação, a entrada é variável (a arrecadação depende do estado da economia, o qual depende de vários fatores). Assim, sabendo-se que a entrada será de certo valor, faz sentido pré-fixar um teto para os gastos, assim como faz sentido uma maior flexibilidade para o caso em que a entrada não é fixa, e aliás depende de investimentos feitos pelo próprio gestor do orçamento (o governo). Nesse caso, procede mais a comparação com uma pequena empresa, e todos sabem que pequenos empresários tomam empréstimos e fazem "pedaladas" em seu próprio orçamento à vontade.

Mas em todos os demais aspectos, a analogia é perfeita. Acreditar que para aumentar a arrecadação basta injetar mais dinheiro para fomentar a atividade econômica, é acreditar que o retorno de tais investimentos será tão rápido e vultoso que permitirá cobrir o rombo e repetir a operação, em um ciclo sem fim. A mesma lógica do devedor costumaz, que acredita que o retorno do que investiu com o dinheiro emprestado será tão rápido que permitirá pagar os juros e fazer novo empréstimo, em um ciclo sem fim. É claro que no mundo real as coisas não funcionam desta maneira, pois se assim fossem, a economia seria algo mágico e maravilhoso, e o progresso estaria ao alcance de uma simples canetada. Todos sabem que existiram e ainda existem empresários destituídos de capital que enriqueceram após contrair um empréstimo e aplicarem-no em algum negócio que deu certo. Mas não há nenhum caso de empresário que tenha permanecido próspero a vida inteira à custa somente de dinheiro emprestado. O mesmo se aplica às nações.

O ataque à responsabilidade fiscal vem de duas extremidades, uma maliciosa e outra ingênua. A maliciosa é aquela que aprecia o recurso eficaz de cobrir os rombos das contas do governo mediante o confisco do poder aquisitivo da população, assim como um imposto invisível que não precisa da aprovação do parlamento. Por este motivo, a inflação foi por anos componente essencial do modelo desenvolvimentista vigente desde Vargas até os militares, passando por JK. Obviamente, quem defende esse método assume-se como parte da máquina do Estado ou beneficiário direto desta. Para os que estão de fora, o pretexto é que assim se produz o desenvolvimento e se geram empregos. Mas assim como o endividamento, produzir inflação só tem o efeito de rolar uma conta para ser paga mais adiante. Durante décadas o truque pareceu funcionar, pois o país apresentou altos índices de crescimento em determinados períodos, como nos anos JK e no "milagre" dos militares. Mas os ganhos do trabalhador com a oferta abundante de empregos eram rapidamente anulados pelo surto inflacionário que vinha em seguida. Desta forma o país experimentou uma combinação de alto crescimento com pouca ou nenhuma inclusão social, tornando-se uma das sociedades mais desiguais do planeta. Nos anos 80 a conta chegou e a mágica acabou.

A extremidade ingênua é daqueles que acreditam que dinheiro nasce em árvores. Tem muita gente...

segunda-feira, 30 de julho de 2018

As eleições: possíveis cenários

Uma das principais vantagens de se pesquisar História é ter embasamento para prever o futuro. Se a reconstituição de fatos passados é sempre imperfeita devido à impossibilidade de ter em mãos todos os documentos, a previsão de fatos futuros será sempre imperfeita devido à impossibilidade de se observar todos os fatores intervenientes. Mas saber o passado dá boas dicas.

Em minha última postagem eu comentei que a História não termina, mas pode repetir-se em um ciclo sem fim, como um rolo de filme que sempre é recolocado. A impressão que tenho é que isso está acontecendo agora. A única coisa que me parece certa, aliás duas coisas, é que o bipartidarismo PT / PSDB esboçado desde o Plano Real abortou, e que a fase histórica iniciada pela constituição de 1988 chegou ao fim. O que virá em seguida?

O PT, apeado do poder pelo impedimento de Dilma, apegou-se à narrativa do golpe. Segundo repetem sem para, teria havido um golpe em 2016, tal como houve um golpe em 1964, portanto o regime constitucional atual não é mais válido, o presidente em exercício não é legítimo, nem tampouco o será o próximo presidente, posto que uma eleição sem Lula é uma fraude. Quando se contesta as regras do jogo, a única alternativa é virar a mesa por meio de uma revolução. Mas o PT tem força para fazer uma revolução? Ninguém concordará com essa assertiva no momento atual. É verdade que, como dizem, a revolução não avisa quando vai acontecer, e há muitos exemplos de revoluções que eclodiram em momentos inesperados. Mas também há muitos exemplos de revoluções que não aconteceram desafiando as previsões. Ao pactuar com os demais partidos para exercer o governo em 2002, o PT descaracterizou-se. Após o escândalo do mensalão, caíram vários líderes históricos e o PT ficou dependendo exclusivamente do carisma de Lula, que funcionou bem por bastante tempo. Mas agora Lula está preso, e mesmo se não estivesse, já está no fim de sua vida pública e mesmo no fim da vida propriamente dita, e o PT não formou nenhum outro líder de estatura minimamente semelhante.

O PSDB perdeu o bonde da História. Após o sucesso do Plano Real, teve a chance de ocupar no espaço político a posição de defensor do liberalismo econômico, mas com a má repercussão do anúncio de Fernando Henrique de que pretendia acabar com a Era Vargas, recuou. Receando o repúdio do eleitorado, repudiou seu legado e tentou retornar a suas origens social-democratas, mas este espaço já estava ocupado pelo PT com muito mais competência. Hoje não tem a oferecer senão os mesmos candidatos que já foram derrotados em eleições passadas, e que provavelmente serão derrotados de novo.

O PMDB está no poder na pessoa do presidente Michel Temer, mas é como se não estivesse. Medíocre e sem respaldo popular, Temer nunca deixou de ser um interino. O país só voltará a ter um presidente efetivo, seja ele qual for, após a próxima eleição. O PMDB há 20 anos acomodou-se aos conchavos, ao loteamento de cargos, e não mais ambicionou a liderança. Natural que não tenha mais líderes com um mínimo de carisma, nem candidatos com um mínimo de apelo ao eleitorado.

Estando os grandes partidos nacionais em crise, o espaço fica aberto para os partidos nanicos e seus conhecidos aventureiros. A partir daí podem ser considerados um certo número de cenários possíveis após a eleição presidencial deste ano.

Primeiro, o PT vence, com Lula, ou com alguém apoiado por Lula. Resta saber se irá se manter coerente à narrativa do golpe que tem propalado até agora, não reconhecendo a validade da ordem constitucional supostamente subvertida pela ação golpista, e partindo para uma reforma política revolucionária, destituindo todos os agentes da mídia, da polícia e do judiciário supostamente responsáveis pelo golpe. Como certamente não obterá ampla maioria no legislativo, uma ação assim só será exequível se houver grande agitação popular comparável àquela que precedeu a subida de Hugo Chávez ao poder na Venezuela. Altamente improvável. A outra alternativa seria o PT esquecer a narrativa do golpe, aceitar as regras atuais e compor uma nova coalizão com as demais forças políticas. Mas o cenário atual é bem menos otimista que o de 2002. Enfraquecido, o PT permaneceria refém dos partidos de centro sem projeto. Ou ainda, o PT perde, desiste da política parlamentar e retorna a suas origens militantes, aos sindicatos e movimentos sociais, ocupando papel que hoje é exercido pelo PSol.

Segundo, vence outro partido de esquerda lançando um candidato já conhecido. Nenhum deles tem o carisma de Lula. Carecendo de apoio popular ou parlamentar, o destino será permanecer refém daquela massa de políticos sem ideologia nem projetos, e o país continuará no imobilismo atual. O mesmo destino terá um eventual candidato do PSDB ou do PMDB que sair vencedor: sua escolha será vista pelo eleitorado como um mal menor, a fim de evitar a vitória de um candidato radical. Penso que mesmo um candidato “alternativo”, tipo Marina Lima, não terá destino diferente: sem luz própria, dependerá da maioria parlamentar.

Terceiro, vence Jair Bolsonaro. Este tem luz própria e empolga uma fatia do eleitorado, mas seu discurso até agora tem sido populista e pouco razoável. Aí se abrem duas hipóteses. Bolsonaro pode se manter fiel às promessas de campanha e partir para o choque contra as esquerdas. Mas as esquerdas, no momento atual, não têm sua cidadela na política, mas nos movimentos sociais, notadamente aqueles que praticam o chamado marxismo cultural, defendendo minorias desajustadas. Não há mais subversivos nem guerrilheiros. O enfrentamento ficará mais no terreno retórico dos factóides, e contribuirá para desgastar Bolsonaro, já que aquilo que o eleitorado realmente almeja é a volta do crescimento econômico. Ao termo, ou Bolsonaro acabará impedido, repetindo o roteiro de Collor, ou será reduzido a uma caricatura de Donald Trump. A outra hipótese será Bolsonaro abandonar o discurso extremista e tentar fazer um governo pragmático, dedicado a recuperar a economia e trazer a volta do crescimento. Mas Bolsonaro até agora não demonstrou grande interesse pela economia. Resta saber se obterá sucesso nessa área, ou se fará um governo de austeridade feijão-com-arroz, que suscitará saudades dos bons anos de Lula e abrirá o caminho para um futuro governo de esquerda, repetindo o roteiro do segundo governo de Fernando Henrique.

Quem viver, verá.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

O Fim da História

Certos livros não são devidamente apreciados no presente justamente porque só podem ser compreendidos à luz do distanciamento no tempo. Recentemente comentei o caso de O Império e os Novos Bárbaros, de Jean-Christophe Rufin, publicado há quase 30 anos e hoje bastante esquecido, mas tremendamente atual. Um caso parecido é o de O Fim da História e o Último Homem, de Francis Fukuyama, que foi lançado na mesma época.

Muitos devem recordar-se. Fez um enorme sucesso e vendeu milhões de cópias, deixando rico seu autor, mas hoje em dia ninguém mais o leva a sério. As ideias defendidas eram bombásticas. Então a História vai terminar? Nada mais vai acontecer? Se fosse assim, eu estaria aqui perdendo tempo escrevendo um blog sobre História, já que presumivelmente tudo o que podia ser escrito já foi escrito. É claro que a História não vai acabar, isso é bobagem. Entretanto, muitos não perceberam bem o propósito do autor. Tratou-se de uma provocação, um livro cuja importância reside menos em seu conteúdo e mais nas controvérsias que suscita. Há muitos exemplos de livro-provocação, sobretudo no século 19, cujo texto pouca gente hoje conhece, mas as discursões que despertaram continuam bem vivas até hoje, algumas até mais calorosas do que na época em que surgiram. Não é fácil lançar um livro-provocação, pois o efeito desejado só acontece se lançado no momento histórico preciso, atiçando aquelas ideias que estão esvoaçando no ar, mas que ainda não foram devidamente esquematizadas por comentaristas.

O Último Homem foi lançado no momento em que caía o Muro de Berlim e desmoronava a União Soviética, pondo fim à etapa histórica conhecida como a Guerra Fria e deixando órfãos milhares e estudiosos, ativistas ou meros comentaristas que haviam feito suas carreiras nas ideologias gestadas na Guerra Fria. Esse pessoal, de um momento para o outro, viu que seu mundo deixara de existir, e Fukuyama espicaçou-os afirmando que a vitória do sistema capitalista e do regime liberal era definitiva, e nada mais iria acontecer. Não por acaso ele tornou-se a figura mais odiada nos meios intelectuais marxistas. A angústia daquele pessoal era bem visível na época, mas no fim das contas, mostrou-se injustificada. A História não acabou. Tanto que menos de uma década após a publicação, iniciou-se um longo ciclo de governos esquerdistas na América Latina. Esse ciclo teve fim na última década, mas ninguém afirma que a vitória dos regimes conservadores é definitiva, e que novo ciclo socialista não pode iniciar-se, como aliás parece que já está acontecendo. As rodas da História continuam a girar, como sempre giraram. Fukuyama está desmoralizado?

Nem tanto. Como provocação, o Fim da História cumpriu seu papel. Mas Francis Fukuyama não é um mero autor de panfletos ou escritor de best-sellers, ele é um conceituado professor universitário autor de ensaios bem cuidados, e de livros onde suas análises são expressas de forma consistente. Eu tive a satisfação de ler mais dois, Ficando para Trás e Confiança, este último adquirido no sebo. Não são leitura fácil como o Fim da História, que é um apanhado de ideias bombásticas; são textos áridos, onde os argumentos prós e contras são esmiuçados até o limite da coerência, como se espera de um bom texto científico, mas por isso mesmo são muito menos conhecidos e venderam bem menos que a obra máxima do autor.

Ficando para Trás compara a evolução da América do Norte com a da América do Sul, e procura explicar a razão de nosso atraso endêmico. Confiança analisa minuciosamente um tema sempre polêmico: a influência da cultura dos povos no sucesso econômico dos países. É particularmente notável a comparação entre a bem-sucedida Coréia do Sul e a malsucedida América do Sul. Portanto, são textos úteis para quem quer entender porque estamos aonde estamos agora. Onde exatamente? Em algum ponto entre o passado e o presente. A História, como se viu, não parou. Mas parece repetir-se como um filme que é reprisado vezes sem conta. No recente ciclo populista não se viu nenhuma outra proposta além da reciclagem do nacional-estatismo esgotado no século passado, cuja bonança só durou enquanto estiveram altos os preços das commodities. Agora, um candidato quer relançar de forma caricata o regime dos generais, e os demais sequer sabem dizer a que vieram. Se o Brasil, no passado, não era mais rico do que hoje, ao menos era mais interessante. Havia futuro. Podiam ser ilusões algo ingênuas, como o 50 anos em 5 de Kubitschek, o Novo Mundo Socialista dos guerrilheiros ou o Milagre dos generais, mas a esperança que despertavam refletia-se na área cultural. Hoje não há mais nada disso. Se a História não acaba, alguns parecem que ficaram fora da História, revendo sempre o mesmo filme enquanto o mundo lá fora avança sem nós.

Quem quiser entender melhor, não recomendo a leitura de O Fim da História, e sim de Ficando para Trás e Confiança. Mas advirto desde já que não será leitura fácil.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Homenagem a Christiane Schier

Recentemente escrevi uma postagem comentando a geral incapacidade de todos os pré-candidatos de fazer propostas consistentes para combater o crime. Refletindo a respeito, concluí que essa incapacidade se deve a determinadas ideias prontas, amplamente disseminadas por nossa sociedade, que invariavelmente desarmam qualquer proposta concreta de combate ao crime. Chamei essas ideias de pensamentos paralisantes.

Escrevi um artigo enumerando cada um desses pensamentos paralisantes, e ali explico quem é Christiane Schier e porque a homenageio.

domingo, 24 de junho de 2018

Bárbaros nas fronteiras

Um livro lançado em 1991, e bastante esquecido hoje em dia, chamava-se O Império e os Novos Bárbaros, de autoria do francês Jean-Christophe Rufin. Lançava a tese de que o confronto Leste-Oeste, paradigmático dos anos da guerra fria que acabava de ser encerrada com a queda do Muro de Berlim, seria sucedido por um novo confronto, este Norte-Sul, opondo os países ricos e os pobres. Foi objeto de alguma discussão naquele momento em que todos os comentaristas se sentiam de alguma maneira desorientados após o fim da guerra fria, que tanto lhes dera confortáveis certezas, e ansiosos para saber o que viria em seguida - foi este também o momento em que Francis Fukuyama lançou seu polêmico O Fim da História. Mas passados quase 30 anos, pouco se fala a respeito.

E no entanto, os acontecimentos têm mostrado que a obra de Rufin continua mais atual do que nunca. A toda hora lemos notícias de levas de refugiados forçando as fronteiras. Mas que fronteiras são essas, exatamente? Várias, sem dúvida. Mas cumpre entender, antes de tudo, o conceito que define essas fronteiras. É quando se deve voltar à leitura de O Império e os Novos Bárbaros. O autor traçou um paralelo entre o momento histórico atual e a situação dois mil anos atrás, quando do estabelecimento dos limites do Império Romano. A partir daquele momento, tendo cessado o expansionismo de Roma, o esforço passou a ser no sentido de delimitar e defender as fronteiras (em latim, limes) do império. É quando o conceito de fronteira deixa de ser apenas uma linha no mapa ou um acampamento fortificado, e ganha um significado ideológico, marcando a divisão entre o espaço civilizado e o espaço bárbaro. Manter os bárbaros fora é condição crucial para preservar a civilização.

A essa altura, muitos por certo vão considerar a comparação um tanto dramática e forçada. Afinal, nesses dias de globalização, poucos conceitos estão mais desmoralizados do que as fronteiras entre países. Todos os dias essas fronteiras são cruzadas por um incessante fluxo de pessoas, mercadorias, capitais e ideias, sejam viajantes, turistas, imigrantes, pesquisadores, ou meras mensagens e imagens circulando pela internet. A tendência é que esse fluxo se torne cada vez mais intenso. Onde, então, alguém vai afirmar que os países ricos pretendem fechar suas fronteiras e manter os outros fora?

Quem argumenta assim, na verdade, não entendeu o conceito ideológico de fronteira desvendado por Rufin. Não se trata, de modo algum, de uma barreira física. É uma barreira de valores. A vida não tem o mesmo sentido, nem o mesmo valor dentro e fora da fronteira. O que é imoral e proibido fazer dentro da fronteira, é permitido fazer além dela. O que não se pode fazer a um cidadão do império, pode ser feito a quem viva além. Escreveu Rufin, a fronteira resguarda o espaço civilizado ao aparta-lo dos bárbaros, mas pela desigualdade que produz e agrava, ela joga violentamente, um contra o outro, os dois mundos que pretende separar. Termina por conduzir a um confronto violento.

A tese de Rufin é nefasta. Afirma que a globalização assinala para o futuro uma situação explosiva, posto que dá origem tanto à ideologia da fronteira quanto ao afã de forçar a fronteira. Afinal, como é sabido, o Império Romano acabou invadido pelos bárbaros. Mas contemplando o quadro atual à luz do conhecimento da História, o que podemos afirmar, sem apelar para a imaginação?

É fato que nunca houve na história recente um número tão grande de refugiados, gente que foge de guerras, de perseguições ou da miséria. Na aparência, a precariedade geral existente no chamado Terceiro Mundo atingiu um nível tal, que produziu um fluxo incontrolável de pessoas em fuga rumo aos países do Primeiro Mundo. Mas é uma falsa impressão. Crises e guerras sempre devastaram o Terceiro Mundo, mas em linhas gerais, a situação de hoje não é pior do que era há 30 ou 50 anos atrás. O que mudou foi o Primeiro Mundo. Ali, a transição demográfica causou uma violenta queda na natalidade, esvaziando os segmentos mais jovens, de onde tradicionalmente são tirados os trabalhadores menos especializados que executam as funções menos desejadas. Alguém, necessariamente, tem que vir de outro lugar para executar essas funções. O resultado tem sido uma crescente confusão entre os conceitos de imigrante e refugiado, que antes eram claramente distintos. A princípio, um imigrante é uma pessoa que deseja estabelecer-se em outro país, e um refugiado é alguém que só deseja fugir. Mas a oferta de trabalhos rejeitados pelos cidadãos locais tem induzido ao projeto do refugiado tornar-se um imigrante, ou mesmo do imigrante apresentar-se como refugiado. Muitos que procuram cruzar as fronteiras dos EUA, inclusive brasileiros, apresentam-se como perseguidos por criminosos comuns ou vítimas de violência domésticas, coisas que deveriam ser simples ocorrências policiais em seus respectivos países.

Não cabe a mim, aqui, julgar as razões dessas pessoas. Mas cabe observar que os acontecimentos têm confirmado as previsões de Rufin. Recentemente, a ideologia da fronteira materializou-se em imagens grotescas de crianças mantidas como prisioneiras em gaiolas na fronteira dos EUA, consequência da política levada a cabo pelo presidente Trump de separar as famílias de estrangeiros apanhados em situação irregular, como forma de dissuadir a imigração ilegal. Isso não me surpreendeu, pois já havia observado que este método já se encontrava em prática desde Obama. Em 2016 eu publiquei um artigo sobre o caso de adolescentes brasileiras que chegaram nos EUA com vistos de turistas e autorização para viajarem desacompanhadas, mas foram levadas para abrigos de refugiados por motivos não especificados. Fiz uma análise cuidadosa caso a caso, e cheguei à conclusão de que não houve coerência nos procedimentos dos funcionários da imigração, e a única explicação que encontrei foi a intenção de criar precedentes que intimidassem candidatos à imigração ilegal. Tampouco para os norte-americanos que conhecem a própria história o caso é surpreendente, como é o caso do jornalista Richard Parker, que escreveu esse artigo lembrando que os EUA já haviam montado campos de concentração para crianças indígenas no final do século 19, sem falar nos campos onde eram aprisionados cidadãos japoneses e alemães durante a segunda guerra, nos quais, ao menos, as crianças não eram separadas dos pais.

Sim, campos de concentração, foi esse o termo que Richard Parker empregou. Também a menina Anna Stéphane, citada no meu artigo, contou para a mãe que o abrigo onde ficou detida lembrava um campo de concentração. A afirmação é e não é procedente. De fato, a comparação com um campo de concentração nazista com suas câmara de gás é um exagero risível. Mas tecnicamente, levando em conta a definição do termo, o lugar onde Anna Stéphane permaneceu era de fato um campo de concentração, posto que não era um estabelecimento prisional onde os detentos estivessem sob a proteção da lei, mas simplesmente um local onde as meninas estrangeiras eram mantidas por prazo indefinido. Por este motivo o endereço do local era secreto (com base em observações dos arredores, Anna Stéphane depois conseguiu identificar o prédio em uma área residencial de Chicago). Por este motivo, também, as adolescentes ali puderam ser submetidas a injeções de vacinas contra a sua vontade, bem como obrigadas a trabalhar, o que é proibido para quem está em prisões. Mas o status de menores estrangeiras mantidas em abrigos não é igual ao de quem se encontra em um estabelecimento prisional, os quais se encontram protegidos pela legislação; os refugiados, tais como os prisioneiros de guerra, não dispõem de nenhuma proteção legal, exceto os acordos firmados na ONU, que ninguém é obrigado a acatar.

A maneira como aquelas quatro adolescentes foram tratadas exemplifica bem a ideologia da fronteira. A impressão que fica é que os EUA não as viam somente como prováveis imigrantes ilegais, mas também como criaturas imundas e pestilentas: todos os seus pertences foram desinfetados, sacos pretos com remédio contra piolhos foram colocados em suas cabeças, além das dez vacinas cujo teor não foi informado. É bastante conhecida, e até folclórica, a ignorância que o americano médio tem a respeito de países estrangeiros, mesmo aqueles que tiveram uma educação formal completa. Aparentemente o assunto não os interessa, ou não é considerado importante. Com este ponto de partida, não é difícil que o americano médio passe a ver todo o resto do mundo além de suas fronteiras como uma terra arrasada e povoada de refugiados doentes e piolhentos.

Assim nasce a ideologia da fronteira.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Soluções para a criminalidade, quais?

Uma antiga piada encenada por um comediante alemão mostrava uma rua escura com um homem procurando qualquer coisa junto ao foco de luz de um poste. Um guarda se aproxima e pergunta o que o homem perdeu.

- A chave de casa - responde.

Solícito, o guarda oferece-se para ajudar, e pergunta onde exatamente o homem perdeu a chave.

- Foi aqui junto ao poste?

- Não - responde o homem - Foi ali naquele canto.

Surpreso, o guarda pergunta por que então o sujeito não está procurando a chave no lugar onde a perdeu. Também surpreso, o homem responde:

- Como eu posso? Não vê que ali está muito escuro?

Este curioso diálogo me lembra muito as eternas discussões em torno da solução apropriada para o problema da criminalidade no Brasil, que este ano já atingiu a marca de 30 homicídios por cem mil habitantes. Aproximando-se as eleições a UOL fez um oportuno artigo enumerando as propostas de cada um dos pré-candidatos. É bastante emblemático, e dá aquela indefectível sensação de mais do mesmo. As sugestões variam de investir na formação e no aparelhamento das polícias, sem especificar de onde virão os recursos, a vigiar melhor as fronteiras, passando por reformas puramente administrativas como unificar as polícias e centralizar as secretarias de segurança, vagueiam por platitudes como implementar "políticas sociais", melhorar a educação e a distribuição de renda, até chegar a propostas polêmicas e radicais como liberar as armas, as drogas e criar presídios em ilhas ou navios. Ou endurecer a legislação penal.

Tentarei analisar uma a uma. A vigilância das fronteiras é citada por Álvaro Dias (Podemos), Ciro Gomes (PDT), Goulart Filho (PPL) e Manuela D´Ávila (PCdoB). Parece uma boa ideia. Mas nossas fronteiras são imensas e atravessam regiões quase desabitadas. Se nem mesmo os EUA, que já construíram muros, conseguem controlar o que passa por suas fronteiras, como conseguiremos nós? Esta me parece uma sugestão de alguém que não deseja de fato resolver o problema.

Investir em educação é sugerido por Cabo Daciolo (Patriota), Goulart Filho (PPL) e Eymael (PSDC). O candidato do Patriota lembra que no tempo dele, os jovens aprendiam lições de civismo na escola e no serviço militar. A meu ver, a educação como antídoto ao crime assenta-se em paradigma já anacrônico: que o jovem entra para o crime porque não teve escola. Isso podia ser verdade 80 anos atrás, quando muitos jovens moravam na roça, longe de qualquer escola, cresciam analfabetos, não encontravam emprego e viravam ladrões de galinha. O típico delinquente de hoje frequentou a escola, mas abandonou-a por decisão consciente ao constatar que o crime rende mais e oferece razoável certeza de impunidade. Ou pior, nem abandonam a escola, pois têm ali um território dominado onde podem ameaçar os professores e vender drogas. O que urge fazer agora não é colocar marginais na escola, mas tirá-los de lá, para que cessem de ameaçar e corromper seus colegas.

Outros propõem soluções puramente administrativas, como criar um comando unificado para a segurança. Mas são recorrentes as sugestões de desmilitarizar a polícia. A meu ver, essa ideia tem um claro viés ideológico, ecoando a inimizade entre as esquerdas e as forças armadas. Em outro contexto, poderia ser estudada, mas não vejo como uma polícia desmilitarizada pode enfrentar bandos que estão armados com armas militares e inclusive reproduzem uma organização militar, chamando seus asseclas de soldados. Ao final, não haveria outra solução senão chamar o próprio exército para combater os bandidos, voltando assim os militares a ter um protagonismo que não tinham desde a redemocratização, e mais, com o aplauso de uma população cansada do crime e da polícia inoperante.

Os candidatos de esquerda falam vagamente de "políticas sociais", "diminuir a desigualdade", "dar oportunidades". É o vício da abordagem política, com o cacoete de dar uma leitura de luta de classes ao fenômeno da criminalidade. O banditismo seria uma manifestação do descontentamento da população com as injustiças sociais, segundo creem. O problema é que os bandidos são capitalistas...

Ao final, temos aquelas soluções radicais ou simplesmente exóticas, como armar os cidadãos ou descriminalizar as drogas. São propostas bombásticas que servem para dar calor à discussão, mas prontamente descartadas se examinadas com um mínimo de bom senso. Jair Bolsonaro (PSL) propõe liberar o porte de armas. Parece querer dizer que cabe ao cidadão prender seu assaltante. Manuela D´Ávila (PCdoB) e Vera Lúcia (PSTU) propõem a liberação das drogas. O pressuposto é que, privados de seu negócio, os atuais traficantes de drogas das favelas ficarão inativos. Se fosse assim, a máfia norte-americana teria deixado de existir no dia seguinte à revogação da Lei Seca. Como se sabe, ela partiu para outros negócios.

De modo geral, os pré-candidatos procuram soluções baratas e mágicas, ou dão a impressão de querer passar por cima da questão. A meu ver, o crime não tem uma solução cartesiana. Não é um problema que possa ser equacionado e solucionado, pode apenas ser minorado. Isso porque a crime não tem uma forma definida, não é um organismo com cabeça e corpo, do qual basta cortar a cabeça, mas assemelha-se mais a uma infecção de agentes que mudam de forma e se reorganizam de mil maneiras diferentes após cada golpe. Por conseguinte, o crime não pode ser combatido pelo topo, mas apenas pela base. Não adianta prender um grande atacadista de drogas, pois os bandos usam outras rotas, ou outro atacadista ocupa seu lugar. É preciso ir aonde está a base material e operacional do tráfico, a favela, e ali fechar as bocas, apreender seus estoques e seus arsenais. Não adianta prender o chefe da quadrilha, pois o resto do bando entra para outra quadrilha ou escolhe um novo chefe. É preciso prender bandido a bandido. Por este motivo, estou convicto de que a única coisa que se pode fazer é endurecer a legislação penal, aumentando a população carcerária. Mais bandidos presos = menos bandidos nas ruas.

Quantos pré-candidatos propõem o endurecimento da legislação penal? Apenas três, Flávio Rocha (PRB), Levy Fidelix (PRTB) e Paulo Rabello de Castro (PSC), todos sem chance de vitória. Entende-se: o primeiro efeito do endurecimento das penas será aumentar a população de nossas prisões já lotadas, e construir cadeia não dá voto. O aprisionamento age como uma esponja que absorve lentamente o líquido, os benefícios não surgirão de imediato nem serão usufruídos por aqueles que iniciaram esta política.

Acredito que ainda teremos que conviver com o crime por muito tempo, até que surja a coragem de procurar a chave ali onde está mais escuro.

domingo, 27 de maio de 2018

O PT deu um tiro no pé?

Os historiadores do futuro terão dificuldades para explicar como um partido que 10 anos atrás tinha o apoio da grande maioria dos brasileiros, alianças com os partidos conservadores e governava em um cenário de paz política e desenvolvimento foi apeado do poder de forma tão inglória e com tão pouca resistência. Onde foi que o PT errou? Com uma queda tão fragorosa diante de inimigos tão pouco poderosos, não dá para evitar a suspeita de que o PT tenha dado um tiro no próprio pé. Vou tentar explicar, recapitulando os acontecimentos desde a primeira eleição de Lula em 2002.

Primeiro, é preciso separar o aparente do verdadeiro. Quem teve o apoio da grande maioria dos brasileiros não foi exatamente o PT, mas o presidente Lula durante seus mandatos. A bancada do PT no congresso sempre foi pequena, o que significa que o PT só poderia governar após hábil exercício de política. O que, conhecendo o Brasil com seus partidos fracos e políticos venais, não é tão difícil assim de fazer. Já dizia FHC, governar o Brasil é "fácil". Lula não teve problemas neste quesito.

Entretanto, o DNA do PT nunca foi a política, mas a revolução. É certo que esta veia revolucionária foi abandonada, mas o que está no DNA sempre aparece. E acredito que desde o início faltou ao PT aquilo que Lula teve de sobra: pragmatismo. Conforme eu já havia comentado no meu artigo O Bipartidarismo Abortado, parecia que o país ia entrar numa etapa de estabilidade política com um bipartidarismo PT e PSDB. Mas o alicerce necessário a todo bipartidarismo são aqueles protocolos mais ou menos ocultos entre os dois partidos que fingem digladiar-se, mas se acertam nos bastidores. O PT, ao contrário, sempre tratou o PSDB como inimigo figadal, esquecida a óbvia afinidade ideológica, e preferiu fazer acordos com os partidos mais conservadores do país, esquecido a óbvia falta de afinidade ideológica. Foi o primeiro erro.

Outra coisa que sempre notei, desde o início dos "bons anos petistas", foi uma arrogância que parecia destoar do idealismo original deste partido. O ponto de inflexão desta mudança foi aquele discurso da intelectual petista Marilena Chauí, eu odeio a classe média, assistido por um Lula constrangido. Tendo conquistado o eleitorado dos estratos sociais mais baixos e numerosos do país, o PT deliberou voltar-se ostensivamente contra a classe média, uma óbvia contradição em um momento em que o presidente Lula jactava-se de haver incluído milhões de cidadãos na classe média. E no entanto, o suporte original do PT em seu surgimento foi a classe média politizada, em uma época em que o eleitorado pobre ainda estava preso a antigos caciques da política. Esse eleitorado pobre é por essência não politizado, e dá o voto a quem esteja no poder, e portanto tenha a chave do cofre. Se o PT contava com o apoio destes quando se viu acossado por seus inimigos, frustrou-se, e as passeatas contra Dilma foram engrossadas por membros de uma classe média que devolveu o desprezo que o PT passou a lhe dedicar.

Em suma, o PT agiu como se tivesse um poder que na verdade não tinha, e isso ficou evidente com Dilma Rousseff. O autoritarismo e os acessos de raiva da presidente no trato com seus assessores incorporaram-se ao folclore, não sei o quanto é verdade, mas é notório que ela não tinha a articulação política de Lula, e na verdade dispensava qualquer articulação, como se não precisasse do apoio de outros para governar. Meu diagnóstico é o seguinte: o DNA revolucionário do PT acabou por prevalecer sobre o pragmatismo de Lula. Isso ficou evidente na pessoa de Dilma Rousseff, cuja formação não foi a de um político, mas a de um revolucionário. Ora, os grupos revolucionários são organizados militarmente, com líderes que comandam e subordinados que obedecem, e uma vez conquistado o poder, o modo de ação de seus próceres não é o de um negociador no parlamento, mas o de um burocrata em seu gabinete. Foi assim que Dilma conduziu-se, com os resultados que conhecemos.

O PT desperdiçou a chance que teve ao agir com destemor ignorando a fragilidade das bases que o sustinham, praticou a corrupção certo de uma impunidade que não se concretizou, hostilizou a classe média certo de que os pobres viriam em seu apoio, o que não aconteceu. Resta saber se no futuro este DNA revolucionário continuará a ser dominante, ou se virá uma nova geração de líderes capazes de agir politicamente.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Ditadura ou Ditabranda?

Pode parecer paradoxal, mas a História recente é mais difícil de escrever do que a História antiga. Isso porque as opiniões não são isentas, já que os interlocutores estão de uma maneira ou outra envolvidos na trama que desejam levantar. A verdadeira dimensão dos fatos históricos só pode ser avaliada com o devido distanciamento no tempo. Diz a sabedoria popular, não se pode observar uma catedral estando dentro dela. Quem quiser realmente saber seu tamanho e suas formas, tem que observa-la de uma conveniente distância.

É o caso do recente período do governo militar, entre 1964 e 1984. Ultimamente vinha se fortalecendo o senso comum de que teria havido uma "ditabranda", posto que a violência do regime não se compara ao que aconteceu nas ditaduras de nossos vizinhos. Mas a recente divulgação de relatórios da CIA reabriu a questão, ao confirmar que os ex-presidentes Geisel e Figueiredo não apenas sabiam das execuções extra-judiciais do período, como as autorizaram explicitamente.

Não foi propriamente uma surpresa. A coletânea de Elio Gaspari sobre a ditadura já vinha trazendo revelações sobre a anuência de Geisel quanto às execuções. Afinal, a ditadura foi assim tão violenta? Devemos rever o conceito estabelecido a respeito de Geisel, tido como o mentor da abertura política que deteve os setores radicais?

Em números, a ditadura brasileira não se compara à de nossos vizinhos. Em vinte anos, duas centenas de mortos e outros tantos de desaparecidos. Na Argentina, em apenas oito anos, quinze mil entre mortos e desaparecidos. Colocados os valores per capita, a discrepância é maior ainda. Mas é preciso chamar a atenção para um aspecto: a diferença foi quantitativa, e não qualitativa. Todos os métodos empregados por nossos vizinhos - tortura, sequestro, desaparecimento - foram empregados aqui. Há quem afirme que essa metodologia foi gestada no Brasil e posteriormente ensinada a nossos vizinhos. Esse tópico é controverso.

Mas independente do julgamento que se faça dessas atrocidades, o essencial é entender o contexto em que elas foram perpetradas, levantar as semelhanças e diferenças entre o que se passou aqui e o que se passou alhures. E o contexto da época era o da guerra fria, que se apresentava como uma luta do mundo livre contra o totalitarismo comunista. Portanto, os regimes militares sul-americanos que se propunham enfrentar a subversão comunista tinham que, de alguma maneira, afirmar que lutavam pela liberdade de seus povos. Por conseguinte, não podiam assumir-se como ditaduras, mas como estados de sítio prolongados que, em tese, visavam restabelecer o regime constitucional após o cumprimento de umas tantas metas, e suas atrocidades tinham que ser escondidas.

Esse foi o traço comum das ditaduras que pululavam por todo o continente nos anos 60 e 70. A diferença entre o grau de violência da ditadura brasileira e a de nosso vizinhos é para ser explicada pelo grau de desafio da subversão. Aqui, a eclosão dos grupos guerrilheiros coincidiu com um período de grande expansão da economia e pleno emprego - o chamado Milagre Brasileiro. Em consequência, houve reduzido apoio popular à guerrilha, e a própria dispersão dos grupos - uma salada de siglas que hoje poucos sabem de cor, cada uma contendo no máximo uma centena de militantes - atesta bem sua debilidade. De fato, a grande maioria dos guerrilheiros brasileiros era constituída por estudantes, intelectuais, padres, sindicalistas, ex-militares, quase não se via trabalhador. Algo totalmente diferente do que ocorreu, por exemplo, na Colômbia, onde as FARC´s foram constituídas em meio ao campesinato, ao invés da classe média urbana, tiveram milhares de combatentes e estão ativas até hoje. A experiência guerrilheira no Brasil foi, em muitos casos, caricata. A maior delas - a guerrilha do Araguaia, do PCdoB - conseguiu produzir apenas duas baixas no exército brasileiro. Mas considerados os métodos empregados, resta pouca dúvida de que, se a subversão fosse mais tenaz, teria havido o mesmo número de mortes e desaparecimentos que ocorreram em nossos vizinhos.

O regime militar brasileiro teve outras peculiaridades. Curiosamente, a violência máxima ocorreu sob a presidência de Garrastazu Médici, que não se gabava da violência, mas das obras. As imagens do período estão invariavelmente ligadas às pontes, às estradas e à propaganda ufanista que fez o país viver um período de euforia cujo ápice foi o tricampeonato mundial. Data desta época a nefasta noção de que a ditadura, mais do que uma necessidade para enfrentar a subversão, seria também essencial para fomentar o desenvolvimento do país, e a democracia, se tanto, seria um luxo a que o Brasil poderia permitir-se após atingir um patamar de desenvolvimento que garantisse razoável paz social. E curiosamente também, os presidentes identificados com a abertura política - Geisel e Figueiredo - são os que estão sendo acusados agora de promover execuções.

Devemos, então, reformular totalmente o conceito que fazemos sobre Médici, Geisel, Figueiredo e o regime militar como um todo? Na verdade, não. O regime militar brasileiro, em termos qualitativos, não foi menos violento que os demais, e esteve de todo inserido no contexto da época. O perfil de Médici nunca foi o de um líder político, mas de um burocrata autoritário - ele legou ao país obras, e não sucessores. Geisel e Figueiredo nunca foram pacifistas, mas tampouco é mentira que eles tenham enfrentado os radicais, que tencionavam derruba-los por acharem que eles não eram violentos o suficiente.

O que importa realmente, agora, é que a ditadura acabou. É passado. E diz a sabedoria popular, se o passado fosse bom, seria presente. Diz também a sabedoria popular, aqueles que não se lembram do passado, estão condenados a repeti-lo.