Pouco sangue, muito esperma, ironizou na época certa personalidade francesa cujo nome não me lembro, querendo dizer que tudo não passou de arroubos de uma juventude arruaceira e hedonista. Mas ninguém duvida que a década de 60 produziu uma virada geral nos costumes, que demoliu antigas crenças e tabus que vinham dos primórdios de nossa civilização. O vento da mudança soprou, refrescou e levantou a poeira. Quem viveu aquela época, e mesmo quem nasceu depois, lembra-se dela com ternura.
Por aí se entende o desconcerto desse pessoal ao contemplar a atual onda conservadora que varre o mundo ocidental, que no nosso país produziu a eleição de Bolsonaro. Ideias que pareciam ultrapassadas e enterradas desde muito voltam à pauta. Cresce a religiosidade e o prestígio dos pastores. A mudança de costumes, que consideravam irreversível, está sendo contestada. Após a revolução cultural dos anos 60, estaria acontecendo, então, uma tardia contrarrevolução cultural? Comentou Rodrigo Constantino, na Gazeta do Povo:
A esquerda 'progressista' plantou as sementes que levaram ao crescimento dessa direita nacionalista e 'xenófoba'. Mas os 'progressistas' se recusam a fazer uma reflexão profunda sobre seu mea culpa nessa história. Desde a década de 1960, em que prometem 'liberdade' por meio da libertinagem...
Vovó já dizia para não confundir liberdade com libertinagem. E parece que tinha razão. A libertinagem prometida pelos revolucionários dos anos 60, longe de conduzir à liberdade, prendeu os indivíduos em uma espiral de dissipação. O fenômeno mais palpável que se verificou a partir daí foi a explosão do consumo de drogas. O hedonismo é intrinsecamente autodestrutivo. Na Europa, o vazio existencial dos filhos e netos de maio de 1968 vem sendo preenchido pelos radicais muçulmanos, aqui fazem a festa os pastores evangélicos. Menos mal.
Impressiona que essa contrarrevolução cultural esteja partindo do povão que frequenta as igrejas evangélicas das periferias, e não das elites. Todas as grandes revoluções culturais até hoje no mundo ocidental partiram das elites. O iluminismo do século 18 foi gestado nos salões, e não nas tabernas, onde o povo sequer sabia ler. O maio de 1968 foi produto do aumento expressivo do número de estudantes universitários, na esteira da prosperidade após a segunda guerra - afinal, tudo começou porque os estudantes queriam frequentar o dormitório de suas namoradas, não foi? Os intelectuais militantes, incapazes de explicar como o povão, de quem se consideram porta-vozes, pôde mudar de tal maneira sua mentalidade, tecem teorias conspiratórias e falam do despeito de uma classe média com o aumento do poder de compra dos pobres e a invasão destes a seus espaços exclusivos. Como se classe média, no Brasil, decidisse eleição.
A esquerda que comemorava a demolição das amarras morais da pequena burguesia, agora sente que o tapete lhe foi puxado, e começa a por em dúvida a eficácia da estratégia gramscista, lançada pelo intelectual italiano Antonio Gramsci, que aliás foi o criador do termo revolução cultural. A explosão do consumo de drogas, na esteira da rebelião da juventude dos anos 60, inundou de crime as periferias. Acossado pela violência e pela imoralidade, o povão que mora ali corre para os pastores evangélicos e dá seu voto ao primeiro candidato que aparece prometendo baixar o pau na bandidagem e regressar a tempos pregressos supostamente mais felizes. A visão da mocinha de seios de fora nas passeatas dos anos 60, se na época evocava desafio e transgressão, hoje só evoca vulgaridade.
De fato, no Brasil, o hedonismo como propensão revolucionária sempre foi um grande mal entendido, muito antes, aliás, do maio de 1968. Longe de nos conduzir à libertação, deixou-nos prisioneiros da dicotomia Civilizado X Selvagem configurada pelo aforismo que afirmava não existir pecado do lado de baixo do equador. Quem pensa que isso é coisa do tempo das caravelas devia prestar atenção a certa entrevista dada pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Perguntado porque os vilões do filme A Pele Que Habito eram brasileiros, respondeu com naturalidade:
Eu não queria que a família de Ledgard fosse espanhola e que ele tivesse recebido uma educação cristã. Não queria que ele tivesse sido criado numa lógica de culpa e castigo. Logo, eu o inseri numa família brasileira. Trata-se de um clã muito feroz, de raízes possivelmente africanas. Por isso pensei no Brasil
Não me pareceu que o cineasta espanhol estava ironizando. E vindo de quem vem, fica evidente que não se trata de opinião de pessoas ignorantes ou desinformadas. Sim, há o senso comum de que o aporte da civilização e da religião do colonizador não aconteceu aqui, e que o Brasil ainda é aquela praia habitada pelas índias nuas que não conheciam o pecado. E que os africanos tampouco foram cristianizados, e mantém seus credos originais, que supostamente não comportavam o sentimento de culpa (engraçado que os atores eram todos brancos).
Por essas e outras, penso que não há nada mais revolucionário no Brasil do que o conservadorismo, aliás coisa normal no maior país católico do planeta, que vai se tornando rapidamente evangélico, mas de qualquer modo tanto um quanto o outro, cristão e refratário à agenda de mudança dos costumes. Não sei até onde nos levará essa atual onda conservadora, mas se convencer os estrangeiros de que aqui existe o conceito de pecado, já está de bom tamanho.
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