segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Confiança, de Fukuyama

Tenho finalmente em mãos um livro que há muito queria ler - Confiança, de Francis Fukuyama. Tive que encomenda-lo de um sebo, pois há muito não há mais edições em livrarias, já que vendeu pouco, muito menos do que O Fim da História e o Último Homem, obra que fez sucesso logo após a queda dos regimes da Cortina de Ferro, mas que é pouco citada hoje. Teve sua época, mas não foi uma grande obra: embora bem escrita, o texto me pareceu mais uma provocação, algo direcionado a suscitar questões e não a responde-las. Já Confiança é bastante superior, embora tenha feito pouco sucesso.

Aprecio Fukuyama porque ele é um dos poucos ensaístas modernos que procura explicar essa questão até hoje aberta - porque alguns países são rico e outros são pobres - penetrando fundo na cultura e na psicologia dos povos, um terreno que a maioria prefere evitar em favor do economês anódino. Tenho dele também Ficando Para Trás. Confiança é bom porque retoma o conceito de Capital Social, contraposto ao conceito de Capital Humano, este muito citado, mas que reporta aos costumes e valores, e não somente ao conhecimento adquirido. Espero que Fukuyama responda algumas dúvidas que tenho até hoje, por exemplo, que explique porque culturas tão baseadas na família, como o Japão, obtiveram resultados tão semelhantes aos de culturas onde a família tem pouca relevância nos negócios, como a Alemanha. Quanto a nós, aqui, estou convencido de que o compadrio ancestral do "homem cordial" é um dos fatores que nos mantêm no subdesenvolvimento até hoje, e creio que Fukuyama concordará comigo.

Aos poucos debaterei aqui as ideias lançadas no livro. Até a próxima!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Relatório da Comissão da Verdade

Saiu hoje o relatório da Comissão de Verdade, sem revelar muita coisa além do que já sabíamos, conforme era esperado. Serviu mais para remoer velhos sentimentos e ressentimentos, vide as lágrimas da Dilma...

Mas o período do governo militar 1964-1985, apesar de já relativamente distanciado no tempo, ainda está longe de ter uma avaliação isenta da parte dos comentaristas, mesmo daqueles que nem eram nascidos na época. Repetindo o chavão, é ferida não cicatrizada. Impressiona ver a coleção de ideias prontas e esquematismos repetidos vezes sem conta sobre aquele período. Uma boa amostra delas saiu nessa reportagem da UOL, provocativamente intitulada Você sabia que a ponte Rio Niterói e a PM são heranças da Ditadura?

A página afirma que a Polícia Militar, a corrupção, a dívida, a inflação, a educação ideológica, o aumento da desigualdade e as obras faraônicas foram um legado deste período. Nem tudo é verdade, nem tudo é mentira. Mas já que estamos em época de comissões da verdade, temos aqui uma boa oportunidade de examinar caso a caso.

Polícia Militar: falso. Já existiam polícias militares no Brasil bem antes de 1964, apenas com outros nomes (Força Pública, Brigada Militar, etc.) e subordinadas à autoridade dos estados. O que o regime militar fez foi subordinar nominalmente as polícias militares ao comando do exército, e elas passaram a ser intituladas "forças auxiliares". Entretanto, o que o governo tinha em mente era a utilização das PM´s como auxílio no combate à guerrilha. O crime comum, embora já em ascenção na época, não foi considerado questão de segurança nacional, e na prática as PM´s continuaram agindo como sempre haviam agido.

Corrupção: havia corrupção, sim. Mas não era superior à que havia hoje, mesmo porque o governo não tinha necessidade de comprar votos. O maior escândalo do período, o Escândalo da Mandioca, ocorrido no governo Figueiredo, desviou um montante minúsculo se comparado aos escândalos que vieram depois.

Dívida e inflação: verdade. Os governos militares seguiram o modelo do nacional-estatismo fundado por Vargas e Kubitchek, caracterizado pelo papel central do Estado na condução da economia e financiado pela inflação e pelo endividamento. Os governos de Vargas e Kubitchek, ao menos, não utilizaram esses dois instrumentos simultaneamente - por exemplo, nos anos JK a inflação subiu, mas o país rompeu com o FMI e o endividamento permaneceu baixo. O maior erro dos militares foi aumentar simultaneamente a inflação e o endividamento.

Educação ideológica: parcialmente verdade. Os militares incluíram no currículo as matérias de Estudos dos Problemas Brasileiros, Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e Educação Moral e Cívica. Mas isso me pareceu bastante inócuo, e até contraproducente: a democracia era louvada e o OSPB ensinava o funcionamento de um regime republicano, exatamente o contrário do que eu via o governo fazer!

Aumento da desigualdade: sofisma. A desigualdade é uma estatística que mostra a participação relativa de cada faixa de renda no bolo nacional. Durante o período a participação relativa das camadas mais pobres encolheu, e esse fato é citado maliciosamente como prova de que os ricos ficaram mais ricos à custa de tornar os pobres ainda mais pobres. Mas em termos ABSOLUTOS, tanto a renda dos ricos quanto a renda dos pobres cresceu, só que a renda dos ricos cresceu mais rápido, resultando em um aumento da participação relativa da fatia destes no bolo. A prova do aumento do nível de vida dos trabalhadores na época foi a quase ausência de operários nos movimentos guerrilheiros, via de regra siglas incipientes contando com poucas dezenas de estudantes, intelectuais,padres, ex-militares, etc.

Obras públicas: parcialmente verdade. De fato, os militares fizeram na época muitas obras faraônicas e de utilidade duvidosa, como a transamazônica. Mas quem hoje afirmaria que a ponte Rio-Niterói e a hidroelétrica de Itaipu são inutilidades?

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A quase-lógica ataca de novo: os degredados

Vi recentemente no blog de um professor um artigo interessante, que contesta um dos mais longevos e disseminados daqueles mitos sobre a História do Brasil que aprendemos na escola e repetimos pela vida afora com a convicção de quem enuncia uma verdade absoluta: O Brasil é uma terra cheia de bandidos e corruptos porque no passado fomos colonizados por degredados.

Essa assertiva quase sempre entra na discussão quando se procura explicar porque os EUA e outros países desenvolvidos que foram colônias no passado, hoje são tão ricos, ordeiros e honestos, ao passo que nós continuamos chafurdando na pobreza e na ladroagem. É nesse ponto que tocamos em outro mito escolar longevo: fomos uma "colônia de exploração", ao passo que eles foram uma "colônia de povoamento".

O artigo cita um outro artigo, este publicado na grande imprensa, da autoria de um conhecido escritor:

Foram os portugueses, porém, que disseminaram a prática da corrupção.  Diferentemente dos peregrinos ingleses que desembarcaram na América do Norte para se fixarem e construírem uma nova vida, os portugueses que vieram atrás de Cabral eram uma escória, um bando de renegados e desterrados que só queriam se aproveitar deste terreno baldio sem ninguém, para enriquecer e voltar à terrinha. Pois foram eles que se encarregaram de fiscalizar o contrabando do pau-brasil, aves, ouro e especiarias contra a Coroa Portuguesa.  Não podia dar certo.  Mas aqueles aventureiros portugueses estabeleceram um padrão de rapinagem que de lá para cá só fez se aprimorar.  Durma com uma corrupção dessas!


É bem redigido e parece até fazer lógica.  Mas é um exemplo daquilo que eu chamo de quase-lógica, uma praga que brota das salas de aula, propaga-se pela mídia e contamina o debate acadêmico até receber a chancela de verdade absoluta, tristeza de um país dividido entre iletrados e pretensos intelectuais. De fato, a presença de elementos com um histórico de má conduta social em uma comunidade contribui em algum grau para o aumento dos delitos naquela comunidade. Muitos dos primeiros capitães do Brasil deploraram a presença daqueles bandidos em suas capitanias, e escreveram cartas ao rei narrando os malfeitos que protagonizavam. Mas não é suficiente para explicar os atuais níveis de crime e de corrupção. Saindo do chute para a pesquisa séria, vê-se que o número de degredados foi relativamente pequeno entre os colonos, que a política de enviar degredados às colônias não durou tanto tempo assim, e tampouco era exclusividade de Portugal - a Inglaterra também enviou muitos degredados no início da colonização da Austrália, isso em época bem mais recente, e a Austrália hoje é um local aprazível e com baixos índices de crime e corrupção.

Como tampouco tem grande significado a dicotomia Colônia de Povoamento X Colônia de Exploração. Os conceitos são auto-explicativos, mas não explicam o que pretendem. O Brasil também foi uma colônia de povoamento. Ou alguém acredita que os únicos portugueses que aportavam aqui eram fidalgos que vinham assumir cargos públicos e tomar posse de sesmarias? Esses vieram, mas junto com eles também vieram milhares de colonos despossuídos, alguns talvez sonhando em fazer fortuna rápido e voltar à terra natal, mas a maioria, decerto, ciente de que jamais regressariam, mesmo porque tinham o exemplo de outros que haviam partido antes deles e não regressaram. O epíteto colônia de exploração, a meu ver, se aplica a ex-colônias como a Índia e a Indonésia, onde já existia uma população nativa e o colonizador só se fazia presente transitoriamente como funcionário da administração ou homem de negócios. Do mesmo modo, os EUA também foram uma colônia de exploração: o sul foi dedicado a monocultoras de exportação trabalhadas por mão-de-obra escrava, tal como sucedeu no Brasil. E até o século 18 pelo menos, em termos puramente econômicos, o sul foi mais importante do que o norte habitado por camponeses pobres que trabalhavam a terra pessoalmente. Então, a explicação para a grande discrepância quanto aos níveis de riqueza  & corrupção entre nós e os EUA tem uma explicação diferente.

Mas qual explicação? Serão os anglo-saxônicos inerentemente mais honestos que os ibéricos? É verdade que Portugal e Espanha no século 16 não eram nenhum modelo de moralidade pública. Mas tampouco a Inglaterra o era: até o século 18, o dito popular "é como encontrar um homem honesto no parlamento" equivalia ao nosso "é como encontrar agulha no palheiro". A meu ver, a moralidade pública nasce da sociedade civil e propaga-se à esfera pública, e não o oposto. Sem grandes floreios retóricos, eu penso que a real explicação é mais prosaica: No Brasil, o Estado se formou antes da sociedade civil, ao passo que nos EUA, estado e sociedade civil formaram-se juntos. O colono que aportava aqui, já encontrava uma administração pronta e funcionando nos mesmos moldes que funcionava em Portugal, e sabia que tinha que buscar a proteção desses homens de gabinete se quisesse prosperar, ou mesmo sobreviver na nova terra. Estabeleceu-se então uma relação de dependência do privado para com o público, que de geração em geração chegou até aos dias atuais. Fica flagrante quando se vê que o sonho de todo jovem recém-formado não é fundar seu próprio negócio, mas passar em algum concurso, e a fórmula do sucesso das empresas não é a competência nos negócios, mas as ligações com os políticos. A honestidade nos negócios é estabelecida, a meu ver, nas mediações da vida diária, no preço que se paga por ser desonesto em termos de perda de confiança. Isso só acontece dentro da sociedade civil, pois o Estado, como no tempo dos degredados, tudo o que pode fazer é mandar para a cadeia. Penso que quando a sociedade civil começar a se tornar mais importante do que o Estado, e o mercado se tornar mais importante do que o círculo dos amigos-do-rei, começaremos a ser mais honestos.

domingo, 9 de novembro de 2014

A Gangorra PT / PSDB

Datando da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, hoje completamos vinte anos de hegemonia PT / PSDB na política brasileira em um clima de inédita polarização entre esses dois pilares. É sabido que a última eleição foi a mais disputada dos últimos tempos, e é notória a divisão do país entre os apoiantes de Dilma e os de Aécio. Com o ar ainda impregnado de discussões políticas, ao sabor das paixões de cada um, tem-se a impressão de que Dilma e Aécio, e por conseguinte o PT e o PSDB, encarnam duas opiniões diametralmente opostas, duas visões e dois projetos totalmente inconciliáveis: Direita X Esquerda, Ricos X Pobres, Democracia X Ditadura, Nacionalismo X Submissão, Bem X Mal, etc.

Mas não é a impressão que eu tenho. Minha abordagem é histórica, e a abordagem histórica altera a perspectiva das imagens ao acrescentar-lhes a dimensão do tempo: o que antes parecia de um jeito na imagem chapada, feita de instantâneos do tempo presente, ganha profundidade quando comparamos com o tempo passado. Isso me lembra uma diversão que havia muito antigamente nas revistas de palavras cruzadas, junto com curiosidades e ilusões de ótica: o leitor era apresentado a um desenho onde só se viam as silhuetas em preto das figuras, e desafiado a descobrir o que representava aquela imagem. Na primeira impressão sempre parecia alguma coisa estranha, tipo uma feiticeira mexendo um caldeirão. Mas quando íamos à página de respostas, onde era mostrado o mesmo desenho tridimensional, víamos uma dona de casa varrendo um tapete debaixo de uma mesinha de centro. O tapete, redondo, em silhueta lembrava um caldeirão, e o que parecia o chapéu da bruxa era na verdade um pote colocado sobre uma prateleira bem atrás da cabeça da mulher. A mesma ilusão temos ao apreciar os fatos acrescentando-lhes ou não a dimensão histórica, como no caso dessa suposta polarização PT X PSDB: bem avaliado ao longo desses vinte anos de hegemonia, o que eu vejo de fato não é um embate, e sim uma gangorra tendo em uma ponta o PT, em outra ponta o PSDB. Como em toda gangorra, ora um sobe e o outro necessariamente desce, sendo a descida condição necessária para a posterior subida. Evidente que todos querem ficar em cima, mas como toda criança sabe, só com um não dá para brincar de gangorra. Nem com mais de dois. O crucial, em política, é ficar por cima no momento certo.

E quem tem se saído melhor nessa brincadeira de gangorra? É fato que o PSDB saiu na frente, com duas vitórias eleitorais de FHC sobre Lula. O PT soube perder, pois em toda gangorra, ficar em baixo é condição necessária para subir, embora nada determine por quanto tempo o parceiro pode permanecer no alto. Em seguida o PT venceu em 2002, e tem permanecido em cima até agora. Mas ficam algumas indagações no ar.

Lula poderia ter ganho já em 1994? Ou em 1990, se recuarmos até a eleição de Collor?

Poder, poderia, mas os resultados teriam sido muito diversos. A economia não estava estabilizada, e a inflação disparava. Na América Latina, todas as experiências populistas levadas a cabo antes da estabilização econômica dos anos noventa fracassaram inapelavelmente, produzindo caos e hiperinflação, sendo exemplos Siles Suazo na Bolívia e Alan Garcia no Peru. Se Lula houvesse ganho qualquer uma das eleições que disputou antes de 2002, ele só teria duas opções: fazer mais ou menos o mesmo que Fernando Henrique fez, e assim ficaria desmoralizado junto às bases, ou partir para uma aventura populista que inevitavelmente terminaria em caos hiperinflacionário. Tanto na primeira quanto na segunda hipótese, Lula estaria destruído politicamente.

Vê-se, portanto, que a estabilização da economia a partir do Plano Real, levada a cabo pelo PSDB, foi essencial para garantir o bom desempenho de Lula a partir de 2002, o qual já rendeu até agora três vitórias sucessivas do PT. Conscientemente ou não, o PT soube ficar por baixo na gangorra na hora certa, e soube também o momento certo de subir. Mas como vai se comportar de agora em diante a gangorra PT / PSDB? Por quanto tempo o PT ficará por cima? Será que, assim como foi bom o PT ficar por baixo antes de 2002, pode ser ruim o PT ficar por cima em 2014, com o quadro atual da economia em queda?

Imagino o que aconteceria caso Aécio Neves houvesse ganho a eleição. Ele teria vencido por uma pequena margem; o PT, mesmo derrotado, ainda seria uma força considerável, e o PSDB não poderia governar sem negociar com os petistas. O eleitorado ficou satisfeito com o governo petista, e como é natural, espera do novo governo o aprofundamento dessas mudanças. Ao contrário do que acreditam alguns apoiadores ingênuos, o PSDB não é um partido de direita, muito menos neoliberal: é um partido social-democrata, tal como o próprio PT, embora sem os arroubos revolucionários deste. Mesmo se tivesse a intenção de fazer reformas profundas, não teria força para fazê-las. Tudo o que Aécio poderia fazer seria mais ou menos o mesmo que Fernando Henrique fez em 1994: atacar um quadro de economia em queda e inflação crescente com as indispensáveis medidas de austeridade, aí incluído cortes nos gastos públicos, congelamento de salários e privatizações. Essas medidas necessariamente acarretam um ônus de impopularidade, e o PT facilmente venderia ao povo a sua versão de que o PSDB é o partido que é dos ricos, do grande capital e do FMI, que deseja o arrocho para o povão. Não demoraria até que todos começassem a sentir saudades dos bons tempos petistas em contraste com os tempos bicudos tucanos. Tal como aconteceu em 2002, o PSDB entregaria ao PT triunfante um país com as contas no azul, pronto para novo ciclo de crescimento. Portanto, talvez tenha sido bom para o PSDB ficar por baixo na gangorra nesses quatro anos.

E afinal, foi bom para o PT haver ganho essa eleição? Não teria sido este o momento de ficar por baixo na gangorra?

Há muitos desdobramentos a considerar. A única coisa certa é que o novo governo terá que tomar medidas impopulares para estancar o déficit público, como aliás já está fazendo. Desde 2002 até agora o PT tem governado com facilidade, já que o povo está satisfeito, mas com o povo batendo panelas na rua, a coisa muda. Deve ser lembrada a intensidade das manifestações ano passado; é certo que elas não se voltaram diretamente contra o PT, mas isso é uma possibilidade a considerar. Eu penso, então que o PT tem três alternativas:

1) Partir para a ditadura, estilo bolivariano, com milícias armadas e pressão sobre a mídia;

2) Conformar-se com uma derrota para o PSDB em 2018;

3) Auto-sacrifício: Dilma vai tomar todas as medidas amargas necessárias para sanear as contas públicas, arcando com o ônus de impopularidade, o que a deixará obviamente queimada, mas será de fato o sacrifício em holocausto de Dilma: o próprio PT a abandonará e passará a atacá-la, assim preparando o clima para o retorno de Lula em 2018 na posição de salvador da pátria.

Temos quatro anos para ver.

sábado, 25 de outubro de 2014

Amanhã decidiremos quem será o presidente... em 2018

Amanhã é dia de escolher quem será o presidente, e pela primeira vez em muitos anos, não há certeza de quem irá vencer. Mas a impressão que eu tenho aqui comigo é que amanhã vai ser decidido não só quem será o próximo presidente, mas também o presidente de 2018.

As nuvens escuras estão no horizonte à vista de todos, e se não é possível prever com segurança quem vai ganhar amanhã, por outro lado é perfeitamente possível prever o que vai acontecer com o vencedor: terá que enfrentar uma boa rebordosa. Se Aécio vencer, não terá outra alternativa além de ser um segundo FHC: as medidas de austeridade serão inevitáveis, a fim de baixar a inflação e recompor nossas reservas, e inevitável também será o ônus de impopularidade resultante de tais medidas. Se tudo correr bem, 2018 será o ano de novo mandato de Lula, que ganhará facilmente, bastando comparar os tempos bicudos de Aécio com os tempos fartos de seus dois primeiros mandatos. Se Dilma vencer... aí complica. A bomba vai estourar na mão dela. Até agora o PT tem governado com certa facilidade, pois o povo está satisfeito com os bons resultados da economia, mas nota-se que quase tudo o que Dilma teve para apresentar em sua campanha não foi produto de seu governo, mas herança dos bons tempos dos dois mandatos de Lula, que recusou-se terminantemente a disputar essas eleições justamente por saber que o tempo havia fechado. Com a economia em queda e o povo batendo panela na rua, aí só na paulada, como na Venezuela. As alternativas são duas: ou o PT parte logo para a ditadura, ou conforma-se em sofrer uma derrota fragorosa em 2018.

O que vejo de fato nesse embate PT X PSDB que há vinte anos monopoliza nosso quadro político, é um movimento de gangorra: um sobe, outro desce; outro sobe, um desce. É claro que ninguém quer ficar por baixo, mas como toda criança sabe, só com um não dá para brincar de gangorra. Na visão do grande público, dominado por aquela paixão que antecede as grandes decisões, PT e PSDB cumprem um roteiro de novela das oito: de um lado os galãs, do outro os vilões. Os bons e os maus, os ricos e os pobres Seus programas, supostamente, são opostos e inconciliáveis, um governará para os ricos, e o outro para os pobres. Poucos notam que são apenas dois na gangorra. A questão é ficar por cima na hora certa.

sábado, 18 de outubro de 2014

As eleições através dos tempos

A revista História Viva desse mês apresentou uma oportuna reportagem sobre como evoluíram as eleições no Brasil. Fiquei sabendo que a primeira ocorreu em 1532, para a Câmara Municipal de São Vicente. O que eu já sabia, e a reportagem confirmou, foi que as câmaras de Homens Bons constituíram até o final do século 18 o poder de facto no Brasil, uma terra quase desabitada onde o rei era uma figura tão distante que parecia lendária, e seus funcionários eram tão escassos que pareciam pouco mais que lendários. Naquele vazio permeado aqui e ali por vilas e fazendas isoladas, mandavam os ditos Homens Bons, mais precisamente os senhores de terra, muitos deles dispondo de homens armados sob seu comando. O senso comum afirma que os senhores de terra brasileiros eram fidalgos que receberam sesmarias do rei de Portugal. Na prática, porém, a posse da terra em locais tão distantes da autoridade real dependia da capacidade desses senhores de a obterem e conservarem pela força, e para tal contavam com a ajuda, não do rei, mas de parentes, agregados, colonos e demais dependentes que se dispusessem a pegar em armas sob suas ordens. Tanto eram independentes e refratários à autoridade da metrópole, que conforme conta a reportagem, a fim de diminuir seu poder, o rei passou a nomear os chamados Juízes de Fora para fiscalizar os municípios, onde os juízes eram os membros das câmaras locais (deve ser lembrado aqui que o princípio da divisão de poderes não existia na época, e os vereadores eram ao mesmo tempo o prefeito, os juízes e os funcionários).

Como se vê, então, a elite brasileira dos tempos coloniais, longe de compor-se com a metrópole, ao contrário, dedicava-lhe constante estranhamento. Os Homens Bons frequentemente ignoravam as disposições do rei, ameaçavam e corrompiam seus funcionários. Daí que não seja de admirar que o desejo por independência tenha surgido nas elites antes de surgir nas massas, como bem ilustra o exemplo da Inconfidência Mineira.

Outro fato que eu já conhecia, e foi oportunamente lembrado pela reportagem, foi que durante o império ocorreram diversas reformas na legislação eleitoral, que ao final deste período já haviam se tornado diretas (no início os eleitores, ditos de primeiro grau, votavam em delegados ditos eleitores de segundo grau, que votavam nos candidatos). Em determinado momento o número de eleitores chegou a ser até superior ao que viria a ser no início da república, apesar do sistema censitário, que na prática era fácil de ser contornado, pois os valores de renda exigidos eram relativamente baixos e ficaram congelados por anos, e a comprovação de rendas era difícil. Enfim, esse período, longe de ter sido de imobilismo e obscurantismo, foi de muitas experiências.

O sufrágio universal masculino (exceto analfabetos) instituído com a república teve como consequência inicial apenas a consolidação do poder dos coronéis do sertão. Esses chefes políticos, sem dúvida, já existiam antes, mas antes também tinham menos eleitores em seu cabresto. Sob este aspecto, fica difícil afirmar que a instituição do sufrágio universal representou uma conquista democrática. E penso mesmo que se também votassem os analfabetos, o poder dos coronéis ficaria ainda mais consolidado, pois sustentava-se na fragilidade e dependência econômica dos colonos de sua fazenda, e os analfabetos pertenciam ao estrato social mais frágil e dependente. De fato, uma fraude comum no período era forjar a alfabetização dos trabalhadores do coronel, a fim de que pudessem se tornar eleitores.

No anos 30 tivemos o exotismo dos "deputados das profissões", que eram eleitos por delegados de suas respectivas profissões - herança do corporativismo do fascismo italiano. Não deixaram saudades.

Com a constituição atual, enfim, pode-se afirmar que o voto se tornou universal no Brasil. Analfabeto vota. E analfabeto é eleito. Mas esse é nosso país, e essa é a História de todos nós.

domingo, 5 de outubro de 2014

O Erro do PSDB

O bom desempenho do candidato Aécio Neves nesse primeiro turno foi surpreendente. Estará o PSDB, finalmente, ressuscitando? Temos aqui uma boa ocasião para meditar sobre o que tem levado esse partido a sucessivas derrotas, isso após haver protagonizado o único plano econômico bem sucedido em décadas, o Plano Real.

Minha conclusão é uma só: o erro do PSDB foi tentar emular o discurso petista. O eleitor não se empolgou - afinal, por que alguém desejaria a imitação, se pode ter o original?

Em parte justifica-se, pois é o discurso petista que é entendido pelas massas. Equilíbrio de contas, agências reguladoras, independência do Banco Central, essas coisas são entendidas por mim e por você, não pelo povão. Como também é inócuo denunciar novos casos de corrupção no governo, pois o eleitorado petista, na época atual, é constituído por aquela massa que não se importa com a corrupção, uma vez que não tem rendimentos suficientes para pagar impostos diretos - se não saiu do bolso deles, então não há motivo para se sentir pessoalmente lesado. É essa massa que, historicamente, sempre reelege os políticos cassados por corrupção. No passado ela já pertenceu à antiga ARENA do regime militar, depois foi herdada pelo PMDB de Sarney, foi dos coronéis nordestinos e hoje pertence ao PT. E ao que tudo indica, permanecerá fiel.

A minha convicção é que a atual hegemonia petista só terminará quando começar a doer no bolso. Há duas maneiras de aprender: pelo discernimento, ou levando na cabeça. O sábio aprende pela experiência alheia, o ignorante só aprende pela experiência própria. Por enquanto, o povão constata que o saldo é positivo, sua vida melhorou com o PT no poder. Mas é evidente que o saco agora está vazio, os últimos cartuchos foram queimados nessa campanha. A vitória de Dilma pode até ser contraproducente: sem poder repetir os bons resultados passados, o povão perderá a confiança, e tchau PT. Talvez fosse até mais conveniente que um "neoliberal" ganhasse essa eleição, para arrumar a casa, arcar com o ônus de impopularidade e deixar tudo limpo para o retorno triunfal de Lula em 2018: seria apenas um breve interregno na atual era petista. O futuro o dirá.

Quanto ao PSDB, só vejo solução se esse partido desistir de imitar o discurso populista, e ao invés disto adotar um discurso coerente, que permaneça de eleição para eleição, mesmo que não obtenha eco imediato no eleitorado. Quando o último engodo for desmascarado, o povão - ignorante, mas não burro - verá enfim quem tem razão.

domingo, 14 de setembro de 2014

A Cara dos Presidentes Está Mudando

Claramente, o perfil dos presidentes brasileiros está mudando. Ou ao menos o rosto deles. Nunca antes havíamos tido um presidente operário, e em 2002 Lula elegeu-se. Verdade que só trabalhou como operário uns quarenta anos atrás, mas como não assumiu nenhuma outra profissão definida depois disto, operário sendo, operário ficou. Também nunca antes havíamos tido uma presidente mulher, até que em 2010 Dilma Rousseff elegeu-se. E agora o próximo pleito será disputado por duas mulheres, sendo que a segunda também foi seringueira e analfabeta até os 16 anos - outro fato inédito.

Mudaram os presidentes ou mudaram os políticos? Mudaram os políticos ou mudou o Brasil?
Mudar tudo muda, é claro, mas certas coisas permanecem iguais, como a pouca competência e a escassa honestidade de nossa classe política. Bem, se é indiscutível que nossos presidentes agora estão ficando mais com a cara do povo, podemos concluir que a corrupção não é exclusividade das elites, como outrora foi senso comum. Mas será que no tempo em que nossos presidentes tinham cara de cavalheiros, eles eram mais honestos? Essa mudança toda, afinal de contas, está sendo para melhor ou para pior?

É um julgamento que só pode ser feito pelo senso comum, mas a impressão geral é que os políticos já foram pessoas mais distintas no passado. Alguns afirmaram isso textualmente. No distante ano de 1900 foi publicado um livro chamado Porque Me Ufano de Meu País, de autoria do dramaturgo e ensaísta Afonso Celso de Assis, o conde Afonso Celso, obra hoje citada como exemplo acabado de patriotismo desvairado e otimismo discutível. Entre vários motivos que o autor citou como sendo razão de orgulho para o brasileiro, estava o caráter dos homens públicos nacionais: "Os homens de Estado costumam deixar o poder mais pobres do que nele entraram (...) Casos de venalidade enumeram-se raríssimos, geralmente profligados (...) Quase todos os políticos brasileiros legam a miséria a suas famílias. Qual o que já se locupletasse à custa do benefício público?" Com certeza, nenhum comentarista sério acredita que os homens públicos do tempo de Afonso Celso fossem tão corretos assim. Mas uma coisa não se pode negar: se naquele ano de 1900 um escritor pôde escrever essas palavras sem temer um estrepitoso ridículo, era porque a percepção de corrupção era muito menor do que hoje.

Não é sem uma certa melancolia que constatamos isso. Se não podemos medir com rigor a probidade dos políticos de antanho, há um outro aspecto que não admite dúvidas: eles eram mais letrados. Consultando-se a biografia de personagens que habitavam o mundo da política cinquenta ou cem anos atrás, encontramos com facilidade poliglotas, autores de livros, ensaístas, poetas e romancistas. é certo que nem todos eram um Ruy Barbosa ou um José de Alencar, mas ao menos um José Sarney era lugar-comum. Sarney, inclusive, é o último exemplar desta estirpe, por certo que não é nenhum escritor de primeira linha, mas no cenário atual está a anos-luz de tantos analfabetos que pululam pelo congresso.

Afinal, se os políticos estão ficando mais com a cara do povo, isso significa que eles estão ficando mais iletrados e desonestos?

Para responder a essa pergunta, é necessário contrapor o perfil do político tradicional com o novo. O político tradicional, sem dúvida que nunca foi um exemplo de probidade administrativa, vide os Malufs, os Sarneys, os ACM, os Jader Barbalhos, os Collors e por aí afora. Mas esses indivíduos, sem exceção, vinham de famílias ricas, geralmente com várias gerações de políticos, e por mais que pusessem a mão no dinheiro público, a maior parte de seus rendimentos sempre veio de seu patrimônio pessoal. Já os novos políticos geralmente vieram de famílias pobres, e a possibilidade de ganhar dinheiro foi justamente o motivo original que os levou a tentar a carreira política. São ratos magros, em suma. Entram pobres, saem ricos. Sem patrimônio ou tradição, utilizam-se do populismo para empolgar as massas, inclusive invocando sua condição de homens do povo. Eu tenho observado um paralelo cada vez maior entre as carreiras do político, do animador de programa de auditório e do pastor de igreja vigarista: começam a vida pobres, terminam ricos e valem-se do ilusionismo para cativar seu público específico. Notei isso pela primeira vez quando estava perto de uma TV ligada mostrando o programa Sílvio Santos. Em determinado momento surgiu na tela o rosto de Dilma Rousseff fazendo um discurso enaltecendo o novo programa do governo denominado Brasil Carinhoso. Levei alguns segundos para perceber que estava vendo a imagem da presidente da república. Explico: é que a maneira como ela falava e o linguajar que ela usava se harmonizavam de tal maneira com a apresentação de um programa de auditório, que distraidamente julguei que se tratava de algum novo quadro ou concurso do Sílvio Santos.

Senor Abravanel não conseguiu ser presidente da república. Mas o Brasil vai aos poucos se transformando em um imenso auditório.

sábado, 13 de setembro de 2014

Não queria comentar, mas...

Quando ocorreu esse episódio da torcedora que chamou um jogador de macaco, não dei nenhuma importância. Não sou racista, e há muito não acompanho mais futebol. Não pensei que seria matéria para comentar em meu blog, mas diante da repercussão do caso, cujo último desdobramento foi um incêndio criminoso na casa da moça, concluí que estava diante de um fenômeno que valia, sim, a atenção geral.

Em primeiro lugar, é claro que chamar alguém de macaco é uma grosseria, além de óbvio racismo. Mas todos estão cansados de saber que torcedores em um estádio desde priscas eras sempre gritaram todo o tipo de grosseria. Nos tempos em que eu frequentava estádios, era comum ouvir-se o coro chamando o juiz de FDP sempre que ele marcava algo que prejudicava nosso time - e no entanto, jamais ouvi falar de alguma mãe de árbitro de futebol que algum dia houvesse entrado com uma ação por calúnia contra algum torcedor!

Parece-me evidente que as palavras ditas em estádio durante uma partida não devem ser julgadas da mesma maneira como se fossem ditas em outro local e em outras circunstâncias. A impressão geral foi que a reação contra a infratora foi desproporcionalmente severa. O que isso significa? Estaremos ficando mais civilizados e intolerantes com agressões de qualquer natureza? Se for verdade, isso é bom: o racismo é repulsivo, e deve, sim, ser reprimido. Mas o fato é que a reação enérgica contra o racismo convive sem problemas com uma ampla indiferença quanto a episódios muito mais violentos e imorais que ocorrem todos os dias. Daí que eu conclua que estamos diante de outro fenômeno: a instrumentalização dos ressentimentos humanos.

É sabido que grupos diversos de indivíduos considerados oprimidos por alguma razão têm se unido e organizado de forma espontânea, a fim de defender-se e expor suas reivindicações. Não há nada de errado ou estranho quanto a isso. Mas de uns tempos para cá, essa organização tem sido cada vez mais instrumentalizada por ONG´s e por partidos políticos - são os "movimentos sociais" da autodenominada sociedade civil organizada. De um lado, isso é bom para os movimentos, pois provê de verbas e de publicidade àqueles que antes dependiam apenas de si próprios. Mas de outro lado, transforma esses movimentos em um mero público ao dispor das ONG´s e partidos que os financiam. A reação desproporcional contra o procedimento da torcedora, portanto, não é prova de que estamos ficando menos racistas, e sim prova de que os grupos que combatem o racismo estão ficando mais fortes, uma vez que os movimentos negros, tal como tantos outros - gays, sem terra, sem teto, índios, etc. - têm sido cooptados por partidos e ONG´s, e como tal, têm ganho respaldo cada vez maior dos poderes públicos. Mas conforme afirmei, esse ganho de poder corresponde a uma crescente instrumentalização dos ditos movimentos - eles devem servir a quem os banca, certo? Aí o futuro é incerto. A criatura vai se voltar contra o criador? O criador vai suprimir a criatura quando não mais necessitar dela?

O futuro o dirá.

sábado, 30 de agosto de 2014

O Fenômeno Marina

Um mês atrás, eu nem sabia que Marina Silva era candidata a vice na chapa terceira colocada nas pesquisas. Agora, como todos os brasileiros, estou diante do maior fenômeno eleitoral dos últimos tempos, mais notável ainda por haver sido produto de circunstâncias fortuitas, um acidente de avião, sem nenhuma articulação por trás ou trabalho prévio de marqueteiros. Quanto a mim, não tenho maiores simpatias por Marina, como não tenho pelos outros candidatos, mas como comentarista sinto-me obrigado a pelo menos tentar decifrar o fenômeno.

Como é possível que um candidato com tanto potencial fosse originalmente lançado apenas como vice, em uma chapa sem chance sequer de passar ao segundo turno? Vivo Eduardo Campos, sua candidatura era um cadáver; morto o candidato, sua candidatura ressuscita no corpo de Marina. A explicação que eu encontro é a falta de base partidária de Marina, que tampouco possui base nas massas, em razão de sua falta de carisma. Mais difícil de explicar é de onde vieram tantas intenções de voto para uma candidata tão apagada. Mostram as estatísticas que Dilma perdeu poucos votos para Marina, o que não me espanta: o eleitorado petista, atualmente, é composto por aquela massa que vota no candidato que tem a chave do cofre. Como reza o provérbio, o eleitor tem a memória do burro, sempre se lembra onde come. Essa massa já pertenceu, no passado, à antiga ARENA do regime militar, foi depois herdada pelo PMDB de Sarney e agora é propriedade do PT: muda de partido, mas não muda de endereço, está sempre localizada nos rincões mais pobres e dependentes do favor do governo. Já Aécio Neves perdeu bem mais votos do que Dilma, passando a terceiro lugar, o que evidencia que o eleitorado de Marina é composto em sua maioria por um eleitor descontente com o PT, mas que também não se encantava com Aécio. Esse eleitor desalentado talvez votasse em branco caso não tivesse ocorrido o desastre de avião. A impressão que tenho é que finalmente surgiu um candidato com mínimo apelo popular para confrontar a hegemonia petista.

Mas por que o PSDB não empolgava os anti-petistas?

A explicação se encontra nos próprios fundamentos ideológicos do PSDB, um partido de centro-esquerda que foi obrigado pelas circunstâncias a adotar uma política "neoliberal", que é o nome que a esquerda dá aos cortes, privatizações e medidas de austeridade absolutamente indispensáveis para se tirar qualquer contabilidade do vermelho, seja a de um país ou a do botequim da esquina. O PSDB conspurcou-se com sua fama de neoliberal, enquanto o PT revelou total empatia com as massas, que clamam por um Estado grande e paternal. Por este motivo, o PSDB preferiu renegar o seu passado, desvencilhar-se da imagem de Fernando Henrique Cardoso, paradoxalmente seu líder mais bem -sucedido, e procurou emular o discurso neo-populista do PT. O resultado não poderia ser outro: derrota atrás de derrota. Afinal, quem vai querer a imitação barata se pode ter o original?

E por que Marina empolga os anti-petistas?

Essa é mais difícil de responder. Vejo em Marina uma personagem oca, revestida de um discurso feito de lugares-comuns ambientalistas. Não tem carisma pessoal nem base partidária, passou os últimos anos pulando de galho em galho. É tão oca quanto uma luva, que só espera que alguém coloque-a na mão. E quem será? O PT ou o PSDB? Um hipotético governo de Marina é uma incógnita total, sabe-se apenas que não será fácil, pois os oito anos de Lula deixaram uma pesada conta a ser paga. Esperava-se que Dilma pagasse a conta e deixasse tudo no azul para Lula voltar em 2014, mas isso não aconteceu. Afirma Aécio que o governo de Dilma acabou, mas não é bem assim; o governo de Dilma sequer começou. Então, talvez Marina acabe fazendo o papel que Dilma não fez: ser a "neoliberal" que vai arrumar a casa, arcar com o inevitável ônus de impopularidade e deixar tudo limpo para o retorno triunfal do PT em 2018.

O problema - repito mais uma vez - é que quem pode levar será o PSol, ao invés do PT...

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Caráter do Brasileiro

Não tenho muita afinidade com o povo brasileiro em geral, e não nego que muitas características típicas dos brasileiros incomodam-me. Sobretudo a mania de transformar tais defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas – daí a lenda do Brasileiro Cordial; o culto a Macunaíma, o herói sem nenhum caráter; a exaltação da malandragem, do improviso, do jeitinho, do carnaval, do futebol – como se tudo isso fosse um traço identitário nosso. Não posso mudar nada, mas já que a moda é tecer todo um discurso sociológico em torno dessas ditas peculiaridades, então vou entrar também na discussão.

Entre os atributos brasileiros de que não gosto, o que mais me incomoda – e talvez por isso mesmo, seja uma síntese de todos os outros – é um excessivo caráter gregário. Brasileiro gosta de andar sempre em bando, indivíduos introspectivos são mal vistos. As ligações familiares prolongam-se além do núcleo familiar, e persistem pela vida adulta afora, muitos familiares vivendo juntos. As amizades são tão numerosas quanto superficiais. Fala-se sobretudo de um jeito caloroso, afetuoso de ser, que seria típico do brasileiro. É nesse ponto que chegamos ao batido arquétipo do brasileiro cordial, sobre o qual já me referi em outro artigo.
O que há de verdade nisto tudo?

Não me permito discordar, ainda mais que tenho exemplos vivos em toda parte. O que eu discordo mesmo é da crença de que tudo isso tudo seria uma idiossincrasia nossa. A meu ver, esses atributos são herdados. Todo o mundo sabe que esse jeito de ser e de falar, de cumprimentar tocando e beijando, é comum a todos os povos latinos sul-europeus, nossos ancestrais. A insistência em apresentar esses traços culturais como invenção brasileira, a meu ver, revela uma vontade de ver um “algo mais” neles. De minha parte, vejo apenas um excesso de linguagem corporal e jogo de cena, hábito de mentir educadamente. Conforme é sabido, nunca se deve despedir de um inglês dizendo “aparece lá em casa”, ou ele aparecerá mesmo. Nós nos acostumamos a esses estereótipos: os ingleses escondem as emoções que sentem, os latinos mostram as emoções que não sentem. Os ingleses são individualistas, nós somos gregários. Mas já que a proposta é extrair daqui algum significado antropológico profundo, vamos lá: trata-se, a meu ver, da reminiscência de uma organização social pretérita, orientada ao clã familiar. É por este motivo que nós valorizamos mais as ligações afetivas e familiares do que quaisquer outras formas de filiação, inclusive ideológicas e religiosas, conforme explicou Sérgio Buarque de Hollanda, o criador do arquétipo de brasileiro cordial, mas poucos prestaram atenção, haja visto que continuam a interpretar a cordialidade como brandura e mesura. Mas o cordial de Buarque de Hollanda vem da palavra latina para coração, denotando emoção: somos mais emocionais do que racionais, foi isso que ele quis dizer.
Não discordo de Buarque de Hollanda, mas isso colocado dessa forma, como se fosse uma idiossincrasia nacional, uma invenção brasileira, assume ares de mito fundador, o que reveste a ideia de uma aura de dignidade e fornece-lhe um álibi contra todas as críticas: somos assim porque somos brasileiros, e isso sendo uma condição imutável, não nos cabe criticar, mas exaltar, do contrário estaremos exercitando sentimentos neuróticos de auto-rejeição. Ponto. Mas repetindo o que afirmei acima, isso não é uma idiossincrasia brasileira, e tampouco permite tirar uma conclusão que identifique o brasileiro como um povo único e diferente dos demais. No máximo, permite classificar-nos entre os povos atrasados, mais próximos de uma organização social primitiva e orientada ao clã familiar, em detrimento da cidadania. Há muitos outros exemplos de povos do Terceiro Mundo com essas características, o que efetivamente distingue o brasileiro é essa disposição em tecer um discurso sociológico dignificando tais atributos; que eu saiba, em nenhum outro país houve intelectuais que criassem mitos análogos ao do homem cordial, Macunaíma, o malandro, etc. Pode ser que exista, mas eu desconheço. Devíamos é acabar com isso. Aqueles que refutaram o mito do brasileiro cordial apresentando incontáveis episódios de violência em nossa História, isso levados pelo equívoco de tomar cordial por gentil, fizeram-no com toneladas de razão: de fato, para manter a velha organização social orientada ao clã familiar, é imprescindível uma considerável dose de autoritarismo, a fim de reprimir as veleidades individuais e enquadrar todos à força no coletivo tribal. Daí para a violência é um passo.

É sabido que os antigos clãs familiares brasileiros tinham um patriarca. Figura revestida de toda a autoridade, ele comandava esposa, filhos, parentes, agregados, empregados, etc. Esse modelo de família estendida ainda marca nossas relações sociais. Quem está de fora e vê aquele familião, todos interagindo, não raro morando juntos, fica com uma impressão de solidariedade e mútua cooperação. Mas quem está do lado dentro, vê a coisa como realmente é: um mundo onde prevalecem os mais atirados, os mais audazes, quando não os mais descarados, enquanto indivíduos tímidos e escrupulosos são espoliados. Não existe mais a figura do patriarca, mas o autoritarismo que dele emanava ainda está impregnado em nosso tribalismo tardio, e manifesta-se sobretudo no pouco respeito à privacidade alheia, este que é o mais ínfimo dos bens pessoais, e prossegue na perseguição aos “diferentes”, na disposição de fazer uso comum com o que é de outros, em sequestrar o individual para o suposto benefício do coletivo. Seria até uma amostra de altruísmo e entendimento de nossa parte, não fosse esse apreço pelo coletivo tribal paralelo ao mais absoluto desprezo pelo que está fora de tal coletivo. Como bem demonstrou Buarque de Hollanda, a fidelidade brasileira à família e aos amigos impede que ingressemos em formas de organização social superiores, orientadas à cidadania e ao Estado, pautadas na legislação comum e no respeito ao que é privado. Da falta de respeito à privacidade à falta de respeito à propriedade é apenas um passo. Aquele ministro corrupto, no final das contas, pode até ser um bom sujeito: tudo o que ele queria ao fraudar as licitações era beneficiar parentes e amigos donos de empresas, não era isso? Evidente que aquilo que é bom para a curriola dele não é bom para o país, mas é assim que raciocina o homem cordial, e é assim também que muitos de nós raciocinamos.
Em tempos não tão distantes, governava-se o Estado como se governava a família: de forma autoritária, frequentemente violenta. Hoje, são os cacos dessa organização social arcaica que impedem um uso mais proveitoso de nossas relações sociais, desde nosso círculo pessoal, passando pelo profissional até chegar à administração pública. Continuamos a não fazer uma distinção nítida entre público e privado, o que é nosso do que é dos outros, sempre à espera de que algum patriarca surja das cinzas e faça a mediação necessária para estabelecer a boa ordenação. O apreço por líderes políticos carismáticos é apenas um dos aspectos desta questão. Está na cultura popular, isso não vai mudar de uma hora para a outra. Mas bem podíamos começar por parar com a mania de transformar nossos defeitos de caráter em peculiaridades antropológicas.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Dilma, boi de piranha?

Sempre achei a presidente Dilma uma personagem meio patética, desde que veio à luz por obra e graça de seu criador, Luiz Inácio da Silva. Tive até uma certa simpatia por ela, mesclada de pena. Dilma, coitada, não tem carisma. Não é como seu mentor: Lula pode dizer uga-buga-ziriguidum que todos se quedam pasmos ante tanta sabedoria, mas Dilma, com aquela cara de professora de matemática chata de ensino médio, se falar besteira, o pessoal não perdoa.

Desde que foi lançada candidata em 2010, eu tive a convicção de que ela havia sido inventada para fazer um papel de faxineira, cabendo-lhe arrumar as contas que o seu antecessor deixou bagunçadas com a gastança de final de mandato. Durante esses quatro anos, deveria tomar as medidas de austeridade necessárias e arcar com o inevitável ônus de impopularidade e desgaste com a base aliada, a fim de deixar tudo em cima para Lula retornar em 2014, em clima de Copa do Mundo e Olimpíada. Como se sabe, as coisas não saíram como previsto, e Dilma virou um abacaxi. É evidente que seu governo foi um dos mais medíocres da história da república, mas se ela pouco pode apresentar de seu na presente campanha, por outro lado, seu partido ainda conta com respeitável capital eleitoral acumulado nos oito anos bem sucedidos de Lula. Mas por que ele ainda conta com a faxineira?

Atualmente, minha convicção é que o novo papel que coube a Dilma Rousseff é ser boi de piranha do PT. Lula não quis ser candidato - se ele fosse, não tenho dúvidas de que levaria, mas o problema é que os ventos favoráveis de seu primeiro mandato não existem mais, e um novo mandato destruiria a imagem que ele criou. Lula prefere preservar-se, outros petistas também, então Dilma serve como boi-de-piranha: se perder, sem problema, ela já está queimada mesmo; se vencer, quem vai se queimar nos próximos quatro anos é ela, ao enfrentar a recessão que vem por aí, inevitável rescaldo dos erros na política econômica da era petista. Para o PT, o melhor é tirar o time de campo e esperar tempos melhores. Deixar a rebordosa para um "neoliberal" consertar, arcar com o ônus da impopularidade, e depois, com a casa arrumada, voltar com tudo para fazer novo bonitão.

O problema é que daqui a uns anos, o próximo bonitão poder não ser do PT, mas do PSol...

domingo, 20 de julho de 2014

De novo a maioridade penal

Frequentando os forum´s da net, é fácil notar como certos temas são recorrentes. Um assunto que sempre volta à baila é a diminuição da maioridade penal, mais uma vez comentada aqui no Centro de Mídia Independente.

A argumentação é geralmente passional. Afirma-se que o governo quer declarar guerra à juventude, ou que, como escreveu o autor do post, daqui a pouco vão prender os nascituros. Quanto a mim, sou a favor da diminuição da maioridade penal, medida já tomada pela maior parte dos países do mundo, inclusive nossos vizinhos. Só não concordo que será uma solução mágica para a questão da criminalidade. Para tal, não basta reduzir a idade mínima para se condenar alguém à prisão: é preciso reformar toda a legislação penal, aumentando a duração das penas e diminuindo os recursos. A criminalidade atual é alta porque há muito mais bandidos fora da prisão do que dentro da prisão, portanto, só vejo uma única maneira de diminuir o crime: aumentar a população carcerária.

Muitos discordarão aos berros de meu argumento acima. Imbuídos de uma concepção rousseanica do ser humano, aquela que afirma que as criaturas nascem boas e são corrompidas pela sociedade, eles acreditam que ninguém é bandido, mas está bandido, premido pelas necessidades materiais. Atendidas essas necessidades materiais, o crime desapareceria. Mais escolas, menos cadeias, dizem. Essa proposta faria sentido uns 80 anos atrás, quando boa parte do povo vivia longe de escolas, e sem instrução, as pessoas não conseguiam emprego e acabavam entrando para o crime. Mas na época atual, a maioria das favelas está encravada próximo ao centro das cidades, onde bem ou mal, não faltam escolas públicas. O fato é que os jovens de hoje não entram para o crime por falta de opção, mas pela existência de uma opção mais atraente do que aquela de ficar na escola para depois arranjar um empreguinho. Trabalhar para os traficantes dá ganhos muito maiores e razoável chance de impunidade, como qualquer garoto de favela vê com seus próprios olhos todos os dias. Com quem estão os tênis mais caros e as garotas mais gostosas da comunidade?

Se é assim, então, longe de mandar os bandidos para a escola, o que urge fazer é tira-los da escola, para que cessem de ameaçar e corromper seus colegas, e manda-los para a prisão, que é o seu lugar. Evidente que essa solução demanda que sejam construídas mais prisões. Considerando o estado das prisões atuais e o usual descaso com que são tratados os detentos, não é difícil concluir que toda essa grita histérica contra a diminuição da maioridade penal não revela nenhum traço de humanismo, mas é um subterfúgio para se diminuir os gastos com segurança e reservar os recursos existentes para objetivos populistas que propiciem um retorno mais rápido em votos. Afinal, construir cadeia não dá voto, e soltar presos é mais barato que prendê-los.

Ao contrário do que afirmava Rousseau, o ser humano não é naturalmente bom. Todas as criaturas nascem naturalmente más - ou alguém já viu um bebê ceder voluntariamente sua mamadeira para outro? - e são justamente as coerções derivadas das mediações necessárias para viabilizar a vida em sociedade que tornam o indivíduo bom. Essas coerções precisam existir, pois em locais onde há um apagão delas, como nas favelas , o crime explode, revelando a natureza má do ser humano. O mais é conversa de quem só pensa na próxima eleição.

sábado, 12 de julho de 2014

De novo a inflação

Agora que a copa do mundo acabou, estamos livres para voltar à discussão de nossos velhos problemas. A bola da vez é a inflação. Diz a claque petista, agora que a revista Veja falhou em acusar o governo pelo fracasso na organização da copa, mudou de assunto e acusa o governo pela volta da inflação, objeto de um artigo no último número, apontando os riscos de liquidação do Plano Real. Recentemente o assunto voltou a ser objeto de um post no Centro de Mídia Independente, conhecido ponto de encontro de palpiteiros que, se não pode ser considerado uma fonte de artigos inteligentes, ao menos fornece uma boa amostra do que vai pela cabeça de nossos pretensos intelectuais - afinal, como já tive inúmeras vezes a oportunidade de observar, estudos ruins frequentemente dão bons objetos de estudo.

Quem teve a paciência de seguir o link e ler o post deve ter se deparado com uma coleção de argumentos bem destrambelhados. Não vou entrar em detalhes aqui, mesmo porque já dei uma resposta no citado fórum. Mas uma impressão que eu tenho é recorrente: o fim da inflação causou um mal disfarçado desagrado em muita gente por aí. Parece que esse pessoal preferia que a inflação não houvesse acabado.

Por que? Respondo sem dificuldade. Porque o sonho desse pessoal é trabalhar no governo, entrando por indicação de algum político ou movimento social. E inflação não é problema nenhum para quem emite o dinheiro - ou seja, para o governo. Inflação é problema para quem usa o dinheiro.

Para quem emite o dinheiro, longe de ser problema, é solução. Basta aumentar a velocidade da impressora da Casa da Moeda que a mágica está feita: os rombos das contas do governo estão cobertos, e a fatura vai para o desditoso usuário do papel-moeda. Qual governante não sonha com isso? Qual cidadão comum não sonhou ao menos uma vez na vida em fazer compras no shopping e mandar a conta para o vizinho?

Emitir dinheiro sem lastro causa o mesmo efeito que imprimir notas falsas. Quando se diz que o índice de inflação é 6%, o que se quer realmente afirmar é que, de cada 106 reais em circulação, 6 são notas falsas. É claro que o governo não pode fazer como antigamente, mas não custa impingir uns reaisinhos de mentira em meio aos verdadeiros... de leve... só 6 em cada 100, né? É como o ex-alcoólatra olhando para um copo. Mas a Dilma diz, toda empertigada, que não pode baixar mais a inflação porque, se assim fizer, estará aumentando o desemprego. Ora, empregos criados com dinheiro de mentira nada mais são que empregos de mentira, gerados à custa da diminuição do poder aquisitivo daqueles que já estão empregados! É como se o seu patrão chegasse para você e dissesse: vou descontar 6% de seu salário para criar um emprego para o seu colega que está desempregado. Ou se preferir, é como se fosse um imposto invisível, com a vantagem de que pode ser lançado sem aquela chatice de comprar deputados.

Muitos políticos desejam ardentemente ter de volta o prático imposto inflacionário, e no povão, a cultura inflacionária está tão arraigada que, para o senso comum, combater inflação é sinônimo de arrocho salarial e desemprego. O PSol promete reposições mensais da inflação, e ninguém se lembra de perguntar se, ao invés de fazer reposições mensais, o melhor não seria acabar com a inflação. No fundo, todos sonham retornar aos gloriosos tempos quando qualquer economista de meia-tigela podia reinventar a economia e a roda uma vez por semana, uma zorra tão grande que até alguém como José Sarney pôde fazer pose de populista com seu Plano Cruzado e a moratória da dívida. Olham com os olhos esbugalhados de inveja para os índices de 60% da Venezuela e da Argentina. Mas há uma diferença fundamental: a militância de Chávez e Kirshner é armada, a militância petista é desarmada. O PT depende de eleição, e voto só se ganha com o povo satisfeito em poder comprar uma geladeira nas Casas Bahia pagando em quinze vezes. Se deixar a inflação voltar, babau: a carruagem volta a ser abóbora, e os milhões que passaram à classe C voltam à classe D. O remédio é maldizer FHC.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

A hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude

Li recentemente um artigo de José Maria e Silva, reproduzido aqui no Jornal Opção, comentando uma recente reportagem do Fantástico sobre os privilégios que são concedidos nos presídios aos líderes das facções criminosas. Não é novidade. Sabe-se há tempos que os líderes de tais facções gozam nos presídios de inúmeros privilégios inconcebíveis para bandidinhos comuns, como celas bem equipadas, comida farta, o direito de realizar festas e churrascos, receber mulheres, e principalmente comandar seus negócios por telefone e extorquir os outros presos. O que José Maria chamou atenção foi para o enfoque distinto que a reportagem da Globo deu ao secretário de segurança de Goiás, do PSDB, e o secretário de segurança do Rio Grande do Sul, governado pelo PT.

Edemundo Dias, o secretário de segurança de Goiás, foi acuado pela reportagem. Com ar de pobre coitado, deu algumas desculpas esfarrapadas e tentou impedir o acesso das câmeras ao interior do presídio. Já Airton Michels, secretário de segurança do Rio Grande do Sul, foi mostrado muito empertigado em sua poltrona, admitiu abertamente a existência de regalias nos presídios para os chefes das facções, e justificou-as dizendo que, não fosse assim, haveria uma tragédia. Edemundo Dias foi exonerado pelo governador, Airton Michels permaneceu no cargo. Pareceu-me que o principal propósito de José Maria, em seu artigo, foi mostrar que a Globo é parcial entre seu tratamento a um governo tucano e a um governo petista. Mas a comparação me lembrou um antigo adágio: a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.

Hipocrisia é feio. Edemundo Dias foi hipócrita. Airton Michels foi sincero. E no entanto, estou convicto de que Airton agiu muito pior do que Edemundo. Lembrei-me de um episódio ocorrido logo no início do primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, lá pelos idos de 1983. Naqueles tempos ainda relativamente inocentes, o jogo do bicho ainda era um caso de polícia. É claro que todos sabiam que a polícia não reprimia coisa nenhuma e que os governadores recebiam caixinha dos bicheiros. Como Brizola enfrentaria o problema? Para surpresa geral, o governador declarou em alto e bom tom que não reprimiria o jogo, afirmando que a polícia tinha coisa mais importante a fazer. No clima político da época, com a volta dos exilados e enorme expectativa de mudanças, tal declaração chegou a soar como alvissareira: até que enfim um governante deixava de lado a hipocrisia! Mas eu, apesar de haver votado em Brizola (era jovem, né?) senti naquele dia um certo frio na barriga. Uma sensação de perda, de haver ultrapassado uma certa barreira e estar ciente de que não poderia voltar atrás e as coisas nunca mais seriam como antes. Em termos práticos, a decisão de Brizola não mudou nada, pois o jogo ilegal já não era mesmo reprimido, e havia de fato problemas de segurança mais urgentes. Mas em termos simbólicos, o impacto foi enorme: aquela foi a primeira vez que eu vi um governante democraticamente eleito afirmar na cara dura que não ia cumprir uma lei, e ficar por isso mesmo. E as coisas, realmente, nunca mais foram como antes.

Brizola recusou ser hipócrita. Airton Michels recusou ser hipócrita. Mas a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.

sábado, 21 de junho de 2014

As vaias da Dilma

Já gostei de futebol a ponto de ter sido um frequentador assíduo de estádios, hoje em dia não acompanho mais. Mas difícil é deixar de falar de futebol em época de copa do mundo.

A meu ver, a copa no Brasil começou até bem. Os problemas técnicos e logísticos foram menores que o esperado. Os baderneiros de sempre mal chamaram atenção. E os jogos têm sido bons. Comecei a ficar otimista depois que vi a festa de abertura, pois antes tinha dois medos. O primeiro, que fosse uma festa espetacular e cheia de pirotecnias tecnológicas de custo altíssimo, o que me faria ter a sensação das notas voando do meu bolso, pois obviamente quem paga isso tudo somos eu e você. Mas a festa foi simples e não deve ter custado muito. O segundo medo foi que houvessem resolvido fazer uma festa "genuinamente brasileira" para gringo ver, o que significa muita mulata rebolando para nos fazer alvo de escárnio lá fora. Mas artisticamente a festa foi anódina, não teve mulata de bunda de fora, e na verdade não teve nem um sambinha, de que senti falta. Não teve sambista, mas teve um funkeiro, sinal dos tempos. Alguém decidiu que a representação autêntica de nossa cultura popular não é mais o samba, e sim o rap importado dos guetos negros norte-americanos, e assim ficou resolvido. Mas estou me desviando do assunto, ia falar da nota triste da festa: a vaia que Dilma levou.

Por mais que eu seja contra a Dilma, não posso deixar de ficar envergonhado com a grosseria de meus compatriotas. Felizmente poucos dos estrangeiros presentes deve ter entendido as palavras de baixo calão. Achei a vaia, sobretudo, incoerente: se eles são contra a copa, como os manifestantes que andam por aí gritando, então o que eles estavam fazendo no estádio? Mas a réplica da Dilma foi ainda mais incoerente: culpou a elite. Segundo declarou, as vaias que ouviu não vieram do povão, mas da tal de elite. Concordo. A julgar pelo preço dos ingressos, quem estava ali, decididamente, não era o mesmo povão com que eu me imiscuía ombro a ombro nos tempos em que eu frequentava estádios de futebol. Mas se Dilma queria escutar os aplausos do povão que,  segundo crê, lhe dá apoio, então por que foi fazer uma copa em que só a elite pode ir ao estádio? Incoerente. Na copa de 50, um em cada dez habitantes da cidade do Rio de Janeiro estava no estádio no dia da final. De lá para cá, copa do mundo deixou de ser diversão de massas. Então, Dilma, que ature você a elite!

Eu de qualquer modo já deixei de acompanhar futebol, para mim tanto faz. Mas vou torcer para que a copa seja um sucesso, a fim de que não passemos mais vergonha ainda.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Futebol e Racismo

Lendo por acaso sobre futebol (é difícil evitar, nessa época de copa do mundo) por acaso lembrei-me do primeiro artigo que escrevi sobre o racismo no Brasil, tentando explicar sua peculiaridade, e porque é diferente do racismo norte-americano. O que tem a ver, afinal, futebol e racismo? Explico mais adiante.

A tese que defendi no artigo citado foi de que o racismo brasileiro sempre foi, historicamente, diferente do racismo norte-americano, porque nos EUA o racismo foi motivado sobretudo pela reação da classe trabalhadora branca contra a entrada daquela mão-de-obra barata em seus locais de trabalho e de residência, colocando em risco seu padrão de vida. Não que o racismo seja exclusivo da classe trabalhadora, é claro. O branco rico também é racista, mas na prática, ele raramente tem que se confrontar com negros, posto que esses estão excluídos a priori dos locais que frequenta, não por serem negros, mas por serem pobres. Diferente do que acontece com o branco pobre, que a toda hora tem que entrar em disputas com negros, e por esse motivo o racismo vindo da classes trabalhadoras seria mais vicioso - por assim dizer, seria um racismo padrão norte-americano, ao passo que o racismo mais subjetivo vindo dos ricos, calcado em desprezo e indiferença, seria um racismo padrão brasileiro.

Entretanto, lendo a história do futebol no Brasil - afinal, futebol também é História - notei que, no início do século 20, o futebol foi um dos poucos ramos de atividade da sociedade brasileira onde já existiu um racismo explícito e organizado - inclusive fiquei sabendo que fazia parte de estatutos de clubes o fim da cessão de patrimônios como campos e sedes da parte de seus sócios-proprietários, caso no futuro os clubes viessem a aceitar atletas negros. Também ocorreram diversas cisões de ligas, com clubes abandonando suas ligas originais e fundando outras quando aquelas permitiam a entrada de clubes que aceitavam negros. Esse estado de coisas durou até a implantação definitiva do profissionalismo nos anos 30, e a tese do artigo era essa: foi o profissionalismo que acabou com o racismo no futebol brasileiro. Tudo fecha: o futebol foi uma das poucas áreas onde houve disputa ferrenha entre bancos e negros no Brasil, coisa que naquela época não acontecia nas fábricas, dominadas por operários imigrantes, geralmente italianos e portugueses, enquanto a maioria dos negros ainda vivia no campo. Isso confirma a minha tese, e também outra ideia que lancei: que a cura definitiva para o racismo é a meritocracia. Onde existe a busca pelo lucro e somente pelo lucro, não há espaço para critérios raciais, e por este motivo foi o profissionalismo que matou o racismo no futebol brasileiro. No mundo atual, existe o exemplo de Singapura, uma pequena cidade-estado onde convivem etnias bem distintas como os malaios, os indianos e os chineses, mas não se verificam ali os choques inter-étnicos tão comuns naquela parte do mundo, justamente porque Singapura é uma sociedade profundamente competitiva, com mão-de-obra altamente qualificada, onde impera a meritocracia. A meritocracia dissolve o racismo.

É nesse ponto que recaímos mais uma vez na discussão das cotas para negros e índios em universidades. O assunto foi mais uma vez discutido no Centro de Mídia Independente, aqui nessa postagem. Minha opinião: no Brasil, o funil de acesso ao nível superior é tão estreito, e o nível do ensino já é tão ruim, mesmo sem cotas, que acredito que as coisas não vão mudar muito, e que o nível acadêmico dos alunos cotistas, e mesmo o seu nível social, não seja muito diferente daquele dos alunos não-cotistas. Aí o governo pode fazer o seu bonitão sem correr muito risco. Mas se começarem a inventar cotas e mais contas, enchendo as universidades públicas de alunos sem preparo, todos sabem muito bem qual será a consequência: as universidades públicas se tornarão tão ruins quanto hoje são as escolas secundárias públicas, o mercado de trabalho rejeitará os formados, e o único meio de conseguir um bom emprego será ter dinheiro para cursar uma boa faculdade privada.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A falácia da Democracia Direta

O assunto quente do momento é a tal PNPS, Política Nacional de Participação Social, proposta do governo que tem o inocente objetivo de dar visibilidade e voz a “órgãos da sociedade civil” – em outra palavras, a uma miríade de movimentos sociais articulados com o PT, ou com ONG´s que têm ligações com o PT. Para bom entendedor, vê-se logo que é mais um subterfúgio para solapar os poderes da república, o legislativo e o judiciário, que o PT ainda não conseguiu controlar. Mas o pretexto é bom: as recentes manifestações mostram que o povo está descontente com a tal democracia representativa, e o melhor seria substitui-la pela democracia direta dos conselhos, pelos quais a sociedade civil efetivamente se autogovernaria.
 
Não é uma desculpa qualquer: as vantagens da democracia direta sobre a democracia representativa são flagrantes, tanto que todos nós a praticamos sempre que possível – por exemplo, quando é necessário fazer uma reunião de condôminos para decidir a reforma da portaria, ninguém cogita pagar salários a políticos profissionais para representa-lo na assembleia: todos comparecem e discutem pessoalmente. Mas há o outro lado. Uma assembleia de condôminos só tem autonomia para deliberar sobre assuntos que dizem respeito unicamente àquele condomínio. Se vai ser debatida alguma obra que afete o quarteirão inteiro, faz-se necessário fazer um assembleia maior, reunindo o pessoal de todos os prédios. Se trata-se de algo que afeta a rua inteira, a maioria preferirá deixar o assunto para a prefeitura. Um mundo governado por sovietes só é possível se for um mundo constituído de aldeias auto-suficientes, sem nenhuma interdependência. Pois havendo um mínimo de interdependência, surge logo a possibilidade de uma medida ser vantajosa para uma comuna e desvantajosa para a outra. Então, quem vai fazer a mediação? Ou reúnem-se todas as assembleias comunais em um enorme estádio e passam o resto do ano discutindo, coisa obviamente inexequível, ou cada assembleia envia delegados a uma espécie de soviete supremo – e a partir do momento em que ocorre essa delegação, acaba-se a democracia direta e recai-se em algum tipo de democracia indireta.
 
É verdade que já houve um momento no passado em que ouviu-se o brado: todo o poder aos sovietes! Mas na Rússia revolucionária de 1917, os sovietes só detiveram o poder por poucos meses, quando o estado havia se desintegrado e o país estava em guerra civil. Tão logo a guerra foi vencida e o estado organizou-se, os sovietes foram relegados às questiúnculas internas de suas respectivas comunas, e o poder de fato passou ao partido único e seu séquito de burocratas, que passaram a tomar as decisões que afetavam a totalidade do povo. Se a Rússia de 1917 já não era uma constelação de comunas interdependentes, muito menos esse modelo se aplica ao atual mundo globalizado. Vemos, então, o verdadeiro propósito daqueles que propagandeiam a democracia direta: desautorizar os parlamentos onde a oposição tem maioria, substituindo-os por uma miríade de conselhos sem poder nem importância, e no vácuo de poder assim criado, instala-se o partido único e o Grande Líder. Em toda parte onde proclamou-se a democracia direta, viu-se a hipertrofia do poder executivo e a instauração de uma ditadura pessoal, não raro dando origem a uma dinastia familiar – foi assim na Rússia, na China, na Coréia do Norte, em Cuba, na Venezuela, na Bolívia. Não sei se o PT conseguirá fazer o mesmo por aqui, mas seu plano parece-me óbvio: se o PT vencer as eleições, ele manda os “órgãos da sociedade civil” irem pastar. Se o PT perder as eleições, ele utiliza-se desses órgãos para infiltrar-se no novo governo. O problema mesmo vai ser se esses tais órgãos, sovietes ou assembleias comunais acreditarem que são mesmo independentes e começarem a agir por conta própria, tal como já está acontecendo na Bolívia, onde cada aldeia de remanescentes de índios julga-se um Estado independente. Aí pode acontecer com o PT o mesmo que aconteceu com o aprendiz de feiticeiro: começa a mágica, e depois não consegue para-la.

sábado, 31 de maio de 2014

A Síndrome de Joaquim Barbosa

Recebi com certo alívio a notícia de que Joaquim Barbosa pretende antecipar sua aposentadoria, pois já ando meio cansado de ouvir falar dele. Nunca lhe tive grande simpatia, sempre pareceu-me arrogante e um tanto recalcado. Mas cumpriu a sua obrigação, e pronto.

Apesar de sua notória falta de marketing pessoal, Joaquim Barbosa tornou-se, fora de dúvida, o personagem mais importante do ano em um país de astral em queda, governado por uma presidente que não tem o menor carisma. Vai explicar uma coisa dessas! Eu chamaria o fenômeno de a Síndrome de Joaquim Barbosa.

Ele é o tipo de cara que não tem o menor encanto pessoal, mas que a gente não consegue tirar da cabeça. Está em toda parte. Embora os mensaleiros tenham sido condenados pelo colegiado do STF, a impressão que todos têm foi de que a condenação foi obra unicamente do Joaquim Barbosa, como se ele tivesse tal poder. Eu noto principalmente nos forum´s e redes sociais que frequento: nunca vi alguém ser tão malhado em tão pouco tempo. Parece até trauma. Divirto-me sobretudo de ler os insultos racistas vindos daqueles que até a pouco se esmeravam em apontar o racismo alheio! A opinião geral é que o JB seria um caso típico do Preto Que Queria Ser Branco, aquele conhecido arquétipo do lambe-botas oprimido que deseja tornar-se opressor. Quanto a isso, não estou dentro da mente dele para saber, mas parece-me óbvio que o dito cujo só chegou ao STF em razão da cor de sua pele, fato que obviamente não será reconhecido em voz alta nem pelo próprio, nem por quem o nomeou. Divirto-me também com a grita histérica acerca de supostos atos ilegais que teria cometido, como a compra de um apartamento sala-e-quarto em Miami pela exorbitante quantia de 500 mil dólares, preço de um sala-e-dois quartos na zona sul do Rio de Janeiro. Acusam-no de ser um agente da elite perversa contra o governo popular, esquecidos de que foi nomeado pelo PT, tal como a grande maioria do atual plenário do STF.

Uma coisa a Síndrome de Joaquim Barbosa me fez perceber: a grande maioria dos comentaristas de esquerda que pululam na net, que eu julgava serem uns porra-loucas ultra radicais que acham o PT de direita, são na realidade chapas-brancas petistas. Essa me surpreendeu, apesar de eu não me surpreender mais com muita coisa nessa altura da vida. Por que essa histeria toda? Será que temem que seu o intento mais pragmático seria lançar-se como candidato por um partido de direita, após a construção de sua imagem? Essa tese já foi definitivamente enterrada, pois agora ele não pode mais se candidatar. Vai em paz, Joaquim Barbosa. E deixa de ser chato.

terça-feira, 20 de maio de 2014

O PT e a Carroça de Platão

Li em algum lugar que a resposta ao porquê da paralisia do governo Dilma talvez esteja em Platão e sua carroça. Platão afirmou que é difícil dirigir um carro puxado por dos cavalos diferentes - um bom marchador e outro manco e lerdo. É o caso do governo Dilma. É a síndrome de um governo dividido entre os arroubos bolivarianistas e as necessidades palpáveis.

A principal diferença entre o governo petista e os demais governos bolivarianos que se instalaram em nosso continente a partir do século 21 reside no fato de que aqueles governos chegaram ao poder no bojo de um movimento revolucionário, enquanto o PT chegou ao poder pelas urnas. Aqueles governos têm a seu dispor uma militância armada, enquanto a militância petista é desarmada e o partido depende das boas graças do eleitorado para manter-se no poder. E o PT, ou ao menos a cúpula petista, sabe muito bem que a atual satisfação do eleitorado origina-se da estabilidade econômica herdada dos tucanos, a qual permitiu a expansão do crédito e do consumo. É essa a verdadeira causa da melhora do padrão de vida experimentada por boa parte da população, pois de resto os salários aumentaram muito pouco, e as tão faladas bolsa só atendem a parcelas muito pobres da população, de modo que o PT sabe muito bem: se deixar a inflação voltar com força total, a carruagem vira abóbora de novo. Os milhões que passaram para a classe C voltam para a classe D, e os eleitores batem as asas.

Mas há o outro cavalo, representando o rebotalho das ideias do velho PT e tocado pelas bases militantes. Até o momento essas bases militantes estão entretidas com o chamado marxismo cultural, mas o marxismo cultural não é tão inócuo quanto parece, nem custa tão barato - haja visto o as dezenas de ministérios criadas para acolher a cumpanherada! Ainda não foi criado aqui o Ministério da Felicidade Socialista, como na Venezuela, mas estamos a caminho. Talvez não cheguemos ao bolivarianismo, verdadeira meta dos cumpanheros, mas podemos voltar ao falido nacional-estatismo que vigorou até os anos oitenta. Aí teremos que chamar alguém que queira bancar o "neoliberal" para endireitar tudo de novo e, talvez, entregar de bandeja para um novo ciclo populista, capitaneado pelo PSol. Ou então aprendemos a lição de uma vez. Quem viver, verá.


domingo, 11 de maio de 2014

Novo artigo

Acabei de publicar um novo artigo, tratando de um tema sempre recorrente nas discussões dos forums políticos: a tal da Elite, que é ela, com ela é e porque é tão maléfica. Procurei traçar um painel histórico de como formou-se a nossa elite. Reproduzo abaixo:


O consenso geral é que somos governados por uma Elite, ou por “elites” no plural, e isso é mau. Urge apear a Elite do poder, o problema é que ninguém sabe apontar com exatidão que Elite seria essa, exceto que seus integrantes são sempre os outros.

Mas percebo aí um esforço inútil, pois a meu ver, o destino de ser governado por elites não se deve ao poder haver sido conquistado por um grupo específico, mas é de fato uma contingência da seleção natural. Vale a comparação com um time de futebol: todos os jogadores, obviamente, desejam ser titulares, mas se não puderem sê-lo, preferem que os titulares sejam os melhores entre eles, pois é melhor ser reserva de um time vencedor do que de um time perdedor. Interessa ao bem comum que os encarregados de executar determinada função sejam aqueles que, por este ou aquele motivo, sejam os que têm melhor condições de realiza-la, pois do contrário, todos sairão perdendo. Então é isso: nosso destino é sermos sempre governados por uma elite ou outra, ainda que seja a elite dos mais ousados ou a elite dos mais descarados. Ou a elite dos mais bem colocados no partido.

A esta altura muitos já estarão bradando: as elites dominantes a que me refiro são elites econômicas, oligarquias! Mas essa afirmação também me parece uma redundância. Uma vez que o dinheiro é sempre desejado, todos os membros de uma elite qualquer terminam por ascender à elite econômica, à medida em que trocam por dinheiro a habilidade específica que os faz membros de uma elite específica. Os profissionais altamente qualificados conseguem altos pagamentos. Os artistas e esportistas de talento conseguem prêmios. O empresário com tino para os negócios prospera. Mas isso é particularmente verdadeiro quando se trata de elites políticas, onde a conversibilidade entre poder e dinheiro é sempre fácil. Os honorários que uma autoridade recebe são suficientes para torna-lo parte de uma elite econômica, ainda que não receba nada além desses honorários. Enfim, a elite econômica “atrai” as outras elites; isso é um fenômeno que, em estatística, chama-se um atrator. Funciona também no sentido oposto: o dinheiro pode comprar o ingresso em outras elites; por exemplo, o ingresso em boas escolas que tornarão o aluno membro de uma elite intelectual, o ingresso em círculos de pessoas influentes que abrirão as portas para outras elites, etc. Enfim, de qualquer ângulo que se olhe, sempre veremos uma elite econômica hegemônica. Quem tenta mudar isso é como o cachorro que corre atrás do próprio rabo.

Mais inteligente do que correr atrás do próprio rabo é procurar descrever as elites existentes passando ao largo da abordagem marxista, que vê a Elite como um bloco monolítico, distinto e elementar, que deve ser removido tal qual a pedra que está no caminho e deve ser explodida para a construção da estrada. Mesmo porque traçar um retrato das elites é, em grande medida, fazer um resumo histórico e antropológico, uma vez que as elites concentram em si atributos que são valorizados por todo o resto da população: a elite é sempre superior à média, e uma elite ruim nada mais é do que o sintoma de uma média pior ainda. Procurarei então responder: como se formaram as elites brasileiras, e por que elas são assim?

Esta pergunta só pode ser respondida com o conhecimento da História. E houve um tempo, nem tão distante assim, em que nossa elite rica dominante não era, em sua maioria, uma elite intelectual. Numerosos relatos de comentaristas estrangeiros em viagem pelo Brasil do século 19 dão conta do aspecto tosco, e mesmo grotesco, dos ricos nacionais. Mesmo em época mais recente, os folclóricos coronéis do sertão eram indivíduos de pouca instrução, muitos até semianalfabetos, e isto ficou impresso na cultura popular, onde os velhos coronéis são mostrados como roceiros de bota e chapelão, falando errado ou com pesado sotaque, habitantes de grotões do interior e desinteressados de qualquer coisa que não tivesse relação com as lides de suas fazendas. Conforme comentou JJ Chiavenatto ao abordar o fenômeno do coronelismo, não havia grande diferença entre o coronel e os jagunços que comandava, o que inclusive facilitava o diálogo entre ambos: “no fundo, todos eram vaqueiros. Os que garantiam a posse da terra mandavam, os demais obedeciam”. Por este motivo, os esquematismos intelectuais consagrados à abordagem Elite Aristocrática X Povo com frequência não se aplicam à História do Brasil. Como explicar, por exemplo, que a república foi proclamada por uma elite de latifundiários cafeicultores? A aristocracia da terra não deveria ser monarquista?

Isso é verdade, sim, no que diz respeito à Europa: todos sabem que os nobres da terra eram aliados dos reis. Mas isto é perfeitamente explicável quando se reconstitui o modo como se formou esta nobreza. Se recuarmos o suficiente no tempo, inevitavelmente chegaremos a uma época em que tanto os antepassados do rei quanto os antepassados dos nobres eram chefes guerreiros aliados. Conforme a sorte dos campos de batalha, os acordos e os casamentos, uns se tornaram suseranos, e outros vassalos, nascendo aí uma lealdade e um senso de honra que atravessaram as gerações, e de fato perduraram até bem após o fim do feudalismo, quando os nobres já não eram mais que funcionários do governo, e o passado guerreiro tornara-se uma lembrança. O mesmo não ocorreu no Brasil colonial, onde aliás nunca existiu feudalismo, existiu escravidão, que não é a mesma coisa. Diz o senso comum que nossa elite foi formada por donatários e fidalgos que receberam cartas de sesmaria e tornaram-se senhores de engenho, e não falta quem acredite que os latifundiários brasileiros descendem todos de uma linhagem que vem desde os tempos das capitanias hereditárias. A realidade foi diferente. As cartas de sesmaria eram pouco mais que formalidade, pois na época colonial, e mesmo muito depois, ter a posse efetiva da terra não dependia da assinatura de um rei distante, mas da capacidade de conquistar e manter pela força aquela porção de terra, derrotando índios, posseiros e senhores de engenho rivais. Desde muito cedo, os latifundiários brasileiros perceberam que naqueles sertões distantes, eles não dependiam de um governador ou vice-rei, mas sim de si próprios, particularmente de sua capacidade de ter homens armados sob seu comando. De fato, para aquilo que se possa chamar de nobreza rural brasileira, as autoridades metropolitanas eram vistas mais como um empecilho do que como garantia de sua posição social. É sabido que os “homens bons”, aristocracia que compunha as câmaras de vereadores das antigas vilas, frequentemente ignoravam as leis, ameaçavam e corrompiam os funcionários do governo, e isso mudou pouco entre Mem de Sá e Tiradentes.

Tendo nossa elite sido formada assim desta maneira tão bruta e desvencilhada de qualquer ordem ou autoridade, é fácil entender porque esta elite não se conforma ao conceito de “aristocracia” consagrado pelo senso comum. Se os ricos da terra pareceram tão rudes e grosseiros aos olhos dos comentaristas estrangeiros, era porque de fato assim o eram. Muitos fidalgos que receberam terras não conseguiram mantê-las, e muitos posseiros que foram audazes o suficiente e conseguiram eliminar os rivais, aumentaram suas posses e tornaram-se grandes latifundiários. Mas continuaram ignorantes, bem como seus filhos e netos. Isto acontecia até época recente, basta ler os romances de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Boa parte de nossa elite tem raízes no populacho, e por este motivo mesmo, boa parte de nossa elite não era branca, mas cabocla, o que não deixou de ser mencionado pelos comentaristas estrangeiros. Por aí se vê como soa falso o epíteto “elite branca racista” tanta vezes invocado, bem como a afirmação, que passa por verdade histórica, de que a elite brasileira fomentou a imigração europeia com a finalidade de branquear a população. Nessas horas me vem à mente aquela conhecida gravura publicada em um periódico alemão de meados do século 19, mostrando dois imigrantes brancos puxando um arado sob o chicote de um capataz negro. Era mais ou menos isso o que acontecia nas fazendas da época: a imigração foi promovida, não com o objetivo de embranquecer a população, mas com o objetivo de prover os fazendeiros de novos escravos, em substituição aos africanos que não podiam mais ser traficados. Nossa elite, na época, não era racista por um bom motivo: esta mesma elite não era branca, e se foi embranquecendo nos anos seguintes, isso deveu-se justamente ao influxo desses novos escravos brancos, à medida em que eles prosperavam e eventualmente ingressavam na burguesia. Examinando-se hoje um catálogo da FIESP, dificilmente se encontrará ali algum descendente de barões do café.

A Elite, tal como concebida pelos observadores marxistas, não passa de um totem. Mas examinada tal como é, tem a revelar sobre nossa história e sobre quais fórmulas são bem sucedidas aqui.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Agora, ao menos os mortos têm nome

A recente morte do dançarino do morro do Pavão-Pavãozinho, ao que tudo indica assassinado por policiais, levantou mais uma vez as diatribes contra as UPP´s nas mídias virtuais. Acusam as UPP´s, além de cometerem abusos, de não estarem cumprindo seu suposto papel "social":

"...é que a contrapartida em aumento da oferta de serviços e infraestrutura para as áreas pacificadas não acontece no ritmo necessário, as novas vagas em creches e escolas, as novas unidades de saúde, as obras de saneamento e mobilidade que deveriam acompanhar as UPPs, ainda estão no papel"

" A violência do soldado nas vielas reflete não seu treinamento na corporação, mas o discurso virulento de extrema direita e discriminatório contra pobres e favelados, amplamente difundido na mídia e a política ?higienista? de ?limpeza urbana? para os grandes eventos de nossos governantes, bem como a falta de disposição de negociar dos mesmos com os movimentos sociais e a truculência com que trataram as manifestações populares"

A discussão completa pode ser encontrada no Centro de Mídia Independente:

http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2014/04/530956.shtml

Deixo aqui minha opinião:

UPP´s não são solução mágica, mas também é sandice afirmar que são inúteis. Se fossem, não haveria tanta gente fazendo campanha contra.

O caso é que as UPP´s se tornaram peça de propaganda eleitoral. É nesse ponto que entra um velho equívoco mais uma vez endossado pelo autor do post. É claro que essas obras são necessárias. Só que isso tudo não têm nada a ver com a violência e o crime. Julgar o contrário revela uma insistência, ou obsessão, em ver no crime um ato político: os favelados cometem crimes porque estão descontentes com a falta de creches, de saneamento de transportes; se o governo instalasse manilhas de esgoto e abrisse mais vagas em creches, os favelados supostamente deixariam de assaltar e de traficar drogas...
É nesse contexto que a violência policial se mistura ao espetaculoso: as favelas são servidas por cintilantes teleféricos. Qualquer um aqui sabe que teleféricos são para turismo, e não para transporte de massa; levam poucos passageiros e sua manutenção é cara e complicada. Mas são mais vistosos do que creches, sem dúvida...

Mas o problema, como eu já afirmei, é que as UPP´s se tornaram peça de propaganda eleitoral, então o governo não pode voltar atrás, ou ficaria desmoralizado. Só pode ir adiante. Fazer o que, então? Impingir à força policial um comportamento ético irretocável e um respeito absoluto aos direitos humanos, como sugeriu o autor do post? Todos sabem que nossa polícia não é assim, e uma tal lavagem cerebral de uma hora para outra é coisa do reino da fantasia. Outro equívoco repetido pelo autor do post é afirmar que a polícia age assim porque reflete o discurso de extrema direita discriminatório e higienista de nossa elite dominante. Isso é bobagem. O nosso policial vem do mesmo ambiente pobre povoado pelos marginais que combate, ele não tem nenhum motivo psicológico para se identificar com uma elite rica que nutre preconceitos contra os pobres. Veja o caso recente o dançarino assassinado: está ficando claro que tudo se originou de uma querela pessoal entre a vítima e um policial da UPP, por causa de uma motocicleta. A polícia age dessa forma por motivos pessoais, ela não está a serviço de nenhuma burguesia, e é tão bruta e ignorante quanto a maioria dos favelados.

Se as UPP´s estão brutalizando a população das favelas, isso, grosso modo, quer dizer que a polícia está trabalhando. Ela não sabe trabalhar de outra maneira. E está incomodando, sim, a inocentes, mas também a culpados. Retirar as UPP´s dos morros só fará voltar as favelas ao controle das milícias, que fazem exatamente o que as UPP´s estão fazendo, mas com duas diferenças: violência muito maior e cobertura da mídia muito menor. Antes, só víamos os cadáveres calcinados nos lixões. Agora, pelo menos, os mortos têm nomes.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Morreu, virou santo

Está sendo muito comentada a morte recente do escritor Gabriel Garcia Marquez, velho ídolo das esquerdas latino-americanas. É sempre assim: morreu, virou santo. Mas esse já era santo em vida. Era prolixo e tinha um estilo hermético, pouco inteligível, para não dizer incrivelmente chato. Mas como era de esquerda, não podemos dizer isso: se não compreendemos o que ele escrevia, então os burros somos nós, e não ele.

Eu me lembro de uma história que era muito contada nos anos sessenta, quando o pessoal engajado se reunia no cinema Paissandu para ver filmes "cabeça". Em determinada sessão de um filme do Godard, o projetista se equivocou e trocou os rolos do filme, fazendo a história ficar toda destrambelhada, com personagens que já tinham morrido reaparecendo, etc. Pois o pessoal não só não reparou, como ainda fez toda uma análise em cima da suposta narrativa não-linear em flashback do mestre...

Eu sempre achei que essa história era uma piada, mas quanto mais conheço os intelectuais esquerdistas, mais me convenço de que é verdade.

domingo, 13 de abril de 2014

O Balanço de 1964

Passada a onda de revisionismo dos cinquenta anos do movimento de1964, que uns chamam de golpe e outros de revolução, chamou-me a atenção, além da própria intensidade das discussões, a repetição de um sem-número de falácias acerca do evento, as quais tenho ouvido desde muito, tanto da turma dos apoiadores quanto da turma dos detratores. Agora que o bate-boca finalmente está esfriando, é um bom momento para enumera-las e decifra-las uma a uma. Vamos lá!


1)      O movimento foi fomentado pelos EUA.
Todos sabem muito bem que nos tempos da guerra fria, tanto os EUA quanto a ex-URSS e seus satélites intervinham ostensivamente em todos os lugares onde houvesse um movimento comunista efetivo ou potencial. No Brasil não foi diferente. É perfeitamente sabido que os EUA injetaram muito dinheiro nos partidos e organizações anti-Goulart. Mas o que até hoje causa realmente frisson na galera é a Operação Brother Sam, o envio da 4ª frota americana para apoiar os revoltosos. Fico impressionado como tantos a denunciam à boca pequena, como se tratasse de um segredo sujo. Mas eu me lembro muito bem: após 12 anos, em obediência ao regulamento da CIA, o documento foi desclassificado e publicado na imprensa. Foi em 1976. E saiu tudo lá: a 4ª frota americana fez um passeio, e no quinto dia, sem haver sequer chegado perto da costa brasileira, fez meia-volta e retornou, pois nenhum apoio era mais necessário. Estava inicialmente autorizada a somente enviar combustível aos revoltosos. O que aconteceria depois, caso Goulart resistisse? Haveria um desembarque? Bom, isso já é futurologia.
 

2)      Os comunistas estavam prestes a tomar o poder.
Não estavam, e isso ficou patente na ausência total de resistência, quando se dizia que Goulart tinha um formidável “dispositivo militar”. O poder dos comunistas foi grandemente superestimado, tanto por seus inimigos, o que era do interesse dos mesmos, mas também pelos próprios comunistas, o que foi desastroso para eles. Exatamente como já havia sido em 1935. Dizia-se que Goulart estava cercado de comunistas. Na realidade, os comunistas que cercavam Goulart eram os mesmos que antes cercaram Vargas e Kubitschek, a diferença foi que Vargas e Kubitschek puseram-se os comunistas a seu serviço, enquanto Goulart foi posto a serviço dos comunistas.
 

3)      Não havia guerrilha em 1964, e esta só surgiu depois do AI-5, como resistência à ditadura.
Muita gente acreditou isso, mas foi o insuspeito Jacob Gorender quem tratou de desmenti-lo em definitivo, em seu clássico Combate Nas Trevas: os primeiros grupos das Ligas Camponesas foram enviados para fazer curso de guerrilha em 1962, dois anos antes do golpe. É curioso afirmar que os guerrilheiros pós-AI-5 tinham como objetivo restabelecer a democracia, pois nenhum manifesto lançado por eles exigia a restauração da constituição de 1946 ou a volta do ex-presidente Goulart. Mesmo porque, na retórica dos guerrilheiros, o regime que havia aqui antes de 1964 não era democrático, mas tratava-se de uma “democracia burguesa” que devia ser derrubada e substituída por conselhos populares. Dizer como seria o regime instalado pelos guerrilheiros caso fossem vitoriosos é futurologia, mas tudo indica que seria inspirado pelo modelo cubano, que inspirava dez entre dez revolucionários sul-americanos na época. A esquerda só conformou-se à dita democracia burguesa após a anistia.
 

4)      Os revolucionários de 1964 não queriam o poder, mas apenas a restauração da ordem.
É mentira. Havia uma conspiração articulada desde a época do suicídio de Vargas, e esse esquema reunia essencialmente políticos udenistas com militares da ESG. Havia o consenso de que, pela via eleitoral, eles não chegariam ao poder, então aguardavam uma revolução providencial. Antes já haviam tentado impedir a posse de Juscelino e do próprio Goulart. Como se sabe, as coisas não saíram bem como planejado, e a maior parte dos conspiradores da época foi expurgada no momento em que supunham estar chegando ao poder.
 

5)      O dito Milagre Brasileiro foi uma época de extremo sofrimento para os trabalhadores, pois foi conseguido à custa da concentração de renda.
É uma interpretação maliciosa da realidade econômica e social da época, que procura passar a ideia de que os mais ricos enriqueceram à custa de empobrecer os mais pobres, como se estivessem subtraindo a renda destes. Houve de fato um aumento na concentração de renda. Mas a concentração de renda é nada mais que uma estatística que informa qual percentual da população detém qual percentual da renda nacional. A porção mais rica prosperou mais rápido que a porção mais pobre, daí haver aumentado sua participação na renda, em termos relativos. Mas em termos absolutos, tanto a renda dos mais pobres quanto a renda dos mais ricos subiu, e para quem é pobre, evidentemente o que importa não é o relativo, mas o absoluto. A prova disto foi a notória ausência de elementos das classes populares nos movimentos guerrilheiros, que contavam quase que exclusivamente com intelectuais, egressos do movimento estudantil, ex-militares e religiosos. Por este motivo mesmo os grupos guerrilheiros foram incipientes, e a própria dispersão das siglas – VPR, PCR, VAR, COLINA, MR-8, PCO, etc. - é uma evidência disto.
 

6)      Os governos militares foram entreguistas e submissos aos EUA
Uns mais, outros menos. De maneira geral, os militares deram prosseguimento ao modelo do nacional-estatismo que vinha desde os anos trinta, que preconizava forte presença do Estado na economia. Durante os quatro governos militares, a aplicação deste modelo oscilou entre sua vertente nacionalista (Vargas, Geisel) e sua vertente dita entreguista (Kubitschek, Castelo).
 

7)      O regime militar introduziu a tortura no Brasil
Já havia tortura antes, e continuou a existir depois. Mas era tortura a presos comuns, marginaizinhos pé-rapados, e esse fato não despertava comoção. O choque causado pela tortura durante o regime militar deveu-se sobretudo ao fato desta ser aplicada a jovens da classe média, indivíduos que, de acordo com a crença geral, não deveriam sofrer este tratamento.

 
8)      Havia menos corrupção / Havia mais corrupção na época
Os defensores do regime de 1964 afirmam que havia menos corrupção naquele tempo, e os detratores afirmam que havia muito mais, mas a censura não deixava a população saber. É evidente que havia corrupção naquele tempo, mas não é razoável supor que algum grande escândalo tenha permanecido oculto até hoje, tantas décadas após o fim da censura. A verdade é que a própria estrutura autoritária do regime tornava desnecessário maiores barganhas e compras de voto de parlamentares.