Entre os atributos brasileiros de que não gosto, o que mais
me incomoda – e talvez por isso mesmo, seja uma síntese de todos os outros – é
um excessivo caráter gregário. Brasileiro gosta de andar sempre em bando,
indivíduos introspectivos são mal vistos. As ligações familiares prolongam-se
além do núcleo familiar, e persistem pela vida adulta afora, muitos familiares
vivendo juntos. As amizades são tão numerosas quanto superficiais. Fala-se
sobretudo de um jeito caloroso, afetuoso de ser, que seria típico do
brasileiro. É nesse ponto que chegamos ao batido arquétipo do brasileiro
cordial, sobre o qual já me referi em outro artigo.
O que há de verdade nisto tudo?
Não me permito discordar, ainda mais que tenho exemplos
vivos em toda parte. O que eu discordo mesmo é da crença de que tudo isso tudo
seria uma idiossincrasia nossa. A meu ver, esses atributos são herdados. Todo o
mundo sabe que esse jeito de ser e de falar, de cumprimentar tocando e
beijando, é comum a todos os povos latinos sul-europeus, nossos ancestrais. A
insistência em apresentar esses traços culturais como invenção brasileira, a
meu ver, revela uma vontade de ver um “algo mais” neles. De minha parte, vejo
apenas um excesso de linguagem corporal e jogo de cena, hábito de mentir
educadamente. Conforme é sabido, nunca se deve despedir de um inglês dizendo
“aparece lá em casa”, ou ele aparecerá mesmo. Nós nos acostumamos a esses
estereótipos: os ingleses escondem as emoções que sentem, os latinos mostram as
emoções que não sentem. Os ingleses são individualistas, nós somos gregários. Mas
já que a proposta é extrair daqui algum significado antropológico profundo,
vamos lá: trata-se, a meu ver, da reminiscência de uma organização social
pretérita, orientada ao clã familiar. É por este motivo que nós valorizamos
mais as ligações afetivas e familiares do que quaisquer outras formas de
filiação, inclusive ideológicas e religiosas, conforme explicou Sérgio Buarque
de Hollanda, o criador do arquétipo de brasileiro cordial, mas poucos prestaram
atenção, haja visto que continuam a interpretar a cordialidade como brandura e
mesura. Mas o cordial de Buarque de Hollanda vem da palavra latina para
coração, denotando emoção: somos mais emocionais do que racionais, foi isso que
ele quis dizer.
Não discordo de Buarque de Hollanda, mas isso colocado dessa
forma, como se fosse uma idiossincrasia nacional, uma invenção brasileira,
assume ares de mito fundador, o que reveste a ideia de uma aura de dignidade e
fornece-lhe um álibi contra todas as críticas: somos assim porque somos
brasileiros, e isso sendo uma condição imutável, não nos cabe criticar, mas
exaltar, do contrário estaremos exercitando sentimentos neuróticos de
auto-rejeição. Ponto. Mas repetindo o que afirmei acima, isso não é uma
idiossincrasia brasileira, e tampouco permite tirar uma conclusão que
identifique o brasileiro como um povo único e diferente dos demais. No máximo,
permite classificar-nos entre os povos atrasados, mais próximos de uma
organização social primitiva e orientada ao clã familiar, em detrimento da
cidadania. Há muitos outros exemplos de povos do Terceiro Mundo com essas
características, o que efetivamente distingue o brasileiro é essa disposição em
tecer um discurso sociológico dignificando tais atributos; que eu saiba, em
nenhum outro país houve intelectuais que criassem mitos análogos ao do homem
cordial, Macunaíma, o malandro, etc. Pode ser que exista, mas eu desconheço.
Devíamos é acabar com isso. Aqueles que refutaram o mito do brasileiro cordial
apresentando incontáveis episódios de violência em nossa História, isso levados
pelo equívoco de tomar cordial por gentil, fizeram-no com toneladas de razão: de
fato, para manter a velha organização social orientada ao clã familiar, é
imprescindível uma considerável dose de autoritarismo, a fim de reprimir as
veleidades individuais e enquadrar todos à força no coletivo tribal. Daí para a
violência é um passo.
É sabido que os antigos clãs familiares brasileiros tinham
um patriarca. Figura revestida de toda a autoridade, ele comandava esposa,
filhos, parentes, agregados, empregados, etc. Esse modelo de família estendida
ainda marca nossas relações sociais. Quem está de fora e vê aquele familião,
todos interagindo, não raro morando juntos, fica com uma impressão de
solidariedade e mútua cooperação. Mas quem está do lado dentro, vê a coisa como
realmente é: um mundo onde prevalecem os mais atirados, os mais audazes, quando
não os mais descarados, enquanto indivíduos tímidos e escrupulosos são
espoliados. Não existe mais a figura do patriarca, mas o autoritarismo que dele
emanava ainda está impregnado em nosso tribalismo tardio, e manifesta-se
sobretudo no pouco respeito à privacidade alheia, este que é o mais ínfimo dos
bens pessoais, e prossegue na perseguição aos “diferentes”, na disposição de
fazer uso comum com o que é de outros, em sequestrar o individual para o
suposto benefício do coletivo. Seria até uma amostra de altruísmo e
entendimento de nossa parte, não fosse esse apreço pelo coletivo tribal
paralelo ao mais absoluto desprezo pelo que está fora de tal coletivo. Como bem
demonstrou Buarque de Hollanda, a fidelidade brasileira à família e aos amigos
impede que ingressemos em formas de organização social superiores, orientadas à
cidadania e ao Estado, pautadas na legislação comum e no respeito ao que é privado.
Da falta de respeito à privacidade à falta de respeito à propriedade é apenas
um passo. Aquele ministro corrupto, no final das contas, pode até ser um bom sujeito:
tudo o que ele queria ao fraudar as licitações era beneficiar parentes e amigos
donos de empresas, não era isso? Evidente que aquilo que é bom para a curriola
dele não é bom para o país, mas é assim que raciocina o homem cordial, e é
assim também que muitos de nós raciocinamos.
Em tempos não tão distantes, governava-se o Estado como se
governava a família: de forma autoritária, frequentemente violenta. Hoje, são
os cacos dessa organização social arcaica que impedem um uso mais proveitoso de
nossas relações sociais, desde nosso círculo pessoal, passando pelo
profissional até chegar à administração pública. Continuamos a não fazer uma
distinção nítida entre público e privado, o que é nosso do que é dos outros,
sempre à espera de que algum patriarca surja das cinzas e faça a mediação
necessária para estabelecer a boa ordenação. O apreço por líderes políticos
carismáticos é apenas um dos aspectos desta questão. Está na cultura popular,
isso não vai mudar de uma hora para a outra. Mas bem podíamos começar por parar
com a mania de transformar nossos defeitos de caráter em peculiaridades
antropológicas.
um pensador italiano de passagem por aqui definiu como "a cultura sambista", referindo-se à obsessão do brasileiro em perseguir uma imagem carnavalesca de si próprio. "Apenas no Brasil Jorge Amado seria considerado um escritor de primeira linha. Eu peguei essa frase e coloquei aqui para dizer que este italiano disse a verdade.
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