domingo, 31 de outubro de 2021

Extrema Direita X Extrema Esquerda

Pelo senso comum, a próxima eleição presidencial no país será disputada entre a extrema direita e a extrema esquerda, mais exatamente entre Bolsonaro e Lula, com todas as consequências que a polarização politica pode surtir. Mas direita e esquerda são termos gastos de tanto uso. Convém averiguar o quanto ainda se aplicam ao quadro político que se desenha com as próximas eleições.

Jair Bolsonaro com certeza é direita. Fica a gosto do freguês afirmar se ele é extrema direita ou apenas direita. Entretanto, ele não saiu de um partido formalmente direitista, nem é versado em ideologias. Seu direitismo reduz-se à admiração pelo regime militar de 1964, do qual não participou em razão da pouca idade. O eleitorado de direita aglutinou-se em torno dele simplesmente porque não havia mais ninguém que se assumisse direitista no país, desde a morte de Enéas Carneiro. E a ironia é que quem matou a direita no Brasil, foi justamente o regime militar que Bolsonaro admira.

Historicamente, a direita nacional era representada pela UDN, onde pontificavam líderes como Carlos Lacerda. Mas ao tomar o poder em 1964, a segunda coisa que os militares fizeram, depois de liquidar a esquerda comunista e trabalhista, foi liquidar a UDN, justamente para evitar que esse partido chegasse ao poder. Os principais líderes, como Carlos Lacerda, foram cassados, e os demais atirados à vala comum da ARENA, partido sem ideologia e sem força. Evidente que eliminar a direita não era o objetivo declarado do grupo que tomou o poder - eles queriam eliminar alternativas civis à presidência, independente da cor ideológica. Seu projeto era um Estado com plenos poderes, garantido pelos militares e gerido pelos tecnocratas, superministros cuja influência ia muito além do escopo de suas pastas, dos quais os mais notáveis representantes foram Delfim Neto e Mário Simonsen. Nada tão original, também era assim o getulismo da época do Estado Novo, por sua vez gestado no positivismo do século 19, que propugnava uma "ditadura republicana, racional e científica" conduzida por critérios puramente técnicos em lugar dos interesses regionais, corporativos ou meramente pessoais dos políticos profissionais.

Mas os políticos não foram banidos de todo. Diferente das ditaduras pré-segunda guerra, a polarização ideológica da guerra fria proclamava-se uma luta do "mundo livre" contra o totalitarismo comunista. Então o regime inaugurado em 1964 tinha que exibir uma fachada democrática, com corpos legislativos supostamente atuantes e ao menos um partido de oposição admitido. Para criar esse simulacro, toda a legislação eleitoral foi alterada para privilegiar rincões políticos do interior em detrimento dos grandes centros. As consequências dessa repaginação de nossa classe política se manifestaram muito além do fim do regime militar. Por este motivo a direita brasileira não se recompôs após a supressão de suas lideranças em 1964 - nunca mais surgiram líderes intelectualmente valorosos e administradores competentes como Carlos Lacerda, o que surgiu em seu lugar foram políticos provincianos e medíocres. Estou convicto de que em 1964, José Sarney não imaginava que um dia seria o presidente.

Então, no deserto da direita nacional, quem apareceu foi a singularidade de Jair Bolsonaro. Ele nunca foi um líder direitista capaz para além de um pequeno carisma. Sofre tanto da falta de disposição para o jogo político quanto da falta de poder efetivo para implantar a ditadura que almeja, e nem lá nem cá, vai produzindo sucessivos impasses, às vezes apenas por conta de uma teimosia pueril. O tempo passa, a economia trava e as promessas vão ficando no vazio.

Concorrendo com ele, há o Lula renascido da prisão. Cabe agora definir se é de extrema esquerda ou apenas esquerda. Na minha opinião, não é nem de esquerda, e ele concorda. Não o vejo sequer como petista. Lula é, simplesmente... lulista. Seu marketing pessoal sobreviveu a todas as intempéries, e desde suas origens no ABC tem demonstrado uma incrível capacidade de se reinventar. Mesmo que perdesse muitas eleições, sempre esteve em evidência. Com o PT desmoralizado por escândalos, emergiu como líder inquestionável. Não acredito que o PT teria grandes chances na próxima eleição se seu candidato não se chamasse Lula.

Direita ou esquerda, a próxima eleição será disputada entre dois candidatos que se valem de seu carisma. Ainda continuamos carentes de partidos fortes com propostas claras.

domingo, 17 de outubro de 2021

Em Tempos de Polarização

 Recebi recentemente uma correspondência que tem bem a ver com esses tempos de efervescência social e polarização político-ideológica. Refere-se a uma entrevista com o poeta Ferreira Gullar publicada nas páginas amarelas da revista Veja.

Veja:

O senhor já disse que "se bacharelou em subversão" em Moscou e escreveu um poema em que a moça era "quase tão bonita quanto a revolução cubana". Como se deu sua desilusão com a utopia comunista?

Ferreira Gullar:

Não houve nenhum fato determinado. Nenhuma decepção específica. 

Foi uma questão de reflexão, de experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo, mas no contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo fracassou. Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica. A derrocada do socialismo não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso do sistema foi interno. 

Veja:

Por que o capitalismo venceu?

Ferreira Gullar:

O capitalismo do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de justiça se revoltaram contra aquilo. 

O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade. 

A luta dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos, tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produz a riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora.

É bobagem. Sem a empresa não existe riqueza. 

Um depende do outro. 

O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só o explora é radical, sectária, primária. A partir dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. Mas é um equívoco concluir que a derrocada do socialismo seja a prova de que o capitalismo seja inerentemente bom. 

O capitalismo é a expressão do egoísmo, da voracidade humana, da ganância. O ser humano é isso, com raras exceções. 

O capitalismo é forte porque é instintivo. 

O socialismo foi um sonho maravilhoso, uma realidade inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. 

O capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser humano. Por isso ele é invencível. A força que torna o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhares de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro. 

É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo um país não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. 

Não tem cabimento.

Sabemos que o comunismo seduziu mais de uma geração de intelectuais brasileiros, mesmo quando já era uma ideia abandonada em seu local de nascimento, e serve ainda hoje para atiçar o debate político, bem como de espantalho para se acusar os adversários. É oportuno procurar explicar a evolução peculiar dessa ideologia em nosso ambiente. Ferreira Gullar é um personagem bem adequado para essa discussão, pois ele viveu intensamente um período de nossa História, aderiu com fervor à utopia comunista na época em que ela cortejava nossos intelectuais, bem como soube admitir honestamente e compreender os motivos do fracasso daquela utopia.

A idade dourada da utopia comunista no Brasil e em outros países de quadro histórico e social similar foi o produto de um hiato em nosso desenvolvimento comparado com a Europa da revolução industrial. Ali o comunismo nasceu do momento histórico específico: boa parte da força de trabalho alocada no ambiente fabril, onde eram sobre-explorados mas exerciam as mesmas funções, trabalhavam nas mesmas fábricas e residiam nos mesmos bairros operários, então podiam reunir-se, organizar-se em torno de reivindicações comuns e parecia fazer sentido uma tomada do poder pelos trabalhadores - afinal, o mundo tal como eles o viam parecia resumir-se a patrões e trabalhadores, os primeiros em posição de poder e os segundos subjugados, bastando portanto inverter esse jogo para escapar à exploração.

Mas por aqui a industrialização foi lenta, e a utopia comunista entrou trazida em sua maioria por intelectuais, e não por trabalhadores. Quando se estabeleceu, o quadro industrial sombrio da época da revolução industrial já havia desaparecido do mundo desenvolvido, sem nunca haver aparecido de todo aqui. Daí que a utopia, entre nós, tenha vicejado justamente no momento em que fenecia em seu nascedouro, na época da Guerra Fria, quando o comunismo era visto como ditadura e opressão no mundo desenvolvido. Mas aqui, onde o capitalismo não havia trazido a mesma pujança, parecia uma alternativa viável, que qualquer um podia idealizar como quisesse. Foi assim que o comunismo tornou-se "o ópio dos intelectuais", contraposto ao "ópio do povo", como Marx descrevia as religiões.

Marx viu o mundo de seu tempo, marcado pela polarização Trabalhador X Empresário, e criou a sua teoria extrapolando aquele quadro social para o passado, até o início dos tempos (toda a História nada mais seria do que Luta de Classes) e também para o futuro, até o fim dos tempos (a tomada do poder pelos trabalhadores pondo fim à Luta de Classes e ao próprio Estado). Mas aquele quadro social que Marx via era peculiar ao presente do século 19 europeu, e não à História como um todo. Por isso suas predições não se cumpriram. Ferreira Gullar apontou corretamente a falha maior da teoria marxista, a crença de que o empresário seria um parasita que se apropria do trabalho alheio (a mais valia). Assim, pensava Marx, a eliminação desse parasita significaria abundância, pois o trabalhador passaria a usufruir da totalidade do resultado de seu trabalho.

Não foi o que aconteceu. O nível de vida dos trabalhadores encolheu ao invés de aumentar nos países comunistas. Isso porque o operário é apenas um componente solto da máquina, que sozinho de nada vale, e cabe ao empresário montar a máquina, alocando os operários e dando-lhes uma função. Portanto, o empresário não é uma excrescência, mas exerce uma função essencial de comando e gerência - ele pode até ser eliminado, mas a função que ele exerce não pode ser eliminada, outro alguém terá que exercê-la. Nos países comunistas esta função foi exercida pelos comissários do partido, que tinham uma vida privilegiada tal como os antigos patrões, solapando a utopia de um governo de trabalhadores onde todos teriam igual participação. Como o acesso ao alto comissariado do partido era muito mais restrito do que o acesso à antiga classe empresarial (pois requer apadrinhamento e contatos políticos, enquanto há abundantes relatos de pessoas comuns que se tornaram grandes industriais sob o regime capitalista) redunda que a gestão desses comissários é muito menos eficiente do que a gestão do empresário. Há muito menos estímulo ao trabalho, e portanto muito menos produtividade.

O capitalismo não é justo, mas é compatível com a natureza, que tampouco é justa. O capitalismo não é uma ideologia, mas um método, e foi gestado no dia-a-dia de pessoas comuns, e não nas mesas de filósofos ou militantes. Como pode um sistema cujo objetivo não é a justiça, produzir abundância? Como é que poucos donos dos modos de produção vão querer produzir para muitos? O segredo está no Livre Mercado. Os trabalhadores são a grande maioria dos consumidores, e produzir muitos itens baratos para os pobres sempre rendeu mais do que produzir poucos itens caros para os ricos. Afinal, é a Volkswagen a dona da Rolls-Royce, e não a Rolls-Royce a dona da Volkswagen, e é a Fiat a dona da Ferrari, e não a Ferrari a dona da Fiat. Desde os primórdios da revolução industrial, a maioria dos produtos das fábricas destinava-se ao consumo dos trabalhadores, e não dos ricos - assim, ao mesmo tempo em que eles eram sobre-explorados por seus patrões, o custo de vida baixava para eles. Não é verdade que a pobreza do século 19 fosse pior que a pobreza do século 18 pré-industrial, ela apenas tornou-se mais visível, posto que era uma pobreza urbana, podendo sensibilizar intelectuais como Marx e escritores como Dickens.

Por aqui, nossos modelos de industrialização no passado não deram os resultados esperados porque foi uma industrialização orientada pelo Estado, e não pelo Mercado - importações proibidas e empresas nacionais produzindo para empresas estatais, sem concorrência, formando assim o conhecido conluio entre políticos e empreiteiras. Enfim, para nossos empresários, a fórmula do sucesso não era a boa qualidade nem o bom preço, mas sim o bom relacionamento com os círculos do poder. Diferente do que aconteceu nos novos países industrializados da Ásia, como a Coréia do Sul, que desde o início direcionaram sua produção para a exportação. Por este motivo não se pode alegar que "se o comunismo não deu certo, tampouco o capitalismo deu certo no Brasil". O capitalismo nunca foi tentado em sua plenitude por aqui.

Resta saber se agora vamos superar essa polarização anacrônica em nosso debate político.