domingo, 17 de outubro de 2021

Em Tempos de Polarização

 Recebi recentemente uma correspondência que tem bem a ver com esses tempos de efervescência social e polarização político-ideológica. Refere-se a uma entrevista com o poeta Ferreira Gullar publicada nas páginas amarelas da revista Veja.

Veja:

O senhor já disse que "se bacharelou em subversão" em Moscou e escreveu um poema em que a moça era "quase tão bonita quanto a revolução cubana". Como se deu sua desilusão com a utopia comunista?

Ferreira Gullar:

Não houve nenhum fato determinado. Nenhuma decepção específica. 

Foi uma questão de reflexão, de experiência de vida, de as coisas irem acontecendo, não só comigo, mas no contexto internacional. É fato que as coisas mudaram. O socialismo fracassou. Quando o Muro de Berlim caiu, minha visão já era bastante crítica. A derrocada do socialismo não se deu ao cabo de alguma grande guerra. O fracasso do sistema foi interno. 

Veja:

Por que o capitalismo venceu?

Ferreira Gullar:

O capitalismo do século XIX era realmente uma coisa abominável, com um nível de exploração inaceitável. As pessoas com espírito de solidariedade e com sentimento de justiça se revoltaram contra aquilo. 

O Manifesto Comunista, de Marx, em 1848, e o movimento que se seguiu tiveram um papel importante para mudar a sociedade. 

A luta dos trabalhadores, o movimento sindical, a tomada de consciência dos direitos, tudo isso fez melhorar a relação capital-trabalho. O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produz a riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora.

É bobagem. Sem a empresa não existe riqueza. 

Um depende do outro. 

O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só o explora é radical, sectária, primária. A partir dessa miopia, tudo o mais deu errado para o campo socialista. Mas é um equívoco concluir que a derrocada do socialismo seja a prova de que o capitalismo seja inerentemente bom. 

O capitalismo é a expressão do egoísmo, da voracidade humana, da ganância. O ser humano é isso, com raras exceções. 

O capitalismo é forte porque é instintivo. 

O socialismo foi um sonho maravilhoso, uma realidade inventada que tinha como objetivo criar uma sociedade melhor. 

O capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser humano. Por isso ele é invencível. A força que torna o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhares de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro. 

É óbvio que um governo central com seis burocratas dirigindo um país não vai ter a capacidade de ditar rumos a esses milhões de pessoas. 

Não tem cabimento.

Sabemos que o comunismo seduziu mais de uma geração de intelectuais brasileiros, mesmo quando já era uma ideia abandonada em seu local de nascimento, e serve ainda hoje para atiçar o debate político, bem como de espantalho para se acusar os adversários. É oportuno procurar explicar a evolução peculiar dessa ideologia em nosso ambiente. Ferreira Gullar é um personagem bem adequado para essa discussão, pois ele viveu intensamente um período de nossa História, aderiu com fervor à utopia comunista na época em que ela cortejava nossos intelectuais, bem como soube admitir honestamente e compreender os motivos do fracasso daquela utopia.

A idade dourada da utopia comunista no Brasil e em outros países de quadro histórico e social similar foi o produto de um hiato em nosso desenvolvimento comparado com a Europa da revolução industrial. Ali o comunismo nasceu do momento histórico específico: boa parte da força de trabalho alocada no ambiente fabril, onde eram sobre-explorados mas exerciam as mesmas funções, trabalhavam nas mesmas fábricas e residiam nos mesmos bairros operários, então podiam reunir-se, organizar-se em torno de reivindicações comuns e parecia fazer sentido uma tomada do poder pelos trabalhadores - afinal, o mundo tal como eles o viam parecia resumir-se a patrões e trabalhadores, os primeiros em posição de poder e os segundos subjugados, bastando portanto inverter esse jogo para escapar à exploração.

Mas por aqui a industrialização foi lenta, e a utopia comunista entrou trazida em sua maioria por intelectuais, e não por trabalhadores. Quando se estabeleceu, o quadro industrial sombrio da época da revolução industrial já havia desaparecido do mundo desenvolvido, sem nunca haver aparecido de todo aqui. Daí que a utopia, entre nós, tenha vicejado justamente no momento em que fenecia em seu nascedouro, na época da Guerra Fria, quando o comunismo era visto como ditadura e opressão no mundo desenvolvido. Mas aqui, onde o capitalismo não havia trazido a mesma pujança, parecia uma alternativa viável, que qualquer um podia idealizar como quisesse. Foi assim que o comunismo tornou-se "o ópio dos intelectuais", contraposto ao "ópio do povo", como Marx descrevia as religiões.

Marx viu o mundo de seu tempo, marcado pela polarização Trabalhador X Empresário, e criou a sua teoria extrapolando aquele quadro social para o passado, até o início dos tempos (toda a História nada mais seria do que Luta de Classes) e também para o futuro, até o fim dos tempos (a tomada do poder pelos trabalhadores pondo fim à Luta de Classes e ao próprio Estado). Mas aquele quadro social que Marx via era peculiar ao presente do século 19 europeu, e não à História como um todo. Por isso suas predições não se cumpriram. Ferreira Gullar apontou corretamente a falha maior da teoria marxista, a crença de que o empresário seria um parasita que se apropria do trabalho alheio (a mais valia). Assim, pensava Marx, a eliminação desse parasita significaria abundância, pois o trabalhador passaria a usufruir da totalidade do resultado de seu trabalho.

Não foi o que aconteceu. O nível de vida dos trabalhadores encolheu ao invés de aumentar nos países comunistas. Isso porque o operário é apenas um componente solto da máquina, que sozinho de nada vale, e cabe ao empresário montar a máquina, alocando os operários e dando-lhes uma função. Portanto, o empresário não é uma excrescência, mas exerce uma função essencial de comando e gerência - ele pode até ser eliminado, mas a função que ele exerce não pode ser eliminada, outro alguém terá que exercê-la. Nos países comunistas esta função foi exercida pelos comissários do partido, que tinham uma vida privilegiada tal como os antigos patrões, solapando a utopia de um governo de trabalhadores onde todos teriam igual participação. Como o acesso ao alto comissariado do partido era muito mais restrito do que o acesso à antiga classe empresarial (pois requer apadrinhamento e contatos políticos, enquanto há abundantes relatos de pessoas comuns que se tornaram grandes industriais sob o regime capitalista) redunda que a gestão desses comissários é muito menos eficiente do que a gestão do empresário. Há muito menos estímulo ao trabalho, e portanto muito menos produtividade.

O capitalismo não é justo, mas é compatível com a natureza, que tampouco é justa. O capitalismo não é uma ideologia, mas um método, e foi gestado no dia-a-dia de pessoas comuns, e não nas mesas de filósofos ou militantes. Como pode um sistema cujo objetivo não é a justiça, produzir abundância? Como é que poucos donos dos modos de produção vão querer produzir para muitos? O segredo está no Livre Mercado. Os trabalhadores são a grande maioria dos consumidores, e produzir muitos itens baratos para os pobres sempre rendeu mais do que produzir poucos itens caros para os ricos. Afinal, é a Volkswagen a dona da Rolls-Royce, e não a Rolls-Royce a dona da Volkswagen, e é a Fiat a dona da Ferrari, e não a Ferrari a dona da Fiat. Desde os primórdios da revolução industrial, a maioria dos produtos das fábricas destinava-se ao consumo dos trabalhadores, e não dos ricos - assim, ao mesmo tempo em que eles eram sobre-explorados por seus patrões, o custo de vida baixava para eles. Não é verdade que a pobreza do século 19 fosse pior que a pobreza do século 18 pré-industrial, ela apenas tornou-se mais visível, posto que era uma pobreza urbana, podendo sensibilizar intelectuais como Marx e escritores como Dickens.

Por aqui, nossos modelos de industrialização no passado não deram os resultados esperados porque foi uma industrialização orientada pelo Estado, e não pelo Mercado - importações proibidas e empresas nacionais produzindo para empresas estatais, sem concorrência, formando assim o conhecido conluio entre políticos e empreiteiras. Enfim, para nossos empresários, a fórmula do sucesso não era a boa qualidade nem o bom preço, mas sim o bom relacionamento com os círculos do poder. Diferente do que aconteceu nos novos países industrializados da Ásia, como a Coréia do Sul, que desde o início direcionaram sua produção para a exportação. Por este motivo não se pode alegar que "se o comunismo não deu certo, tampouco o capitalismo deu certo no Brasil". O capitalismo nunca foi tentado em sua plenitude por aqui.

Resta saber se agora vamos superar essa polarização anacrônica em nosso debate político.

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