domingo, 28 de agosto de 2022

A Esquerda não se reinventa

Lula é candidato a presidente desde 1990. Ninguém jamais disputou tantas eleições presidenciais no país, todas com reais chances de vencer. Duas ele levou. E agora está aí disputando mais uma e liderando as intenções de voto.

Já afirmei aqui que a razão do nome Lula permanecer sempre atual após tantos anos é a impressionante capacidade que ele tem de se reinventar. O Lula de 2022 não é o mesmo de 2002, muito menos o de 1990. No entanto, ela carrega nas costas uma esquerda que não quer, ou não consegue se reinventar, e ignora-se até que ponto esse peso irá atrapalhá-lo em seu caminho até a presidência.

Recentemente descobri uma postagem que sintetiza muito bem esse imobilismo da esquerda brasileira, da autoria de um certo Gregório Faria.

"Na verdade, a esquerda brasileira sofre de juventude"

O autor começa lembrando que ao assumir o poder nos anos 2000, a esquerda era basicamente sindicalista, aquela que surgiu nas empresas e lutava por direitos e interesse dos trabalhadores.

"Mas os anos PT cometeram um erro gigantesco (ainda bem) com o foco na economia primária, extração e agropecuária, com a indústria perdendo apoio governamental (que tinha mais interesse nos bilhões da China) e o país se desindustrializando"

"Ou seja, o trabalhador que era a base de apoio da esquerda deixou de ser contemplado por ela e deixou de a apoiar"

Mas terá sido mesmo esse o fenômeno, ou se foi, em que medida? A desindustrialização já vinha ocorrendo desde os anos 90, e é sabidamente um fenômeno mundial a progressiva substituição do setor secundário (industria) pelo setor terciário (serviços). Mas pensava-se que essa transição atingiria somente países industrializados antigos. Não vou entrar aqui nessa discussão: o fato é que o PT progressivamente perdeu a base de apoio que o havia alçado ao poder. Uma explicação melhor é lançada pelo autor no parágrafo seguinte:

"Ao mesmo tempo, sem novos quadros vindo da indústria, comércio e 'mundo real', não houve renovação de seus quadros, que tinha seus teóricos dos anos 60 não se comunicando com os jovens dos anos 90 e 00, agora adultos"

Aí está o X da questão, a diferença entre o Brasil e os países industrializados antigos. A esquerda nasceu da revolução industrial, e originalmente dedicava-se somente a pautas relativas a salários e direitos dos trabalhadores. Mas nossa industrialização foi tardia, tendo tomado fôlego somente nos anos Vargas, fomentada pelo Estado, ao qual estavam atrelados inclusive os sindicatos. Então, a esquerda brasileira não foi gestada por operários, mas por intelectuais e sindicalistas profissionais. Esse público formou uma seita - nome apropriado a um grupo ligado por comungar uma ideologia - e seitas são atemporais. Restrita aos bairros da classe média e aos campi universitários, sem contato com o mundo real das periferias e seus trabalhadores, essa seita passou a importar uma pauta globalista, sobretudo vinda dos EUA, com reivindicações que podem fazer sentido lá, mas não aqui.

"Então, enquanto ainda temos centenas de milhares, milhões sem emprego, essa 'nova esquerda' está defendendo inclusão de trans, ataque às religiões, luta agressiva contra o racismo, liberalização das drogas, todas pautas justas e necessárias, mas em segundo plano, depois que emprego, segurança, saúde e educação sejam universais"

"Então o 'seu Zé da quitanda', que é contra a direita, mas é assaltado toda semana, a dona Maria que tem um filho viciado e que a ameaça para ter dinheiro e não quer drogas liberadas, o Augusto, que é negro mas namora uma branca e ela foi ofendida porque usava turbante na cabeça, todos eles são atacados por essa 'nova esquerda' (chamada, com toda razão, de Esquerda Leblon), que quer os chamar de fascistas por defenderem o direito de terem uma vida menos pior"

Aí está o motivo do povão das periferias haver se bandeado em quantidade para a direita de Bolsonaro, a despeito dos resultados relativamente bons e da popularidade de que a esquerda chegou a desfrutar durante a Era Lula. O pessoal classe média da dita Esquerda Leblon queixa-se  dos "coxinhas" que se apossaram do poder, esquecidos que os coxinhas são uma pequena minoria do eleitorado, e se quisessem realmente entender como Bolsonaro chegou ao poder, deveriam atentar para o que ele tem que agrada ao povão, e não aos coxinhas. O primeiro aviso, bem incisivo, surgiu durante ainda os anos Lula, com o embaraçoso sucesso do filme Tropa de Elite a mostrar o abismo entre o povo das periferias idealizado pela Esquerda Leblon e o real povo das periferias, que frequenta igrejas evangélicas e é aterrorizado por bandidos. Tão tola foi a Esquerda Leblon, que imaginando contar com o apoio irrestirto dos pobres, pôs-se a renegar a classe média que até então fora seu sustentáculo ideológico (quem se lembra daquele discurso de Marilena Chauí ante um constrangido Lula, Eu Odeio a Classe Média?). Depois se espantaram que essa mesma classe média engrossasse as passeatas pró-impedimento de Dilma.

Lula não foi um intelectual, mas foi um sindicalista profissional - a outra vertente da esquerda nativa tupiniquim. É certo que enquanto foi conveniente, ele endossou o discurso da esquerda intelectual universitária, mas a impressão que sempre tive foi que ele no fundo a desprezava - no início de sua carreira, ainda sindicalista, nem deixava estudantes subirem ao palanque. Resta saber se agora ele vai colocar a seu serviço essa esquerda que não quer reinventar-se, ou se ela vai arrastá-lo ao fundo.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Bicentenário da Independência

De minha infância, ficou-me na memória uma palavrinha que foi ecoada ad nauseaum pelas mídias lá pelos idos de 1972: tratava-se do tal de sesquicentenário da independência. Traduzindo, os 150 anos da independência do país. Não é uma efeméride tão emblemática quanto um centenário ou um bicentenário, por certo, mas vivia-se na época um clima de euforia celebrado pelo regime de 1964, que proclamava o Milagre Brasileiro. Marco extraordinário, sesquicentenário da inedependência / Potência de amor e paz, esse país faz coisas que ninguém imagina que faz...

Restou na memória a musiquinha e o curioso neologismo. Hoje, cinquenta anos depois, a celebração do bicentenário não desperta paixão alguma, o país vive tudo menos um clima de euforia, e o presidente se assemelha a uma paródia dos generais espaventosos do tempo do milagre econômico. Parece coerente: não existe evento que não tenha motivado mais esforços para ser desacreditado do que o sete de setembro. Não há professor de História que não tenha afirmado que não houve independência alguma, já que o país continuou governado por um monarca estrangeiro, que dom Pedro havia ido a São Paulo visitar sua amante e que parou para defecar no caminho, quando foi alcançado pelo mensageiro que trazia cartas exigindo seu retorno a Portugal. O quadro de Pedro Américo já foi comparado a uma propaganda de desodorantes, com tantos daqueles braços erguidos.

Tudo mentira, a começar que dom Pedro sequer conhecia dona Domitila na ocasião, veio a travar seu primeiro contato por obra do acaso nessa viagem. É certo que a data de sete de setembro foi escolhida por mero papel simbólico, pois desde o 21 de janeiro, Dia do Fico, o imperador já estava formalmente rompido com as cortes de Lisboa, uma esquadra já estava sendo preparada para ser enviada ao Brasil, e os acontecimentos teriam tomado o rumo que tomaram não importa o que o monarca fizesse ou deixasse de fazer naquele sete de setembro. Pessoalmente acredito que dom Pedro disse foi um par de palavrões ao invés do grito de independência ou morte, mas isso é totalmente irrelevante.

A celebração do Sete de Setembro, contudo, obscureceu outros atores daqueles eventos, a começar pelo papel da Inglaterra, que tinha interesse na independência do Brasil e fez abortar o envio da esquadra portuguesa. Houve combate em várias partes do país, sobretudo no norte, mas os protagonistas desses combates hoje são personagens secudários só lembrados em seus estados de origem. Foi também esquecido um papel importatíssimo da imperatriz Leopoldina: tão logo ela soube que o marido havia proclamado a independência em seu caminho de volta, mandou prender o comandante da guarnição portuguesa da cidade. Seria engraçado se dom Pedro, logo após de proclamar a independência, terminasse preso ao chegar à capital...

Mas é fato que nem todos eram tão assim favoráveis à independência. Muitas províncias do norte não viam diferença entre obedecer a uma corte em Lisboa e obedecer a uma corte no Rio de Janeiro. E não faltavam os que sonhavam com o restabelecimento do Reino Unido, uma monarquia dual com dom Pedro assumindo também o trono português, do qual ainda era o herdeiro - mas bem ou mal, a independência foi feita, e tivemos que pagar por ela.

Hoje, se o bicentenário não está sendo devidamente comemorado, ao menos o distanciamento no tempo permite apreciar o justo valor e significado deste evento histórico. E vejo que foi muito bom que o país tenha conquistado sua independência desta maneira, sem guerras fratricidas que inevitavelmente dividiriam o território entre miríades de republiquetas. Se o país permaneceu uno, e se nossa História é relativamente pacífica se comparada com a de nossos vizinhos hispânicos, isso devemos à decisão de um rapaz de 24 anos, que poderia ter regressado a seu país e ali sossegadamente levado a vida dissoluta de tantos outros fidalgos, mas preferiu ariscar o pescoço e fazer a nossa independência. É assim que no Brasil atual, a enorme diversidade racial coexiste com uma notável uniformidade cultural - quanto valor não tem isso?

E mais não se diga, prefiro ser governado por um imperador de verdade do que por fazendeiros fantasiados de general.