Lula é candidato a presidente desde 1990. Ninguém jamais disputou tantas eleições presidenciais no país, todas com reais chances de vencer. Duas ele levou. E agora está aí disputando mais uma e liderando as intenções de voto.
Já afirmei aqui que a razão do nome Lula permanecer sempre atual após tantos anos é a impressionante capacidade que ele tem de se reinventar. O Lula de 2022 não é o mesmo de 2002, muito menos o de 1990. No entanto, ela carrega nas costas uma esquerda que não quer, ou não consegue se reinventar, e ignora-se até que ponto esse peso irá atrapalhá-lo em seu caminho até a presidência.
Recentemente descobri uma postagem que sintetiza muito bem esse imobilismo da esquerda brasileira, da autoria de um certo Gregório Faria.
"Na verdade, a esquerda brasileira sofre de juventude"
O autor começa lembrando que ao assumir o poder nos anos 2000, a esquerda era basicamente sindicalista, aquela que surgiu nas empresas e lutava por direitos e interesse dos trabalhadores.
"Mas os anos PT cometeram um erro gigantesco (ainda bem) com o foco na economia primária, extração e agropecuária, com a indústria perdendo apoio governamental (que tinha mais interesse nos bilhões da China) e o país se desindustrializando"
"Ou seja, o trabalhador que era a base de apoio da esquerda deixou de ser contemplado por ela e deixou de a apoiar"
Mas terá sido mesmo esse o fenômeno, ou se foi, em que medida? A desindustrialização já vinha ocorrendo desde os anos 90, e é sabidamente um fenômeno mundial a progressiva substituição do setor secundário (industria) pelo setor terciário (serviços). Mas pensava-se que essa transição atingiria somente países industrializados antigos. Não vou entrar aqui nessa discussão: o fato é que o PT progressivamente perdeu a base de apoio que o havia alçado ao poder. Uma explicação melhor é lançada pelo autor no parágrafo seguinte:
"Ao mesmo tempo, sem novos quadros vindo da indústria, comércio e 'mundo real', não houve renovação de seus quadros, que tinha seus teóricos dos anos 60 não se comunicando com os jovens dos anos 90 e 00, agora adultos"
Aí está o X da questão, a diferença entre o Brasil e os países industrializados antigos. A esquerda nasceu da revolução industrial, e originalmente dedicava-se somente a pautas relativas a salários e direitos dos trabalhadores. Mas nossa industrialização foi tardia, tendo tomado fôlego somente nos anos Vargas, fomentada pelo Estado, ao qual estavam atrelados inclusive os sindicatos. Então, a esquerda brasileira não foi gestada por operários, mas por intelectuais e sindicalistas profissionais. Esse público formou uma seita - nome apropriado a um grupo ligado por comungar uma ideologia - e seitas são atemporais. Restrita aos bairros da classe média e aos campi universitários, sem contato com o mundo real das periferias e seus trabalhadores, essa seita passou a importar uma pauta globalista, sobretudo vinda dos EUA, com reivindicações que podem fazer sentido lá, mas não aqui.
"Então, enquanto ainda temos centenas de milhares, milhões sem emprego, essa 'nova esquerda' está defendendo inclusão de trans, ataque às religiões, luta agressiva contra o racismo, liberalização das drogas, todas pautas justas e necessárias, mas em segundo plano, depois que emprego, segurança, saúde e educação sejam universais"
"Então o 'seu Zé da quitanda', que é contra a direita, mas é assaltado toda semana, a dona Maria que tem um filho viciado e que a ameaça para ter dinheiro e não quer drogas liberadas, o Augusto, que é negro mas namora uma branca e ela foi ofendida porque usava turbante na cabeça, todos eles são atacados por essa 'nova esquerda' (chamada, com toda razão, de Esquerda Leblon), que quer os chamar de fascistas por defenderem o direito de terem uma vida menos pior"
Aí está o motivo do povão das periferias haver se bandeado em quantidade para a direita de Bolsonaro, a despeito dos resultados relativamente bons e da popularidade de que a esquerda chegou a desfrutar durante a Era Lula. O pessoal classe média da dita Esquerda Leblon queixa-se dos "coxinhas" que se apossaram do poder, esquecidos que os coxinhas são uma pequena minoria do eleitorado, e se quisessem realmente entender como Bolsonaro chegou ao poder, deveriam atentar para o que ele tem que agrada ao povão, e não aos coxinhas. O primeiro aviso, bem incisivo, surgiu durante ainda os anos Lula, com o embaraçoso sucesso do filme Tropa de Elite a mostrar o abismo entre o povo das periferias idealizado pela Esquerda Leblon e o real povo das periferias, que frequenta igrejas evangélicas e é aterrorizado por bandidos. Tão tola foi a Esquerda Leblon, que imaginando contar com o apoio irrestirto dos pobres, pôs-se a renegar a classe média que até então fora seu sustentáculo ideológico (quem se lembra daquele discurso de Marilena Chauí ante um constrangido Lula, Eu Odeio a Classe Média?). Depois se espantaram que essa mesma classe média engrossasse as passeatas pró-impedimento de Dilma.
Lula não foi um intelectual, mas foi um sindicalista profissional - a outra vertente da esquerda nativa tupiniquim. É certo que enquanto foi conveniente, ele endossou o discurso da esquerda intelectual universitária, mas a impressão que sempre tive foi que ele no fundo a desprezava - no início de sua carreira, ainda sindicalista, nem deixava estudantes subirem ao palanque. Resta saber se agora ele vai colocar a seu serviço essa esquerda que não quer reinventar-se, ou se ela vai arrastá-lo ao fundo.