De minha infância, ficou-me na memória uma palavrinha que foi ecoada ad nauseaum pelas mídias lá pelos idos de 1972: tratava-se do tal de sesquicentenário da independência. Traduzindo, os 150 anos da independência do país. Não é uma efeméride tão emblemática quanto um centenário ou um bicentenário, por certo, mas vivia-se na época um clima de euforia celebrado pelo regime de 1964, que proclamava o Milagre Brasileiro. Marco extraordinário, sesquicentenário da inedependência / Potência de amor e paz, esse país faz coisas que ninguém imagina que faz...
Restou na memória a musiquinha e o curioso neologismo. Hoje, cinquenta anos depois, a celebração do bicentenário não desperta paixão alguma, o país vive tudo menos um clima de euforia, e o presidente se assemelha a uma paródia dos generais espaventosos do tempo do milagre econômico. Parece coerente: não existe evento que não tenha motivado mais esforços para ser desacreditado do que o sete de setembro. Não há professor de História que não tenha afirmado que não houve independência alguma, já que o país continuou governado por um monarca estrangeiro, que dom Pedro havia ido a São Paulo visitar sua amante e que parou para defecar no caminho, quando foi alcançado pelo mensageiro que trazia cartas exigindo seu retorno a Portugal. O quadro de Pedro Américo já foi comparado a uma propaganda de desodorantes, com tantos daqueles braços erguidos.
Tudo mentira, a começar que dom Pedro sequer conhecia dona Domitila na ocasião, veio a travar seu primeiro contato por obra do acaso nessa viagem. É certo que a data de sete de setembro foi escolhida por mero papel simbólico, pois desde o 21 de janeiro, Dia do Fico, o imperador já estava formalmente rompido com as cortes de Lisboa, uma esquadra já estava sendo preparada para ser enviada ao Brasil, e os acontecimentos teriam tomado o rumo que tomaram não importa o que o monarca fizesse ou deixasse de fazer naquele sete de setembro. Pessoalmente acredito que dom Pedro disse foi um par de palavrões ao invés do grito de independência ou morte, mas isso é totalmente irrelevante.
A celebração do Sete de Setembro, contudo, obscureceu outros atores daqueles eventos, a começar pelo papel da Inglaterra, que tinha interesse na independência do Brasil e fez abortar o envio da esquadra portuguesa. Houve combate em várias partes do país, sobretudo no norte, mas os protagonistas desses combates hoje são personagens secudários só lembrados em seus estados de origem. Foi também esquecido um papel importatíssimo da imperatriz Leopoldina: tão logo ela soube que o marido havia proclamado a independência em seu caminho de volta, mandou prender o comandante da guarnição portuguesa da cidade. Seria engraçado se dom Pedro, logo após de proclamar a independência, terminasse preso ao chegar à capital...
Mas é fato que nem todos eram tão assim favoráveis à independência. Muitas províncias do norte não viam diferença entre obedecer a uma corte em Lisboa e obedecer a uma corte no Rio de Janeiro. E não faltavam os que sonhavam com o restabelecimento do Reino Unido, uma monarquia dual com dom Pedro assumindo também o trono português, do qual ainda era o herdeiro - mas bem ou mal, a independência foi feita, e tivemos que pagar por ela.
Hoje, se o bicentenário não está sendo devidamente comemorado, ao menos o distanciamento no tempo permite apreciar o justo valor e significado deste evento histórico. E vejo que foi muito bom que o país tenha conquistado sua independência desta maneira, sem guerras fratricidas que inevitavelmente dividiriam o território entre miríades de republiquetas. Se o país permaneceu uno, e se nossa História é relativamente pacífica se comparada com a de nossos vizinhos hispânicos, isso devemos à decisão de um rapaz de 24 anos, que poderia ter regressado a seu país e ali sossegadamente levado a vida dissoluta de tantos outros fidalgos, mas preferiu ariscar o pescoço e fazer a nossa independência. É assim que no Brasil atual, a enorme diversidade racial coexiste com uma notável uniformidade cultural - quanto valor não tem isso?
E mais não se diga, prefiro ser governado por um imperador de verdade do que por fazendeiros fantasiados de general.
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