domingo, 17 de maio de 2020

Nem Isabel, Nem Zumbi

Todo ano, a cada 13 de maio, é retomada a discussão acerca do real significado desta data. Já foi inconteste que se tratou da abolição da escravatura no país, um acontecimento a ser festejado. Mas os militantes dos movimentos negros não gostam dela. Dizem que a abolição pouco significou, pois os negros continuaram em posição desfavorável e vítimas de racismo, o que não deixa de ser verdade. Mas parece-me claro que o principal motivo da anátema dos movimentos negros contra o 13 de maio foi haver erigido como heroína do dia a princesa Isabel, que assinou a lei.

Então os escravos devem sua liberdade à magnanimidade de uma princesa de olhar bondoso? Não foi o que de fato aconteceu, mas é a impressão passada. Obviamente indigna para os militantes, que veem as lutas pregressas dos escravos serem ignoradas. Eles preferem ter como herói um guerreiro, alguém que arranca suas conquistas com a força, como Zumbi dos Palmares. Para eles, a data a ser comemorada é o dia da Consciência Negra em novembro, dia de Zumbi.

Sabemos que a imagem dos heróis do passado é retocada para servir ao presente, devendo representar aquilo que se quer representar. Mas quem se interessa pela História deve desejar conhecer quem realmente foram aqueles personagens, e qual o papel que efetivamente desempenharam para um dado evento histórico, no caso, o fim da escravidão. Quem foi Isabel? Quem foi Zumbi?

O posicionamento de Isabel face ao movimento abolicionista é controverso. Alguns autores, como Mary Del Priore, afirmam que ela era desinteressada do tema, bem como da política em geral. Outros afirmam que Isabel tinha ligação com quilombolas e lhes dava apoio. O que se sabe com certeza é que seu papel na assinatura da lei foi meramente protocolar. A luta foi para convencer deputados e senadores, e não os monarcas; Isabel já estava ciente de que a grave crise provocada pela persistência da escravidão punha em perigo o regime. Uma lenda renitente afirma que foi por causa da abolição que a monarquia foi suprimida, o que fortalece a aura mística que se formou em torno da princesa: para libertar os escravos, ela sacrificou o próprio trono. Como toda lenda, esta tem um fundo de verdade. Independente do real alcance de seu papel no movimento abolicionista, é consenso que Isabel teve um papel decisivo na queda do gabinete do Barão de Cotegipe, o último ministério escravagista, e na ascensão do gabinete de João Alfredo, que fez a abolição. A partir de então, os ex-proprietário de escravos, ressentidos, passaram a abandonar crescentemente o apoio à monarquia e aderir ao movimento republicano, até então pequeno e quase insignificante. Esta adesão dos elementos mais conservadores do país ao republicanismo foi crucial para a proclamação da república, mas também responsável pelo caráter conservador e dominado pelos fazendeiros que o novo regime viria a ter.

A consequência não planejada daqueles eventos, porém, foi ligar a figura da princesa Isabel indelevelmente à causa abolicionista, gerando a lenda da princesa como "redentora". Isso sem dúvida serviu aos propósitos dos que desejavam exibir uma imagem edulcorada do episódio da abolição, vista como concedida pelo auto-sacrifício de uma princesa magnânima. Na realidade, quem deveria ter assinado a lei era o pai da princesa, o imperador Pedro II, a quem sucedeu estar doente na ocasião. E ironicamente, os maiores responsáveis pelo crescimento do mito foram os próprios ex-escravos, que passaram a cultuar a princesa quase como uma santa popular. Ignorantes dos meandros da política e imersos em uma sociedade patriarcal, era assim que compreendiam os acontecimentos.

O verdadeiro herói da abolição da escravidão seria, então, Zumbi dos Palmares, líder do quilombo fundado no século 17 por escravos que se rebelaram contra seus senhores. Faz sentido: Zumbi não recebeu sua libertação por bondade de outrem, mas lutou para conquistá-la e mantê-la. Mas Zumbi teria lutado pela libertação dos escravos como um todo?

A resposta é não. Havia escravos em Palmares, e afirma-se que o próprio Zumbi teria sido proprietário de escravos. Não há provas disto, mas é de se supor, dada sua alta posição no quilombo. Os dados a respeito de Zumbi são sumários e envoltos em lendas. Uns afirmam que foi criado por um padre, e posteriormente fugiu para o quilombo; outros afirmam que já nasceu no quilombo. Sua figura permaneceu obscura por muito tempo, até ser resgatada juntamente com a figura dos bandeirantes do século 17. Interessados em criar mitos fundadores da nacionalidade brasileira, historiadores do século 19 exaltaram os bandeirantes como desbravadores responsáveis pela conquista do atual território nacional, e neste processo a figura de Zumbi também foi mitificada, mas para o papel de um antagonista: o fundador de um anti-Brasil, africano ao invés de português, guerreiro valoroso que devia ser derrotado para o estabelecimento do país tal como se conhece hoje. Em época recente, a figura de Zumbi foi novamente resgatada, desta vez por militantes do movimento negro, que criaram o mito de Palmares como uma comunidade livre e igualitária em meio à opressão escravista da sociedade colonial.

Tampouco há grande conhecimento de como era por dentro o Quilombo de Palmares, mas as informações disponíveis são sucintas: só eram livres os que chegavam a Palmares por seus próprios meios. Aqueles que os palmarinos capturavam em suas incursões às fazendas, ou adquiriam pelo comércio, permaneciam escravos, e só se tornavam livres se participassem de uma expedição para capturar mais escravos. Isso está conforme aos costumes das tribos guerreiras africanas, que procediam da mesma maneira.

E a fuga de Palmares era punida com a pena de morte. Como não é de se crer que esses fugitivos ambicionavam retornar à servidão, provavelmente fugiam de perseguições políticas ou de obrigações contraídas com os líderes do quilombo, o que mostra que Palmares estava longe de ser uma idílica comunidade livre e igualitária. Decerto reproduziam-se ali as hierarquias sociais da África da época, inclusive a escravidão. Mas não é surpreendente, nem deveria ser decepcionante que Zumbi dos Palmares não tivesse propósitos de abolir a escravidão. Independente do que é lenda ou verdade a seu respeito, não há dúvida de que Zumbi era um homem do século 17, e um homem do século 17 não acreditava em uma sociedade sem escravos. Essa ideia só tomou corpo no movimento iluminista do século seguinte.

Nem Isabel, nem Zumbi, a abolição da escravatura no Brasil foi produto de um processo gradual, que aos poucos tornou economicamente inviável o velho sistema, incompatível que era com o capitalismo industrial, e urdiu pressões internacionais e revoltas internas. Mas é difícil entender a História sem heróis.