quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

2020, o ano que não começou

 Tentando escrever qualquer coisa sobre o ano que ora se encerra, não encontro nada. Se há anos que, diz a expressão, "não terminaram", denotando a continuidade dos contextos políticos, sociais e culturais que os marcaram, também há anos que simplesmente não começaram, porque foram abortados por um evento súbito - no caso, a pandemia do coronavirus.

No entanto, estarei mentindo se afirmar que o ano de 2020 não representou um ponto de inflexão marcante. A pandemia vai acabar, mas as coisas não voltarão a ser como antes, nunca mais. As implicações da pandemia, com a necessidade de isolamento, aceleraram um fenômeno que eu já vinha observando há tempos, com inquietação - a morte do deslocamento ao trabalho. Na era da internet, diversas atividades que antes tinham que ser feitas em um escritório podem ser feitas em casa, e depois transmitidas a um escritório que pode muito bem comportar apenas um computador e nenhum funcionário. Por conseguinte, ninguém mais precisará se deslocar para um local de trabalho.

Esta previsão de um futuro onde as pessoas trabalharão em suas casas não é nova. Um dos visionários foi o escritor Monteiro Lobato, que publicou nos anos vinte do século passado um polêmico e pouco conhecido romance, O Presidente Negro, passado no futuro. Nele Lobato antevê as ruas das cidades se tornando "mansas de tráfego, como as antigas cidades do interior", já que quase ninguém mais necessitará se deslocar ao trabalho, pois pode trabalhar em casa e "irradiar" o trabalho ao escritório.

Mas trabalhar sentado em casa é uma coisa boa?

Tenho minhas dúvidas. A começar pelo aumento do nível de sedentarismo, já alto nas cidades. E tenho reparos sentimentais também. Sinto saudades do ar das ruas, das paisagens se deslocando na janela, ou simplesmente de passear pelas calçadas. Mas a consequência mais aziaga é a aceleração de outro fenômeno que já vinha observando há tempos: a morte do centro das cidades.

Hoje em dia o centro das grandes cidades, à noite, é um lugar sem graça, sujo e perigoso. Não era assim antigamente, quando os centros eram locais de hotéis, bares, restaurantes, salas de exposição. É o abandono das atividades culturais e de lazer, em detrimento do trabalho somente, que causa o esvaziamento dos centros: escritórios só são povoados durante o dia. E agora nem durante o dia eles serão povoados.

O fenômeno é mais agudo em algumas metrópoles do que em outras. Eu resido no Rio de Janeiro, e sou testemunha do declínio do centro da cidade, produto de crises financeiras e sucessivas administrações desastrosas, desde muito antes do coronavirus. O centro comercial e financeiro do Rio de Janeiro ainda corresponde, geograficamente, ao centro histórico, graças às reformas de Pereira Passos no início do século 20, o chamado bota-abaixo, hoje muito criticado por sua proposta "higienista" e por supostamente haver expulsado os pobres do centro. Mas não houvesse ocorrido essa reforma, o espaço hoje ocupado pelo centro seria uma vasta área degradada, e o verdadeiro centro comercial e financeiro da cidade teria se deslocado para outro bairro (a Tijuca?) à semelhança do que já aconteceu em outras metrópoles, como São Paulo, onde o antigo centro histórico foi abandonado e migrou para a avenida Paulista, antes uma área residencial elegante.

Algumas previsões utópicas afirmam que no futuro as pessoas deixarão as grandes cidades e voltarão a viver no campo, em contato com a natureza. Já desde o século passado uma piada dizia: nas fábricas do futuro, haverá somente um homem e um cachorro. A função do homem será alimentar o cachorro. E a função do cachorro será não deixar que o homem chegue perto das máquinas. Se o futuro será assim, que venha logo. Mas enquanto não vem, caminho pelo centro testemunhando sua lenta agonia.