O consenso geral é que somos governados por uma Elite, ou
por “elites” no plural, e isso é mau. Urge apear a Elite do poder, o problema é
que ninguém sabe apontar com exatidão que Elite seria essa, exceto que seus
integrantes são sempre os outros.
Mas percebo aí um esforço inútil, pois a meu ver, o destino
de ser governado por elites não se deve ao poder haver sido conquistado por um
grupo específico, mas é de fato uma contingência da seleção natural. Vale a
comparação com um time de futebol: todos os jogadores, obviamente, desejam ser
titulares, mas se não puderem sê-lo, preferem que os titulares sejam os
melhores entre eles, pois é melhor ser reserva de um time vencedor do que de um
time perdedor. Interessa ao bem comum que os encarregados de executar
determinada função sejam aqueles que, por este ou aquele motivo, sejam os que
têm melhor condições de realiza-la, pois do contrário, todos sairão perdendo.
Então é isso: nosso destino é sermos sempre governados por uma elite ou outra,
ainda que seja a elite dos mais ousados ou a elite dos mais descarados. Ou a
elite dos mais bem colocados no partido.
A esta altura muitos já estarão bradando: as elites
dominantes a que me refiro são elites econômicas, oligarquias! Mas essa
afirmação também me parece uma redundância. Uma vez que o dinheiro é sempre
desejado, todos os membros de uma elite qualquer terminam por ascender à elite
econômica, à medida em que trocam por dinheiro a habilidade específica que os
faz membros de uma elite específica. Os profissionais altamente qualificados
conseguem altos pagamentos. Os artistas e esportistas de talento conseguem
prêmios. O empresário com tino para os negócios prospera. Mas isso é
particularmente verdadeiro quando se trata de elites políticas, onde a
conversibilidade entre poder e dinheiro é sempre fácil. Os honorários que uma
autoridade recebe são suficientes para torna-lo parte de uma elite econômica,
ainda que não receba nada além desses honorários. Enfim, a elite econômica
“atrai” as outras elites; isso é um fenômeno que, em estatística, chama-se um
atrator. Funciona também no sentido oposto: o dinheiro pode comprar o ingresso
em outras elites; por exemplo, o ingresso em boas escolas que tornarão o aluno
membro de uma elite intelectual, o ingresso em círculos de pessoas influentes
que abrirão as portas para outras elites, etc. Enfim, de qualquer ângulo que se
olhe, sempre veremos uma elite econômica hegemônica. Quem tenta mudar isso é
como o cachorro que corre atrás do próprio rabo.
Mais inteligente do que correr atrás do próprio rabo é
procurar descrever as elites existentes passando ao largo da abordagem
marxista, que vê a Elite como um bloco monolítico, distinto e elementar, que
deve ser removido tal qual a pedra que está no caminho e deve ser explodida
para a construção da estrada. Mesmo porque traçar um retrato das elites é, em
grande medida, fazer um resumo histórico e antropológico, uma vez que as elites
concentram em si atributos que são valorizados por todo o resto da população: a
elite é sempre superior à média, e uma elite ruim nada mais é do que o sintoma
de uma média pior ainda. Procurarei então responder: como se formaram as elites
brasileiras, e por que elas são assim?
Esta pergunta só pode ser respondida com o conhecimento da
História. E houve um tempo, nem tão distante assim, em que nossa elite rica
dominante não era, em sua maioria, uma elite intelectual. Numerosos relatos de
comentaristas estrangeiros em viagem pelo Brasil do século 19 dão conta do
aspecto tosco, e mesmo grotesco, dos ricos nacionais. Mesmo em época mais
recente, os folclóricos coronéis do sertão eram indivíduos de pouca instrução,
muitos até semianalfabetos, e isto ficou impresso na cultura popular, onde os
velhos coronéis são mostrados como roceiros de bota e chapelão, falando errado
ou com pesado sotaque, habitantes de grotões do interior e desinteressados de
qualquer coisa que não tivesse relação com as lides de suas fazendas. Conforme
comentou JJ Chiavenatto ao abordar o fenômeno do coronelismo, não havia grande
diferença entre o coronel e os jagunços que comandava, o que inclusive
facilitava o diálogo entre ambos: “no fundo, todos eram vaqueiros. Os que
garantiam a posse da terra mandavam, os demais obedeciam”. Por este motivo, os
esquematismos intelectuais consagrados à abordagem Elite Aristocrática X Povo
com frequência não se aplicam à História do Brasil. Como explicar, por exemplo,
que a república foi proclamada por uma elite de latifundiários cafeicultores? A
aristocracia da terra não deveria ser monarquista?
Isso é verdade, sim, no que diz respeito à Europa: todos
sabem que os nobres da terra eram aliados dos reis. Mas isto é perfeitamente
explicável quando se reconstitui o modo como se formou esta nobreza. Se
recuarmos o suficiente no tempo, inevitavelmente chegaremos a uma época em que
tanto os antepassados do rei quanto os antepassados dos nobres eram chefes
guerreiros aliados. Conforme a sorte dos campos de batalha, os acordos e os
casamentos, uns se tornaram suseranos, e outros vassalos, nascendo aí uma
lealdade e um senso de honra que atravessaram as gerações, e de fato perduraram
até bem após o fim do feudalismo, quando os nobres já não eram mais que
funcionários do governo, e o passado guerreiro tornara-se uma lembrança. O
mesmo não ocorreu no Brasil colonial, onde aliás nunca existiu feudalismo,
existiu escravidão, que não é a mesma coisa. Diz o senso comum que nossa elite
foi formada por donatários e fidalgos que receberam cartas de sesmaria e
tornaram-se senhores de engenho, e não falta quem acredite que os latifundiários
brasileiros descendem todos de uma linhagem que vem desde os tempos das
capitanias hereditárias. A realidade foi diferente. As cartas de sesmaria eram
pouco mais que formalidade, pois na época colonial, e mesmo muito depois, ter a
posse efetiva da terra não dependia da assinatura de um rei distante, mas da
capacidade de conquistar e manter pela força aquela porção de terra, derrotando
índios, posseiros e senhores de engenho rivais. Desde muito cedo, os
latifundiários brasileiros perceberam que naqueles sertões distantes, eles não
dependiam de um governador ou vice-rei, mas sim de si próprios, particularmente
de sua capacidade de ter homens armados sob seu comando. De fato, para aquilo
que se possa chamar de nobreza rural brasileira, as autoridades metropolitanas
eram vistas mais como um empecilho do que como garantia de sua posição social.
É sabido que os “homens bons”, aristocracia que compunha as câmaras de
vereadores das antigas vilas, frequentemente ignoravam as leis, ameaçavam e
corrompiam os funcionários do governo, e isso mudou pouco entre Mem de Sá e
Tiradentes.
Tendo nossa elite sido formada assim desta maneira tão bruta
e desvencilhada de qualquer ordem ou autoridade, é fácil entender porque esta
elite não se conforma ao conceito de “aristocracia” consagrado pelo senso
comum. Se os ricos da terra pareceram tão rudes e grosseiros aos olhos dos
comentaristas estrangeiros, era porque de fato assim o eram. Muitos fidalgos
que receberam terras não conseguiram mantê-las, e muitos posseiros que foram
audazes o suficiente e conseguiram eliminar os rivais, aumentaram suas posses e
tornaram-se grandes latifundiários. Mas continuaram ignorantes, bem como seus
filhos e netos. Isto acontecia até época recente, basta ler os romances de
Jorge Amado e Graciliano Ramos. Boa parte de nossa elite tem raízes no
populacho, e por este motivo mesmo, boa parte de nossa elite não era branca,
mas cabocla, o que não deixou de ser mencionado pelos comentaristas
estrangeiros. Por aí se vê como soa falso o epíteto “elite branca racista”
tanta vezes invocado, bem como a afirmação, que passa por verdade histórica, de
que a elite brasileira fomentou a imigração europeia com a finalidade de
branquear a população. Nessas horas me vem à mente aquela conhecida gravura
publicada em um periódico alemão de meados do século 19, mostrando dois imigrantes
brancos puxando um arado sob o chicote de um capataz negro. Era mais ou menos
isso o que acontecia nas fazendas da época: a imigração foi promovida, não com
o objetivo de embranquecer a população, mas com o objetivo de prover os
fazendeiros de novos escravos, em substituição aos africanos que não podiam
mais ser traficados. Nossa elite, na época, não era racista por um bom motivo:
esta mesma elite não era branca, e se foi embranquecendo nos anos seguintes,
isso deveu-se justamente ao influxo desses novos escravos brancos, à medida em
que eles prosperavam e eventualmente ingressavam na burguesia. Examinando-se
hoje um catálogo da FIESP, dificilmente se encontrará ali algum descendente de
barões do café.
A Elite, tal como concebida pelos observadores marxistas,
não passa de um totem. Mas examinada tal como é, tem a revelar sobre nossa
história e sobre quais fórmulas são bem sucedidas aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário