Li recentemente um artigo de José Maria e Silva, reproduzido aqui no Jornal Opção, comentando uma recente reportagem do Fantástico sobre os privilégios que são concedidos nos presídios aos líderes das facções criminosas. Não é novidade. Sabe-se há tempos que os líderes de tais facções gozam nos presídios de inúmeros privilégios inconcebíveis para bandidinhos comuns, como celas bem equipadas, comida farta, o direito de realizar festas e churrascos, receber mulheres, e principalmente comandar seus negócios por telefone e extorquir os outros presos. O que José Maria chamou atenção foi para o enfoque distinto que a reportagem da Globo deu ao secretário de segurança de Goiás, do PSDB, e o secretário de segurança do Rio Grande do Sul, governado pelo PT.
Edemundo Dias, o secretário de segurança de Goiás, foi acuado pela reportagem. Com ar de pobre coitado, deu algumas desculpas esfarrapadas e tentou impedir o acesso das câmeras ao interior do presídio. Já Airton Michels, secretário de segurança do Rio Grande do Sul, foi mostrado muito empertigado em sua poltrona, admitiu abertamente a existência de regalias nos presídios para os chefes das facções, e justificou-as dizendo que, não fosse assim, haveria uma tragédia. Edemundo Dias foi exonerado pelo governador, Airton Michels permaneceu no cargo. Pareceu-me que o principal propósito de José Maria, em seu artigo, foi mostrar que a Globo é parcial entre seu tratamento a um governo tucano e a um governo petista. Mas a comparação me lembrou um antigo adágio: a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.
Hipocrisia é feio. Edemundo Dias foi hipócrita. Airton Michels foi sincero. E no entanto, estou convicto de que Airton agiu muito pior do que Edemundo. Lembrei-me de um episódio ocorrido logo no início do primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, lá pelos idos de 1983. Naqueles tempos ainda relativamente inocentes, o jogo do bicho ainda era um caso de polícia. É claro que todos sabiam que a polícia não reprimia coisa nenhuma e que os governadores recebiam caixinha dos bicheiros. Como Brizola enfrentaria o problema? Para surpresa geral, o governador declarou em alto e bom tom que não reprimiria o jogo, afirmando que a polícia tinha coisa mais importante a fazer. No clima político da época, com a volta dos exilados e enorme expectativa de mudanças, tal declaração chegou a soar como alvissareira: até que enfim um governante deixava de lado a hipocrisia! Mas eu, apesar de haver votado em Brizola (era jovem, né?) senti naquele dia um certo frio na barriga. Uma sensação de perda, de haver ultrapassado uma certa barreira e estar ciente de que não poderia voltar atrás e as coisas nunca mais seriam como antes. Em termos práticos, a decisão de Brizola não mudou nada, pois o jogo ilegal já não era mesmo reprimido, e havia de fato problemas de segurança mais urgentes. Mas em termos simbólicos, o impacto foi enorme: aquela foi a primeira vez que eu vi um governante democraticamente eleito afirmar na cara dura que não ia cumprir uma lei, e ficar por isso mesmo. E as coisas, realmente, nunca mais foram como antes.
Brizola recusou ser hipócrita. Airton Michels recusou ser hipócrita. Mas a hipocrisia é a última homenagem que o vício presta à virtude.
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