quarta-feira, 4 de junho de 2014

A falácia da Democracia Direta

O assunto quente do momento é a tal PNPS, Política Nacional de Participação Social, proposta do governo que tem o inocente objetivo de dar visibilidade e voz a “órgãos da sociedade civil” – em outra palavras, a uma miríade de movimentos sociais articulados com o PT, ou com ONG´s que têm ligações com o PT. Para bom entendedor, vê-se logo que é mais um subterfúgio para solapar os poderes da república, o legislativo e o judiciário, que o PT ainda não conseguiu controlar. Mas o pretexto é bom: as recentes manifestações mostram que o povo está descontente com a tal democracia representativa, e o melhor seria substitui-la pela democracia direta dos conselhos, pelos quais a sociedade civil efetivamente se autogovernaria.
 
Não é uma desculpa qualquer: as vantagens da democracia direta sobre a democracia representativa são flagrantes, tanto que todos nós a praticamos sempre que possível – por exemplo, quando é necessário fazer uma reunião de condôminos para decidir a reforma da portaria, ninguém cogita pagar salários a políticos profissionais para representa-lo na assembleia: todos comparecem e discutem pessoalmente. Mas há o outro lado. Uma assembleia de condôminos só tem autonomia para deliberar sobre assuntos que dizem respeito unicamente àquele condomínio. Se vai ser debatida alguma obra que afete o quarteirão inteiro, faz-se necessário fazer um assembleia maior, reunindo o pessoal de todos os prédios. Se trata-se de algo que afeta a rua inteira, a maioria preferirá deixar o assunto para a prefeitura. Um mundo governado por sovietes só é possível se for um mundo constituído de aldeias auto-suficientes, sem nenhuma interdependência. Pois havendo um mínimo de interdependência, surge logo a possibilidade de uma medida ser vantajosa para uma comuna e desvantajosa para a outra. Então, quem vai fazer a mediação? Ou reúnem-se todas as assembleias comunais em um enorme estádio e passam o resto do ano discutindo, coisa obviamente inexequível, ou cada assembleia envia delegados a uma espécie de soviete supremo – e a partir do momento em que ocorre essa delegação, acaba-se a democracia direta e recai-se em algum tipo de democracia indireta.
 
É verdade que já houve um momento no passado em que ouviu-se o brado: todo o poder aos sovietes! Mas na Rússia revolucionária de 1917, os sovietes só detiveram o poder por poucos meses, quando o estado havia se desintegrado e o país estava em guerra civil. Tão logo a guerra foi vencida e o estado organizou-se, os sovietes foram relegados às questiúnculas internas de suas respectivas comunas, e o poder de fato passou ao partido único e seu séquito de burocratas, que passaram a tomar as decisões que afetavam a totalidade do povo. Se a Rússia de 1917 já não era uma constelação de comunas interdependentes, muito menos esse modelo se aplica ao atual mundo globalizado. Vemos, então, o verdadeiro propósito daqueles que propagandeiam a democracia direta: desautorizar os parlamentos onde a oposição tem maioria, substituindo-os por uma miríade de conselhos sem poder nem importância, e no vácuo de poder assim criado, instala-se o partido único e o Grande Líder. Em toda parte onde proclamou-se a democracia direta, viu-se a hipertrofia do poder executivo e a instauração de uma ditadura pessoal, não raro dando origem a uma dinastia familiar – foi assim na Rússia, na China, na Coréia do Norte, em Cuba, na Venezuela, na Bolívia. Não sei se o PT conseguirá fazer o mesmo por aqui, mas seu plano parece-me óbvio: se o PT vencer as eleições, ele manda os “órgãos da sociedade civil” irem pastar. Se o PT perder as eleições, ele utiliza-se desses órgãos para infiltrar-se no novo governo. O problema mesmo vai ser se esses tais órgãos, sovietes ou assembleias comunais acreditarem que são mesmo independentes e começarem a agir por conta própria, tal como já está acontecendo na Bolívia, onde cada aldeia de remanescentes de índios julga-se um Estado independente. Aí pode acontecer com o PT o mesmo que aconteceu com o aprendiz de feiticeiro: começa a mágica, e depois não consegue para-la.

3 comentários:

  1. A democracia participativa existe para contornar os limites da direta pois, como você mesmo escreveu, quanto mais complexas e maiores se tornam as sociedades, mais se torna a política, e ainda a mais o tempo para se dedicar a ela. Assim, devido a ausência de tempo disponível para lutar pelos seus interesses, as pessoas contratam e elegem os políticos para esses papel, e para elas devem prestar contas. Porém, como no Brasil as coisas não dão muito certo, o político é, em geral, independente dos seus eleitores, pois usufruem do dinheiro do governo para financiar a campanha, privilégios da justiça ( com exceção do foro privilegiado, pois juiz STF é muito mais difícil de se comprar) e mordomias (bolsa gasolina, vale terno, vale isso, aquilo e etc...). Basicamente invertendo a situaçãode uma democracia ideal, ou seja, não é mais os eleitores que descartam o político se este não lhes prestar contas, mas este que os descarta caso não receba um propina, uma secretaria ou um ministério.
    Se o governo estivesse interessado em ao menos resolver parte do problema acima, teria apresentado o voto distrital, pois aos menos faria os políticos contraírem contas a prestar aos eleitores da região onde foram eleitos (mesmo que pela compra de voto)

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  2. Ou também um sistema em que o eleitor vota de acordo com a ordem de preferência, ou seja, o primeiro candidato receberia 3 pontos, o segundo 2, o terceiro 3, e o último nada. Assim, evitaria-se eleger candidatos populares com alta rejeição.

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    1. Voto distrital é uma boa sugestão, poderia funcionar, assim como acabar com a obrigatoriedade do voto. Mas "democracia direta" é conversa de quem quer fazer a ditadura do partido único.

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