A revista História Viva desse mês apresentou uma oportuna reportagem sobre como evoluíram as eleições no Brasil. Fiquei sabendo que a primeira ocorreu em 1532, para a Câmara Municipal de São Vicente. O que eu já sabia, e a reportagem confirmou, foi que as câmaras de Homens Bons constituíram até o final do século 18 o poder de facto no Brasil, uma terra quase desabitada onde o rei era uma figura tão distante que parecia lendária, e seus funcionários eram tão escassos que pareciam pouco mais que lendários. Naquele vazio permeado aqui e ali por vilas e fazendas isoladas, mandavam os ditos Homens Bons, mais precisamente os senhores de terra, muitos deles dispondo de homens armados sob seu comando. O senso comum afirma que os senhores de terra brasileiros eram fidalgos que receberam sesmarias do rei de Portugal. Na prática, porém, a posse da terra em locais tão distantes da autoridade real dependia da capacidade desses senhores de a obterem e conservarem pela força, e para tal contavam com a ajuda, não do rei, mas de parentes, agregados, colonos e demais dependentes que se dispusessem a pegar em armas sob suas ordens. Tanto eram independentes e refratários à autoridade da metrópole, que conforme conta a reportagem, a fim de diminuir seu poder, o rei passou a nomear os chamados Juízes de Fora para fiscalizar os municípios, onde os juízes eram os membros das câmaras locais (deve ser lembrado aqui que o princípio da divisão de poderes não existia na época, e os vereadores eram ao mesmo tempo o prefeito, os juízes e os funcionários).
Como se vê, então, a elite brasileira dos tempos coloniais, longe de compor-se com a metrópole, ao contrário, dedicava-lhe constante estranhamento. Os Homens Bons frequentemente ignoravam as disposições do rei, ameaçavam e corrompiam seus funcionários. Daí que não seja de admirar que o desejo por independência tenha surgido nas elites antes de surgir nas massas, como bem ilustra o exemplo da Inconfidência Mineira.
Outro fato que eu já conhecia, e foi oportunamente lembrado pela reportagem, foi que durante o império ocorreram diversas reformas na legislação eleitoral, que ao final deste período já haviam se tornado diretas (no início os eleitores, ditos de primeiro grau, votavam em delegados ditos eleitores de segundo grau, que votavam nos candidatos). Em determinado momento o número de eleitores chegou a ser até superior ao que viria a ser no início da república, apesar do sistema censitário, que na prática era fácil de ser contornado, pois os valores de renda exigidos eram relativamente baixos e ficaram congelados por anos, e a comprovação de rendas era difícil. Enfim, esse período, longe de ter sido de imobilismo e obscurantismo, foi de muitas experiências.
O sufrágio universal masculino (exceto analfabetos) instituído com a república teve como consequência inicial apenas a consolidação do poder dos coronéis do sertão. Esses chefes políticos, sem dúvida, já existiam antes, mas antes também tinham menos eleitores em seu cabresto. Sob este aspecto, fica difícil afirmar que a instituição do sufrágio universal representou uma conquista democrática. E penso mesmo que se também votassem os analfabetos, o poder dos coronéis ficaria ainda mais consolidado, pois sustentava-se na fragilidade e dependência econômica dos colonos de sua fazenda, e os analfabetos pertenciam ao estrato social mais frágil e dependente. De fato, uma fraude comum no período era forjar a alfabetização dos trabalhadores do coronel, a fim de que pudessem se tornar eleitores.
No anos 30 tivemos o exotismo dos "deputados das profissões", que eram eleitos por delegados de suas respectivas profissões - herança do corporativismo do fascismo italiano. Não deixaram saudades.
Com a constituição atual, enfim, pode-se afirmar que o voto se tornou universal no Brasil. Analfabeto vota. E analfabeto é eleito. Mas esse é nosso país, e essa é a História de todos nós.
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