Estou lendo mais um livro de Rodrigo Trespach, da série Histórias Não (ou Mal) Contadas. Tal como a série dos Guias Politicamente Incorretos de Leandro Narloch, dedica-se a desmontar de forma leve e bem-humorada todo um amontoado de mitos que viraram verdade oficial após haverem sido muito repetidos por professores escritores ideologicamente enviesados - algo bem oportuno para a época plena de revisionismos que estamos vivendo, sem dúvida.
Um dos mitos mais duradouros, aliás, que muita gente acreditou, foi que o Brasil teria sido o último país do mundo a abolir a escravidão. Não foi nem o último das américas, pois Cuba só aboliu em 1898. Mas em outras partes do mundo, a escravidão continuou legal pelo século 20 adentro - só foi abolida na Arábia Saudita em 1960, e na Mauritânia em 1980, muito embora seja sabido que a escravidão continue de forma clandestina em boa parte do mundo, inclusive no Brasil. O livro procura desmentir, sobretudo, a impressão mais persistente de todas: que a escravidão seria pertinente a uma única etnia.
Essa impressão repetiu-se em épocas distintas da História da humanidade, que coincidiram com um crescimento explosivo do número de escravos, em razão de diversos fatores. A mais recente foi a escravização maciça de africanos para trabalhar nas plantações do Novo Mundo colonizado, que fez grudar até hoje nos afrodescendentes o estereótipo de ex-escravo, a ponto de qualquer escravidão que incidisse sobre elementos de outra raça ser taxada de "escravidão branca". Mas houve um tempo em que o povo-escravo-padrão era outro, branco e originário do leste da Europa: os eslavos. O nome originou o próprio termo "escravo" (em inglês, "slave"). O motivo teria sido semelhante ao que ocasionou a escravização massiva dos africanos: muita divisão, muitas tribos inimigas, muitas guerras. Mas durante a expansão máxima do escravismo, na época da Roma antiga, a escravidão sempre foi multiétnica.
Entretanto, até o início do século 19, nunca deixaram de existir escravos europeus brancos, capturados por piratas árabes ou otomanos e vendidos nos mercados da África e da Ásia. O número não se comparava ao de escravos negros no mesmo período, mas atingia a cifra de milhões: de fato, essa escravização só cessou por completo depois que a colonização europeia do norte da África destruiu as bases por onde operava esses piratas. Mas também sempre existiram escravos brancos pertencentes a senhores brancos. Uma das falhas do ensino de História nas escolas tem sido a suposição de que a escravidão, na Europa, teria sido fenômeno da Idade Antiga, sucedida pela servidão da gleba na Idade Média - o estatuto do servo da gleba teria sido bem diferente e melhor do que o do antigo escravo, pois ele não pertencia a um senhor, mas à gleba da qual não podia ser apartado, e que garantia a sua subsistência. Erro duplo: primeiro, a escravidão na Europa não cessou durante a Idade Média e prosseguiu até a Idade Moderna, embora em pequeno número, pois não havia um imperativo econômico que implicasse no uso intensivo do trabalho escravo; segundo, a situação do servo da gleba não era muito diferente daquela do escravo. Ele estava sujeito aos mesmos abusos e castigos, assim como ao trabalho forçado. O Senhor não podia tirar-lhe mais do que o necessário para a subsistência, mas tampouco interessava ao Senhor que sua mão-de-obra morresse de fome.
O livro é minucioso e trata de peculiaridades da escravidão pouco conhecidas, bem como da persistência dela no mundo atual. Só senti falta de uma abordagem mais economicista. O autor poderia ter derrubado outro mito: de que nossa desigualdade social é produto da escravidão. Olhando ao redor, vemos muitos vizinhos sul-americanos que tiveram histórico de escravidão bem inferior e aboliram-na já no início do século 19, e que têm uma desigualdade muito semelhante à nossa. Poderia ter tratado também da incompatibilidade intrínseca do regime de trabalho escravo com o capitalismo industrial que se expandia pelo século 19, o qual necessitava do regime de trabalho assalariado.
Foi de fato a expansão do capitalismo que impôs o fim da escravidão, ao menos daquela escravidão intensiva e presente nas regiões economicamente mais ativas do globo. Para forçar esse fim, chegou-se até à guerra, como é sabido. Um raro exemplo da total incompatibilidade entre o trabalho escravo e o capitalismo industrial foi apresentado por Jorge Caldeira em sua biografia do Barão de Mauá. Quando o barão comprou o estaleiro de Ponta de Areia com o intuito de iniciar a produção de barcos a vapor, teve que comprar também o plantel de escravos que já trabalhavam ali. O capital gasto na aquisição dos escravos foi praticamente o mesmo investido na compra das instalações. Sem dúvida que o barão preferiria reservar esse capital para si e, ao invés, pagar salários, mas ele sabia muito bem que era impossível: mesmo que ele procurasse por trabalhadores, não os encontraria, pois quase toda a mão-de-obra existente estava na forma de escravos.
Sem dúvida que a revolução industrial não teria sido possível em um mundo onde cada industrial, após empatar seu capital na aquisição da fábrica, tivesse que empatar igual quantia na aquisição de escravos. A existência de uma massa de trabalhadores livres e disponíveis era essencial. O capitalismo, onde se instalou com força, afugentou o escravismo por força de sua própria lógica de produção, mas do que do humanismo de seus próceres.
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