domingo, 24 de junho de 2018

Bárbaros nas fronteiras

Um livro lançado em 1991, e bastante esquecido hoje em dia, chamava-se O Império e os Novos Bárbaros, de autoria do francês Jean-Christophe Rufin. Lançava a tese de que o confronto Leste-Oeste, paradigmático dos anos da guerra fria que acabava de ser encerrada com a queda do Muro de Berlim, seria sucedido por um novo confronto, este Norte-Sul, opondo os países ricos e os pobres. Foi objeto de alguma discussão naquele momento em que todos os comentaristas se sentiam de alguma maneira desorientados após o fim da guerra fria, que tanto lhes dera confortáveis certezas, e ansiosos para saber o que viria em seguida - foi este também o momento em que Francis Fukuyama lançou seu polêmico O Fim da História. Mas passados quase 30 anos, pouco se fala a respeito.

E no entanto, os acontecimentos têm mostrado que a obra de Rufin continua mais atual do que nunca. A toda hora lemos notícias de levas de refugiados forçando as fronteiras. Mas que fronteiras são essas, exatamente? Várias, sem dúvida. Mas cumpre entender, antes de tudo, o conceito que define essas fronteiras. É quando se deve voltar à leitura de O Império e os Novos Bárbaros. O autor traçou um paralelo entre o momento histórico atual e a situação dois mil anos atrás, quando do estabelecimento dos limites do Império Romano. A partir daquele momento, tendo cessado o expansionismo de Roma, o esforço passou a ser no sentido de delimitar e defender as fronteiras (em latim, limes) do império. É quando o conceito de fronteira deixa de ser apenas uma linha no mapa ou um acampamento fortificado, e ganha um significado ideológico, marcando a divisão entre o espaço civilizado e o espaço bárbaro. Manter os bárbaros fora é condição crucial para preservar a civilização.

A essa altura, muitos por certo vão considerar a comparação um tanto dramática e forçada. Afinal, nesses dias de globalização, poucos conceitos estão mais desmoralizados do que as fronteiras entre países. Todos os dias essas fronteiras são cruzadas por um incessante fluxo de pessoas, mercadorias, capitais e ideias, sejam viajantes, turistas, imigrantes, pesquisadores, ou meras mensagens e imagens circulando pela internet. A tendência é que esse fluxo se torne cada vez mais intenso. Onde, então, alguém vai afirmar que os países ricos pretendem fechar suas fronteiras e manter os outros fora?

Quem argumenta assim, na verdade, não entendeu o conceito ideológico de fronteira desvendado por Rufin. Não se trata, de modo algum, de uma barreira física. É uma barreira de valores. A vida não tem o mesmo sentido, nem o mesmo valor dentro e fora da fronteira. O que é imoral e proibido fazer dentro da fronteira, é permitido fazer além dela. O que não se pode fazer a um cidadão do império, pode ser feito a quem viva além. Escreveu Rufin, a fronteira resguarda o espaço civilizado ao aparta-lo dos bárbaros, mas pela desigualdade que produz e agrava, ela joga violentamente, um contra o outro, os dois mundos que pretende separar. Termina por conduzir a um confronto violento.

A tese de Rufin é nefasta. Afirma que a globalização assinala para o futuro uma situação explosiva, posto que dá origem tanto à ideologia da fronteira quanto ao afã de forçar a fronteira. Afinal, como é sabido, o Império Romano acabou invadido pelos bárbaros. Mas contemplando o quadro atual à luz do conhecimento da História, o que podemos afirmar, sem apelar para a imaginação?

É fato que nunca houve na história recente um número tão grande de refugiados, gente que foge de guerras, de perseguições ou da miséria. Na aparência, a precariedade geral existente no chamado Terceiro Mundo atingiu um nível tal, que produziu um fluxo incontrolável de pessoas em fuga rumo aos países do Primeiro Mundo. Mas é uma falsa impressão. Crises e guerras sempre devastaram o Terceiro Mundo, mas em linhas gerais, a situação de hoje não é pior do que era há 30 ou 50 anos atrás. O que mudou foi o Primeiro Mundo. Ali, a transição demográfica causou uma violenta queda na natalidade, esvaziando os segmentos mais jovens, de onde tradicionalmente são tirados os trabalhadores menos especializados que executam as funções menos desejadas. Alguém, necessariamente, tem que vir de outro lugar para executar essas funções. O resultado tem sido uma crescente confusão entre os conceitos de imigrante e refugiado, que antes eram claramente distintos. A princípio, um imigrante é uma pessoa que deseja estabelecer-se em outro país, e um refugiado é alguém que só deseja fugir. Mas a oferta de trabalhos rejeitados pelos cidadãos locais tem induzido ao projeto do refugiado tornar-se um imigrante, ou mesmo do imigrante apresentar-se como refugiado. Muitos que procuram cruzar as fronteiras dos EUA, inclusive brasileiros, apresentam-se como perseguidos por criminosos comuns ou vítimas de violência domésticas, coisas que deveriam ser simples ocorrências policiais em seus respectivos países.

Não cabe a mim, aqui, julgar as razões dessas pessoas. Mas cabe observar que os acontecimentos têm confirmado as previsões de Rufin. Recentemente, a ideologia da fronteira materializou-se em imagens grotescas de crianças mantidas como prisioneiras em gaiolas na fronteira dos EUA, consequência da política levada a cabo pelo presidente Trump de separar as famílias de estrangeiros apanhados em situação irregular, como forma de dissuadir a imigração ilegal. Isso não me surpreendeu, pois já havia observado que este método já se encontrava em prática desde Obama. Em 2016 eu publiquei um artigo sobre o caso de adolescentes brasileiras que chegaram nos EUA com vistos de turistas e autorização para viajarem desacompanhadas, mas foram levadas para abrigos de refugiados por motivos não especificados. Fiz uma análise cuidadosa caso a caso, e cheguei à conclusão de que não houve coerência nos procedimentos dos funcionários da imigração, e a única explicação que encontrei foi a intenção de criar precedentes que intimidassem candidatos à imigração ilegal. Tampouco para os norte-americanos que conhecem a própria história o caso é surpreendente, como é o caso do jornalista Richard Parker, que escreveu esse artigo lembrando que os EUA já haviam montado campos de concentração para crianças indígenas no final do século 19, sem falar nos campos onde eram aprisionados cidadãos japoneses e alemães durante a segunda guerra, nos quais, ao menos, as crianças não eram separadas dos pais.

Sim, campos de concentração, foi esse o termo que Richard Parker empregou. Também a menina Anna Stéphane, citada no meu artigo, contou para a mãe que o abrigo onde ficou detida lembrava um campo de concentração. A afirmação é e não é procedente. De fato, a comparação com um campo de concentração nazista com suas câmara de gás é um exagero risível. Mas tecnicamente, levando em conta a definição do termo, o lugar onde Anna Stéphane permaneceu era de fato um campo de concentração, posto que não era um estabelecimento prisional onde os detentos estivessem sob a proteção da lei, mas simplesmente um local onde as meninas estrangeiras eram mantidas por prazo indefinido. Por este motivo o endereço do local era secreto (com base em observações dos arredores, Anna Stéphane depois conseguiu identificar o prédio em uma área residencial de Chicago). Por este motivo, também, as adolescentes ali puderam ser submetidas a injeções de vacinas contra a sua vontade, bem como obrigadas a trabalhar, o que é proibido para quem está em prisões. Mas o status de menores estrangeiras mantidas em abrigos não é igual ao de quem se encontra em um estabelecimento prisional, os quais se encontram protegidos pela legislação; os refugiados, tais como os prisioneiros de guerra, não dispõem de nenhuma proteção legal, exceto os acordos firmados na ONU, que ninguém é obrigado a acatar.

A maneira como aquelas quatro adolescentes foram tratadas exemplifica bem a ideologia da fronteira. A impressão que fica é que os EUA não as viam somente como prováveis imigrantes ilegais, mas também como criaturas imundas e pestilentas: todos os seus pertences foram desinfetados, sacos pretos com remédio contra piolhos foram colocados em suas cabeças, além das dez vacinas cujo teor não foi informado. É bastante conhecida, e até folclórica, a ignorância que o americano médio tem a respeito de países estrangeiros, mesmo aqueles que tiveram uma educação formal completa. Aparentemente o assunto não os interessa, ou não é considerado importante. Com este ponto de partida, não é difícil que o americano médio passe a ver todo o resto do mundo além de suas fronteiras como uma terra arrasada e povoada de refugiados doentes e piolhentos.

Assim nasce a ideologia da fronteira.

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