Recentemente chamou-me a atenção a notícia de que o rei Felipe VI da Espanha não foi convidado para a cerimônia de posse de Claudia Sheinbaum, a nova presidente do México. O motivo alegado foi que o monarca não respondeu a uma carta de López Obrador, o presidente atual, solicitando um pedido oficial de desculpas pelas atrocidades cometidas contra os povos ondígenas durante a colonização.
O pedido é pertinente, ninguém discorda de que as atrocidades foram cometidas. O que não entendo é por que pessoas com os sobrenomes Obrador e Sheinbaum fazem-se de porta-vozes de povos originários. Eles são um produto da colonização, sem ela sequer existiriam hoje, ou estariam em outro lugar. Se cabe um pedido de desculpas, podiam fazê-lo eles mesmos, sem recorrer ao rei.
Não é de hoje que povos sul-americanos sofrem dessa neurose: querem crer que suas nações já existiam antes da chegada dos europeus, que portanto não passariam de invasores estrangeiros que ali vieram saquear e massacrar os indígenas. Há uma óbvia crise de identidade. Embora descendentes dos tais europeus invasores, herdeiros e usufrutários de tudo de bom e de mal que estes deixaram, eles rejeitam essa identificação e identificam-se com povos originárioa, com os quais não têm nenhum parentesco. É também um sintoma depressivo: eles não sentem orgulho do que são, tampouco de sua origem, e querem culpar seus ancestrais pelos problemas atuais de seus países.
No fundo um orgulho pueril, facilmente explicado pela psicologia, mas que urde consequências mais danosas do que se supõe. Rejeitando sua herança, deserdam a si próprios em um contexto civilizacional, e buscam consolo em antigas e gloriosas civilizações dos povos que habitavam o continente - civilizações que até foram notáveis em seu tempo, mas que quase nada têm a ver com o mundo atual, exceto por comunidades isoladas e economicamente pouco relevantes, que praticam língua e costumes herdadas de seus ancestrais. Sem os referenciais da herança européia renegada, não é de espantar que exista nessa parte do mundo uma obsessão por buscar soluções políticas e econômicas exóticas, que só atrasam o desenvolvimento.
Essa ilusão autoimposta é em parte compreensível para povos como o mexicano, que efetivamente tiveram um passado glorioso com civilizações nativas avançadas, das quais ainda restam muitos descendentes. Menos razoável é que brasileiros endossem esse discurso. Nós náo fomos descobertos, fomos invadidos, bradaram muitos quando da comemoração dos 500 anos. Isso procede?
Não. O que havia aqui antes de 1500 não era o Brasil, mas uma região geográfica habitada por tribos seminômades que não falavam a mesma língua, não estavam unidas por uma federação nem tinham fronteiras delimitadas. Bom ou mau, feio ou bonito, o Brasil passou a existir após a chegada dos portugueses. Considerar tal chegada uma "invasão" e um "saque" extrapola conceitos do presente para um passado onde estes não existiam: nenhuma fronteira foi violada porque fronteiras não haviam, nem os indígenas foram roubados porque tampouco conheciam a propriedade privada. Tanto não se sentiram invadidos, que o primeiro contato com a frota de Pedro Álvares Cabral foi amistoso. Ah, mas depois houve guerra, certo?
Sim. Mas não foi uma guerra movida por uma coalização de povos nativos contra um suposto invasor. Os indígenas foram ver o que queriam aqueles forasteiros. Descobriram que tinham coisas muito interessantes - objetos de metal - que davam em troca de uma madeira que havia ali, que não tinha valor para os locais. Algumas tribos se aliaram aos portugueses, outras aos franceses, que tinham os mesmos propósitos. As guerras entre índios e portugueses, portanto, foram um desdobramento do conflito destes com os franceses.
Devíamos nos livrar de vez desse discurso autoindulgente. Os portugueses não roubavam o nosso ouro, os portugueses cobravam impostos. Nenhum governo se sustenta sem cobrança de impostos, e olha que não eram tão altos: era o "quinto", ou 20%, sendo que a carga tributária atual já se aproxima dos 40%. Todos nós somos descendentes, em todo ou em parte, desses "invasores", e usufruimos da cultura por eles deixada. Exigir desculpas deles é um teatrinho bobo, e sobretudo hipócrita. Não existiríamos sem eles. Se a colonização européia, como dizem, reduz-se a saques e atrocidades, desses saques e atrocidades não fomos vítimas. Fomos sócios.
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