Um fenômeno inquietante que eu tenho observado são pessoas que afirmam ter nostalgia dos tempos da ditadura, um período idealizado como de valores corretos, quando lugar de vagabundo era na cadeia e o país crescia. Nada tão estranho, esse fenômeno é conhecido em épocas de desalento da população. Mas um vídeo que descobri me deixou bem estarrecido.
Feito em 1970, mostra um desfile de formatura da Guarda Rural Indígena, milícia constituída por índios de diversas etnias, com a finalidade de ser a polícia nos territórios indígenas, bem de acordo com o espírito da época. Ou talvez de acordo demais. Em meio à parada de índios uniformizados mostrando as técnicas aprendidas na escola da polícia, surge um homem pendurado em um pau-de-arara, conduzido por dois homens, que seguram um de cada lado.
É algo absolutamente inusitado. O regime jamais reconheceu a existência de torturas, e agora aqueles cadetes não só a reconhecem, como a exibem com orgulho diante de um palanque repleto de autoridades, e na presença de repórteres. Quem teve aquela ideia? Quem permitiu aquilo, se é que alguém permitiu? Nunca saberemos, mas a impressão que eu tenho é que o próprio absurdo da imagem deixou as testemunhas sem ação, e ninguém se lembrou de mandar destruir aquela prova da existência da tortura no país, que foi guardada pelo cinegrafista em uma caixa ardilosamente marcada com a sigla "arara". Na aparência referia-se à etnia indígena de mesmo nome, mas o cinegrafista tinha a esperança de que um dia aquele material seria encontrado, e o verdadeiro significado daquele "arara" seria conhecido. O que efetivamente aconteceu.
Mas se em 1970 aquelas pessoas não tiveram escrúpulo de exibir técnicas de tortura, diversos comentaristas do vídeo tampouco tiveram escrúpulo de declarar seu apoio à ditadura.
Mas a ditadura teve um saldo positivo, ou ao menos foi necessária na época?
O recentemente falecido ex-ministro Delfim Netto afirmou que sim, em uma entrevista. Signatário do AI-5, declarou ao presidente Costa e Silva:
"Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez"
Penso que o discurso foi mera sabujice, mesmo porque a área de Delfim não era a política, e sim a economia. Mas chama a atenção um pensamento recorrente à época: as mudanças "são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez". Ou seja, a ditadura favorecia o desenvolvimento. Era preciso "fazer o bolo crescer" antes de dividi-lo, conforme se dizia. Concluído o desenvolvimento, poderia-se até implantar a democracia.
Quando João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura, entregou o poder, o país estava em recessão e a inflação disparava. Aparentemente, o AI-5 não incrementou o desenvolvimento. O desastre econômico da "década perdida" pôs fim à crença de que os militares seriam governantes mais competentes que os civis, e até recentemente ninguém clamou a volta dos militares ao poder.
Mas já se passou tempo suficiente para que o período dos militares se incorporasse à lenda.
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