sábado, 16 de março de 2024

Casa Grande & Senzala, ainda atual?

Completa 90 anos o grande clássico das Ciências Sociais brasileiras, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, ainda hoje incitando polêmicas. O livro ganhou uma edição especial comemorativa de aniversário da Global Editora, e foi objeto de um artigo da revista Aventuras na História, comentado pela historiadora Mary Del Priore e pelo economista, cientista político e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira. Mas minha grande dúvida é: continua atual? Argumenta Bresser-Pereira:

"Casa Grande & Senzala continua atual porque é uma obra histórico-sociológica que busca os fundamentos da sociedade brasileira. Uma sociedade que, como todas as grandes sociedades, muda, mas se conserva a mesma (...) As suas bases econômicas, políticas e raciais continuam as mesmas"

O livro seria, então, uma referência para explicar aquilo que chamamos "brasilidade". O objeto do estudo foi o povo. Afirma Mary Del Priore:

"Muito antes dos historiadores estrangeiros falarem em atores anônimos da História, Giberto Freyre o fez. Nos seus livros, não há heróis. Há gente, povo"

Freyre foi, de fato, um pioneiro da técnica de produzir estudos sociológicos partindo de detalhes da vida privada de pessoas comuns, uma tendência que mais tarde se tornaria moda. Teve também o mérito de contestar a teoria então amplamente aceita da inferioridade das raças mestiças, que seriam um entrave ao desenvolvimento do país. Mas demolido este mito, criou outro: o da mestiçagem como sendo o traço fundador da sociedade brasileira, onde supostamente as raças convivem de forma harmônica. Por este motivo, Freyre é até hoje criticado por haver lançado a falácia da "democracia racial", termo que não aparece em nenhum de seus escritos, mas que é sugerido pela maneira leniente com que abordou a colonização portuguesa e relativizou o papel da escravidão no país. Mas como bem apontou Mary del Priore, o grosso das críticas resulta do desconhecimento da obra, das pesquisas e das inúmeras entrevistas dadas por Freyre ao longo da vida.

Essa polêmica rasa e persistente, que passa ao largo de uma análise mais profunda de sua obra, é produto, a meu ver, daquilo que é seu grande defeito: manter um viés racialista. Não confundir racialismo com racismo. Racialismo é toda abordagem que afirma ser a raça um fator explicador de determinado fenômeno social, o racismo é um recorte do racialismo que procura provar que umas raças são superiores às outras.

Freyre, com certeza, não era um racista. Mas indiscutivelmente era um um racialista: se afirmar que a mestiçagem torna o país inferior é uma falácia sem fundamento científico, o mesmo se diz de afirmar que a mestiçagem é o traço explicador do país. Afinal, o perfil social, cultural e político do Brasil foi originado da mistura de heranças genotípicas das raças que constituíram a nossa população? Ou foi produto de circunstâncias histórias e ambientais, que teriam gerado um perfil análogo mesmo se nossas matrizes raciais viessem de outros grupos étnicos?

Pergunto-me porque Gilberto Freyre, o estudioso, insistiu tanto nessa exaltação da mestiçagem. Ele próprio (ao contrário do que muitos supõem) nunca conheceu pessoalmente aquele mundo de casas grandes e senzalas sobre o qual discorreu com tanta familiaridade, como se o houvesse conhecido. Mas ele era filho de um médico e sempre morou em cidades. Talvez o motivo tenha sido uma fixação pessoal. Um outro livro de Freye, muito menos conhecido, um livro de memórias intitulado De Menino a Homem narra várias experiências sexuais bizarras da juventude, e deixa claro como o autor era fascinado por sexo interracial.

A meu ver, a mestiçagem está mais para mito fundador do que para traço fundador. É algo que gostamos de acreditar - o país é uma mistura de elementos europeus, africanos e índios. Mas é autoevidente que o elemento europeu é arrasadoramente dominante, sem contar que ao nos referirmos a elemento "africano" e "índio", estamos atirando em um mesmo saco dezenas de etnias que pouco tinham em comum umas com as outras, cujas heranças foram perdidas no processo de colonização, restando apenas vestígios periféricos. Já a herança européia é muito mais concisa, originada de seus quatro pilares: o greco-romano e o judaico-cristão. Uma análise honesta do Brasil só pode considerá-lo um membro ordinário do Mundo Ocidental, tal como o restante das ex-colônias dos impérios europeus - pobre, ou subdesenvolvido, se preferir, mas ocidental.

Mas então, Casa Grande e Senzala continua atual?

Sim, desde que o país seja reduzido a casas grandes e senzalas. Onde estão aí os milhões de imigrantes que hoje constituem a classe mais ativa do país em termos econômicos e culturais, e que nunca passaram por casas grandes nem por senzalas? A obra sociológica de Freyre continua importante, mas a discussão em torno da relevância da mestiçagem está datada. Pertence às obsessões racialistas do princípio do século passado. Na verdade, vejo-a como um trauma que deve ser superado - o trauma de ser uma sociedade com passado latifundiário e escravizador, o que em tempos modernos é traduzido pela visão reducionista de um povo bom governado por uma elite abominável.

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