Já apontei antes aqui como discutível o significado antropológico do carnaval, e não acredito que o público tenha desperdiçado algum minuto da folia para discutir se o homenageado merece de fato a homenagem. Mas de qualquer maneira o assunto foi trazido de volta à baila, e descobri um interessante artigo que meio sem querer, dá a chave para decifrar o enigma. Uma jornalista entrevistou os dez melhores educadores de 2019 pela premiação Educador Nota 10, criada em 1998 pela Fundação Victor Civita. Tendo esses profissionais desenvolvido trabalhos inovadores que geraram bons resultados nas escolas onde atuam, são supostamente autoridades credenciadas para emitir uma opinião definitiva sobre o patrono de nossa educação, e todos eles desfiaram elogios a Paulo Freire. Mas nenhum soube explicar porque, apesar da presumida excelência do patrono, nossa educação é tão ruim. Contudo, as explicações que se arriscaram a dar fornecem, ainda que sub-repticiamente, uma boa pista para localizar onde está o engodo.
Disse o professor de educação física Luiz Gustavo Ruino:
"Enquanto caminhava pela biblioteca da Universidade de Montreal, localizada no Canadá, onde cursou parte do doutorado em 2017, Luiz avistou um único autor brasileiro entre os títulos de obras escritas por estrangeiros. Lá estava, em letras pretas na capa vermelha chamativa da versão em inglês do livro 'Pedagogia do Oprimido', o nome do educador pernambucano Paulo Freire (...) De acordo com o projeto Open Syllabus, o mesmo título é também o único brasileiro a configurar a lista de 100 livros mais pedidos por universidades estrangeiras"
"No Brasil, porém, apesar de ser homenageado por escola de samba e de ser, desde 2012 o patrono da educação brasileira declarado pelo Congresso Nacional, a situação muda um pouco. Formalmente, os ensinamentos nunca estiveram presentes na grade curricular de escolas brasileiras. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) (...) não cita em momento algum o nome do educador pernambucano. Por isso, o nome de Paulo Freire não estava presente nas salas de aula do curso de geografia da USP (Universidade de São Paulo) quando Mariana Martins Lemes, 29, se graduou em 2013. Também não contou com os ensinamentos freireanos quando voltou para realizar mestrado de geografia humana de 2014 até 2017 na mesma universidade"
A contradição é evidente. Se Freire é tão prezado no exterior, por que o patrono de nossa educação não é sequer citado nos cursos de nossas próprias faculdades?
Minha teoria: Paulo Freire não é citado em cursos regulares, não por falta de vontade de nossos professores que o idolatram, mas simplesmente porque não há o que citar. Ele não é um educador, e nada do que escreveu tem qualquer utilidade didática. Em sua obra magna Pedagogia do Oprimido ele tampouco cita um único pedagogo, mas apenas líderes políticos e revolucionários como Mao Tsé-Tung e Fidel Castro. O próprio Freire não pode ser considerado um pedagogo completo, posto que não deixou nenhum método de uso geral - o método a ele atribuído destinava-se à alfabetização de adultos. Freire é, de fato, um filósofo, e sua obra é uma coleção de aforismos em prol da educação "dialógica e libertadora" em um mundo onde só há opressores e oprimidos. Fácil de achar bonito. Afinal, quem é a favor da educação escravizadora? Quem é contrário ao diálogo? Quem é a favor do opressor e contra o oprimido?
Os demais entrevistados repetem os elogios, mas também conformam a minha tese, ainda que com outras palavras. Mariana Martins Leme, professora de geografia, escreveu:
"Infelizmente, porém, muitos profissionais nas escolas têm um conhecimento ainda superficial do autor, e não sabem como repensar a sua prática a partir de seus ensinamentos. Assim, fica parecendo que Paulo Freire está presente na prática dos professores brasileiros, mas não é bem assim"
Exato, Mariana, não é bem assim. Mas por que os profissionais têm um conhecimento tão superficial do autor? Porque não há o que aprender dele, conforme eu apontei, visto que ele não é um educador.
Rodrigo Seixas, professor de sociologia, escreveu:
"Aqueles que condenam os princípios de Freire e querem o extirpar da educação brasileira, assim o fazem por dois motivos possíveis: ou por ignorância (no sentido de não compreender o educador e suas contribuições) ou por interesse"
Interesse alguns têm, com certeza. Mas por que a ignorância? Simples: não compreendem o educador e suas contribuições porque não há mensagem dele a ser compreendida no terreno estrito da pedagogia.
Arabelle Calciorali, professora de língua inglesa, escreveu:
"Se o governo prestasse atenção realmente no que está acontecendo na educação, eles veriam que o problema não é o Paulo Freire. O problema é o não Paulo Freire. É o não aplicar os ensinamentos dele na prática. O problema é que se fala de Paulo Freire, muitos acham lindo que Paulo Freire falou e fez, mas na hora de dar aula, vão para uma metodologia totalmente tradicional"
Vamos ver se entendi. Se a educação brasileira estivesse "bombando", o mérito seria de Paulo Freire. Se a educação brasileira é péssima, a culpa de não é de Paulo Freire, já que seus ensinamentos, supostamente, não foram colocados em prática. Tanto na primeira como na segunda hipótese, o patrono é resguardado, a possibilidade dele ser um fracasso não entra nesta lógica. Grande!
Mas Arabelle, me diga porque os ensinamentos do mestre não estão sendo aplicados, se ele retornou do exílio há mais de 30 anos e foi oficializado como patrono de nossa educação? Essa pergunta eu já respondi: tais ensinamentos não têm aplicação na didática. Os professores vão para uma metodologia tradicional porque não existe outra. Simples assim.
Falta explicar porque Paulo Freire, sendo tão insignificante em termos práticos para a educação, é o único autor brasileiro a figurar na lista dos 100 livros mais pedidos por universidades estrangeiras. Eu acredito que outros pesquisadores brasileiros bem mereciam estar presentes nesses 100, mas têm pouca divulgação. Então por que somente Paulo Freire aparece na lista, e mais ainda, por que sua Pedagogia do Oprimido é a terceira obra mais citada e trabalhos acadêmicos ao redor do mundo? Não é tão difícil responder. Seus aforismos em prol de uma educação libertadora e dialógica são feitos para serem elogiados. Mas também, apenas para serem elogiados, e para nada mais. Penso que Paulo Freire corresponde ao papel que um intelectual do terceiro mundo deve desempenhar, conforme a opinião dos intelectuais do primeiro mundo, e desperta neles a solicitude patética para com o drama dos "deserdados da terra". Já para os intelectuais brasileiros que querem falar sério, sobra o desdém.
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