Outro dia assisti pela primeira vez o filme Cidade de Deus. Tinha já ouvido tanto falar que nem julgava mais necessário assisti-lo, mas resolvi dar uma conferida. Pode parecer estranho que eu queira fazer uma resenha quase vinte anos após o lançamento, mas é útil. Se quando foi lançado, o filme mostrava uma evolução histórica com um ponto de inflexão, agora ele próprio é parte da História e igualmente mostra um ponto de inflexão, mais precisamente aquele que separa a era do banditismo romântico da era do capitão Nascimento.
Artisticamente, o filme é muito bom e sem dúvida que mereceu os aplausos internacionais. O frenesi de tomadas com cortes no tempo prende efetivamente a atenção do espectador, e diversas cenas ficaram marcadas na memória coletiva. O real e a ficção são mesclados com competência, a ponto de não se saber distingui-los. Mas o filme é um marco, sobretudo, por romper com a narrativa do bandido-vítima que vinha predominando em nossa cinematografia desde os anos 60, começando no Assalto ao Trem Pagador até Pixote a Lei do Mais Fraco, Lúcio Flávio o Passageiro da Agonia e 400 Contra Um, passando por outros filmes baba-bandido mais esquecíveis. Cidade de Deus começa com uma referência a esta época, os inocentes anos 60 quando a favela foi criada, mostrando bandidos robinhoodianos que assaltam um caminhão de gás e distribuem o produto do roubo aos moradores. Mas nos anos setenta, com o advento do tráfico de drogas e do crime organizado, os bandidos nada mais têm de bonzinhos. Aterrorizam os moradores, saqueiam modestos estabelecimentos comerciais da favela e se matam mutuamente na disputa por bocas de fumos.
A inocência, se um dia existiu, foi perdida. Mas se os bandidos não mais são mostrados como heróis, persiste uma glamourização em torno da bandidagem. Os marginais são audazes e suas ações são espetaculares, enquanto os policiais são sempre paspalhos e incompetentes - e neste aspecto Cidade de Deus marca um ponto equidistante entre Lúcio Flávio e Tropa de Elite. Na verdade, os marginais do filme ainda são mostrados como heróis - porém, não no sentido atual do termo, de indivíduo destemido e abnegado, mas no sentido original da palavra surgida na Grécia antiga, denotando indivíduo de força e coragem sobre-humanas, que triunfa sobre seus inimigos gloriosamente.
Como se sabe, a ideia fixa de apresentar o marginal como um herói revolucionário surgiu da militância intelectual de esquerda, que tem sido proeminente em nossa cinematografia deste os tempos do Cinema Novo de Glauber Rocha, que foi pioneiro ao reciclar a figura do cangaceiro como um justiceiro social. Na realidade, essa tendência está ligada à evolução dos acontecimentos entre os anos 60 e 70, com a derrota da guerrilha revolucionária, a qual não teve o apoio dos trabalhadores, e reflete um esforço de substituição simbólica da figura do trabalhador pela figura do marginal, o lumpen-proletariado segundo Marx, como o público revolucionário por excelência, segundo o entendimento dos intelectuais militantes. Não deu certo, e o sucesso de Tropa de Elite vem encerrar este capítulo. O povo das periferias não se identifica com os marginais, mas com o capitão Nascimento, para desgosto dos cineastas.
A admiração dos intelectuais de esquerda pelos marginais das favelas deixa entrever um sentimento de frustração pelo malogro da luta armada. Afinal, ao contrário dos guerrilheiros, essas quadrilhas bem armadas conseguiram efetivamente desafiar as forças da segurança. O problema é que esses quadrilheiros nada têm de revolucionários sociais, como sonhavam Glauber Rocha e outros. Ao contrário, a organização de seus negócios insere-se em um arcabouço de todo capitalista, inclusive imitando suas hierarquias e funções: as bocas têm um "proprietário", um "gerente" e uma multidão de "assalariados", de vigias a "soldados". Marx já no século 19 não hesitava em apontar os lumpens como imprestáveis como revolucionários - eles podem ser aguerridos, mas em razão de seu caráter venal, são facilmente cooptados pela burguesia dominante. E de fato, através da História, os burgueses sempre têm comprado os lumpens por poucos tostões, inclusive para jogá-los contra os trabalhadores.
Então, Cidade de Deus fica como um longínquo divisor de águas entre os tempos do banditismo romântico e a época atual que prega o endurecimento das penas. Também contribuiu para reforçar o senso comum estrangeiro de que a favela é o habitat padrão do brasileiro. Não é de hoje que existe um esforço dos produtores culturais do país para apresentar a favela como ícone nacional - acredito que em mais nenhum lugar do mundo chefes de estado estrangeiros são levados para visitar favelas. Resta saber se esse esforço redunda em algum benefício para a imagem e a autoestima dos habitantes locais. Segundo o wikipedia, o filme favoreceu uma onda de preconceito e discriminação contra os moradores da Cidade de Deus.
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